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Miguel Sanches Neto


O poeta tranqüilo


Gazeta do Povo
24.05.99


Primeiro livro de Carlos Dala Stella é a depuração de dez anos de silenciosa atividade poética

 

Sendo um artista plástico que transita pela literatura (ou vice-versa), Carlos Dala Stella não deixa que haja cisão em sua identidade. Ambas as atividades estão irmanadas e formam um projeto maior que é dar consistência imaginária a uma territorialidade pessoal. Há, portanto, uma coesão entre o seu trabalho plástico e os seus poemas, coesão que pode ser encontrada nos aspectos visuais de O Caçador de Vaga-lumes (Editora UEPG, 1998) - sua primeira reunião poética: o artista investe na materialidade dos versos, que ganham sempre contornos brandos e uma certa regularidade métrica que faz com que os poemas ocupem o papel de forma plasticamente agradvel. Sem ter um número fixo de sílabas, os seus versos guardam certa simetria, distinguindo-se por um arredondamento de linhas. Com isso, os poemas ganham suavidade visual e rítmica sem cair em um circuito fechado.

É justamente desse acabamento racional (cabralino) que os seus textos fogem, apostando em uma abertura semântica obtida através de um verbo intermitente. O que explica a opção pelos dísticos.

Os dísticos operam segmentações dentro dos poemas, dando-lhes certa autonomia em relação ao todo, embora haja um fio condutor, em alguns casos quase imperceptível, que costura com pontos largos o módulo. Se por um lado eles não estão controladamente encadeados, não há também uma total desarticulação. O sentido localiza-se em uma fronteira semovente. Poderíamos dizer que existe unidade dentro da diversidade de situações. Tal característica exige do leitor uma disponibilidade para se deixar levar por poemas que se querem como condutos, como espaço de passagem. Isto é válido também para o livro como um todo. Não se pode percorrê-lo aos saltos, mas perdendo-se em trilhas ondulantes. Talvez este realmente seja o ponto fundamental na definição do perfil de leitor que a coletânea exige. Ele deve ser um itinerante, que lê como quem caminha, observando as mudanças da paisagem e das situações. Evitando as disparadas e as circunvoluções, o seu ritmo é o da caminhada tranqüila.

Os dísticos (apresentados isoladamente ou em conjunto) não só facultam a movimentação como também criam uma estrutura binária em que se alternam o claro e o escuro, o silêncio e o verbo, o vazio e o cheio, o comum e o inusitado. É do choque destes contrários que nascem poemas marcadamente não-enfáticos, caracterizados por uma freqüência sonora baixa. Trata-se, na verdade, de uma espécie de infra-som, de uma poesia despida de pretensões grandiloqüentes.

Assim, a palavra é, para Dala Stella, como o discreto vaga-lume, com suas combustões controladas que formam uma pequena e rasteira constelação: alternância de luz e sombra a conduzir o leitor através de sinais isolados uns dos outros. Se eles não formam uma linha contínua, uma trajetória retilínea, não quer dizer que sejam carentes de configuração. Sua trajetória ziguezagueante, apesar de toda a fragmentação, desenha com pontilhados um mapa.

Sendo uma imagem do próprio estilo destes dísticos, os vaga-lumes funcionam também como móvel biográfico, ligação do poeta com sua infância passada no bairro agrícola de Santa Felicidade (Curitiba), marcando dessa forma a adesão a um espaço carregado de simbologia. O poeta de agora é o menino que outrora caçava pirilampos. Daí a poesia ser uma restauração deste território em que imperava um olhar desarmado sobre a realidade. Dala Stella habita esta dimensão para resgatar a essencialidade das coisas. Nesse sentido, a caminhada pelas ruas de Santa Felicidade é uma viagem no tempo, através da convocação dos elementos mitopóeticos: os animais arquetípicos (pássaros, borboletas, peixes), os rios, as árvores, as ruas de outrora...

Revendo pela memória a infância, ele termina um dos poemas com uma imagem muito significativa: "a casca da cigarra, seca no palanque da cerca". É esta cerca o limite que deve ser transposto rumo ao passado. A presença de uma casca de cigarra chama atenção para o seu canto e, por extensão, para toda a infância, que súbito virou um oco, uma ausência. Mas a infância não está irremediavelmente perdida. Da mesma forma que as larvas das cigarras permanecem vários anos no solo, alimentando-se das raízes das plantas, a idade seminal sobrevive nos subterrâneos da alma, podendo a qualquer momento voltar a cantar. Rebelando-se contra uma visão pessimista da vida, o poeta encontra na disponibilidade lírica para apreciar as coisas uma ponte que o liga a este país íntimo, reabitável através da poesia.

