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Celso Brito


 

Um certo sertão

Por um poema de Soares Feitosa


Contra o mar e a seca, só o sonho.
Nenhuma reflexão cabe a esse fato.
Todas são aflições da alma.

Existe um abismo entre a lágrima e a sua ausência.
Por isso há os que choram,
os que esperam a beira do caminho
e os que cruzam horizontes em busca da brisa.

É inútil esperar pelo mar.
A terra seca sob os pés separa dois mundos.
E essa onda sempre volta,
sem nunca ultrapassar os limites da areia.

O oceano, que daqui um dia se foi, não volta mais.
Fugiu com os navios no caminho do vento,
levando os homens e o coração das mulheres.

Resta essa paciente espera,
mesmo quando não há mais o que esperar.
Sendo assim, não cabe a mim encerrar a história;
embora acredito que queira saber como isso termina.

Um viajante de longe foi quem me disse
da inútil lágrima no mar-oceano.
Ela nada resolve, nada acrescenta ao seu volume.
Mas quem ama sempre volta... acredita no mar.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Celso Brito



O Nascer das Criaturas
por um poema de Ledo Ivo


Chove, uma neblina perfumada.
Gota a gota escorre,
por entre lábios e pernas.
O sol despeja raios solertes
na pele rósea.
Erguem-se da grama as criaturas.
E a noite cobre o nu
que a natureza contempla.

A aurora encontra vestígios,
que denunciam a partilha.
O tempo segue as pegadas
e fecunda no vão da carne
um pequeno grão de vida.
Cumpre-se a gestação
e da carne irrompe pujante espiga.
Repousa agora o corpo frutificado.

 
 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Celso Brito


 

Antítese


Na exatidão
sou a distância maior
entre dois pontos distintos

No sonho
sou o medo daquele
que está sempre acordado
a espreitar o inimigo

Na vida
sou o saltimbanco
que apresenta seu espetáculo
para uma platéia entorpecida

No filme
sou a cena de ação
onde morre o mocinho

Na fuga
sou a distância que separa
o ataque da presa

No amor
sou a semelhança cômica
entre a careta do orgasmo
e a agonia da morte

Na noite
sou a prostituta sem nome
de sexo carnudo
servido a todas

No beijo
sou a boca de homem
com lábios fortes
apertando a alma
sem sentimentos

Na hipótese
sou a dúvida
que desmente a tese
e mantém o problema

No fim
serei poeta
para poder tudo outra vez

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

 

 

 

 

 

 

 

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Celso Brito


 

Da torre de vigília


Esse vaga-lume aceso em volta de nós.
Esse olho que espreita nosso gozo,
do fundo escuro do seu tempo.
Esses quintais.
Esses quartéis.
Essas ladeiras.
Esse sol queimando a pele.
O que mais nos resta?

O segredo e a descoberta.
Damos qualquer resposta.
E subimos ao altar,
e nos despimos,
diante dos olhos estarrecidos das imagens,
Nosso nu,
nosso desgraça.
Tamanha desordem...
Os deuses dentro de nós.

No teu olhar um brilho frio de metal.
O vinho tinto que derrama
nos degraus de marfim.
O céu de acrílico que cai
da arquitetura de néon.
E o manto de estrelas que fica
não te acompanha no teu ir.

Um soar descompassado de sino nos anuncia.
E cobre de luto,
o que seria um novo amanhecer.

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Celso Brito


 

Meninice


Ah se eu morresse de amor!
Que bonito seria!...
Meu nome, nome de rua.
Meu busto, busto de praça.
Meu coração, amuleto da sorte.

E as moças de nascimentos distantes
- amores mais distantes ainda -
carregadas de flores para o meu funeral.

Os casais e os amantes das noites,
mentindo para uma estrela distante,
na qual puseram o meu nome.

Ah se eu morresse de amor!
Só que sem medo, sem dor,
sem aviso prévio, durante o sono.
E durante pouco tempo.

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Celso Brito


 

Noturno


Me cresce da alma feito praga
desdém do dia inútil,
que me sorrir da janela
onde dormem trepadeiras.

O meu Crio em Deus Pai
- que não creio -
rezo ante a beleza
imutável dos altares,
edificados sobre mim.

Copio olhares sem nomes,
ausentes ao momento lírico.
O poema se esfarrapa no ar de horrores.
Um carro cruza sobre mim, a avenida.

 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Celso Brito


 

Variações do Terceto I

 

Distante, um vaqueiro
tange o gado.
Mistura-se ao mugido.
 
Na mira dum caçador
um coelho se esconde...
Sem sorte!
 
O desenho da fumaça
projeta paz,
atrás do cigarro.
 
Enclausurado na rocha,
o inseto.
Protege seu veneno.
 
Cão no borralho,
na sombra um burro.
Coisas nossas!
 
Mato seco na estrada
Fim da colheita
Pássaros no paiol
 
Embaixo da mata
corre o riacho.
Desviando-se das pedras.
 
Seca... cigarra
Vida... vento
Casas vazias
 
Inútil. A mosca tenta
sem sucesso,
ultrapassar o vidro.
 
Candeias acesas
Toalhas brancas
Ninguém à mesa



 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Celso Brito


 

Variações do Terceto II

 

Pipa solta no horizonte
Linha<------ ----->partida
Brincadeiras do vento
 
Fim de tarde em Belém.
Chuva de periquitos
na copa das mangueiras.
 
Um cavalo vigia na sobra
o breve sono do vaqueiro.
É meio dia na fazenda.
 
Move o dia lento...
Deixa imóvel meu pensamento,
na palha do coqueiro, sem vento.
 
Chove em Macapá.
Gotas perpendiculares,
na linha do equador.
 
Imaginário possível:
meu verso convexo transborda.
Água da última chuva.
 
Galope de burro na estrada.
O bater de asas das rolas pardas,
abrindo passagem.
 
Revoada no cajueiro
Fim do dia. Silencia.
Periquitos no poleiro.
 
Chuva na copa da mata.
Vento brincando na estrada,
rouba-me o chapéu.


 

 

 

Tiziano, Mulher ao espelho

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Herodias by Paul Delaroche (French, 1797 - 1856)

 

10/05/2005