Mas o pirilampo também é a personificação do pequeno, do pouco expressivo, marca registrada do olhar do poeta. O primeiro poema centra-se justamente no gesto quase zero, numa referência a esta poesia de infra-som. O grau quase zero do poético é obtido, no nível formal, mediante a valorização de versos brancos (só raramente os seus poemas são rimados) em que se busca não chamar atenção. Isto está exemplarmente expresso num dos poemas:

antes, quando a poesia me invadia
era aquela eufórica alegria

agora me largo quieto
sentado à beira do rio

transcorrer em silêncio a água
e a poesia pelos meandros

 

O poeta apresenta-nos uma passagem para a madureza. Ainda no período de imaturidade, a poesia é comparada ao deslumbramento, ao entusiasmo. Note-se que no primeiro dístico, quando é recordado este tempo, há o uso de rimas soantes, ocorrendo uma intensificação sonora através da rima interna:

antes, quando a poesia me invadia
era aquela eufórica alegria

 

O poema, visto como uma festa de som, como estardalhaço, torna-se, com a maturidade, um movimento silencioso de águas. O verbo ganha então uma condição tranqüila, subaquática, ligando a poesia à figura do peixe, símbolo da alegria discreta, contida, suave, que vem da própria experiência da dor:

o incompleto se curva inicialmente
sobre o ventre de si mesmo

como a dor que leva à doçura
não ignora a alegria dos peixes

submete-se ao fluxo das correntes
onde há suavidade, silêncio

 

Aqui está o centro da visão do poeta. Ele não busca apenas recuperar nostalgicamente o que se perdeu, mas fecundar as dores da existência mediante o cultivo de um prazer brando. Na aceitação do vazio (origem do poema e da vida) fica definida a luta contra o desespero. Isso, num país marcado pela falta de motivos para a alegria, faz com que o seu texto tenha uma significação subversiva.

Se o vaga-lume é uma metáfora da forma do poema, o peixe é uma referência ao seu conteúdo. Não há um sentido seguro, disponível ao leitor. O sentido, assim como os peixes, vive em movimento nas entranhas da água. E só pode ser possuído quando transformado em matéria inerte:

ao invés de terrível espadanar
curva-se à mão a espinha

desfaz-se em letras viscosas
grudando os dedos como barbatanas

a flacidez do pescado abranda
o impudor de seu contorno

fechada, a boca não impede
o odor de nascer fora d'água

nem os olhos abertos guardam
como reserva o mar perdido
 

O sentido só existe enquanto coisa viva que pode ser vislumbrada à distância, mas que jamais pode ser dissecada. O peixe é, portanto, a metáfora deste sentido esquivo que rouba a isca até do pescador mais prevenido.

Dentre os peixes, a carpa tem um lugar especial neste bestiário poético. Ela é a representação da serenidade, mas também o eixo mítico de uma poética que não se debate contra as coisas inevitáveis. Esta simbologia é cara aos orientais, com quem Carlos Dala Stella dialoga principalmente no que diz respeito à aceitação da finitude humana e ao verbo não-enfático: "a carpa, a partir do momento em que se encontra em cima da tábua da cozinha, prestes a ser retalhada, permanece imóvel - e assim é que o homem ideal deve proceder diante da morte inevitável" (Chevalier, Dicionário de Símbolos).

É através de uma viagem ao bosque das imagens que o leitor vai se incorporando a uma reflexão, que nem sempre se passa pelos domínios do intelecto ("O pensamento procede por imagens"), sobre a condição humana e a urgência de se desfrutar da vida sem se entregar ao desânimo, com disponibilidade para alegrar-se suavemente com as mínimas coisas do chão da existência. Numa época de simulacros, a poesia de Dala Stella ganha pela sinceridade com que arrebata o leitor.

Tudo isso é plasmado em poemas que se distinguem por uma modernidade sóbria, sem os deslumbramentos verbais, sem as citações exaustivas e as brincadeirinhas de vanguarda. Trata-se de um poeta que não se esforça adolescentemente para parecer moderno, como se tornou praxe em nossa poesia mais jovem. Ele não escreve investindo na pose de poeta, mas para dar respostas à sua condição de ser humano que se dilacera diante de um mundo violento e que busca fundar um espaço poético em que o leitor encontre conforto. Este seu território imaginário desde já passa a fazer parte de nossa geografia.
 

 

 

Velazquez, A forja de Vulcano

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Myriam Fraga