Carlos Felipe Moisés
Tradição Reencontrada
Lirismo e antilirismo em João Cabral
Foi em 1966, logo após A educação
pela pedra, que João Cabral pela primeira vez prometeu parar de
escrever, sob a alegação de que esgotara o veio e não tinha mais o
que dizer. Foi preciso aguardar até 1975, quando Museu de tudo
quebrou a promessa --em seguida refeita e de novo rompida, com A
escola das facas, em 1980. Na abertura desta coletânea, um bilhete
em versos, ao editor, declara: "Eis mais um livro (fio que o
último)". Em seguida os intervalos diminuem: Auto do frade, 1984;
Agrestes, 1985; Crime na Calle Relator, 1987; Sevilha andando, 1989
--sempre entremeados de entrevistas em que a mesma promessa é
refeita para ser descumprida. Que enigmas esconderá a inusitada
atitude?Uma explicação possível é que o poeta exige de si bem mais
do que seus leitores o fazem. Seu exacerbado rigor, além da própria
idade (Cabral é de 1920), o levam a declarar-se exaurido e
desistente, a cada novo livro. É o preço que paga por ter levado sua
poesia a tão altas paragens. A fama é implacável: a mesma devoção
com que o lemos nos leva a esperar que ele se recupere, para que
possamos fruir, sem cessar, sua energia criadora. Mas continua a
intrigar a promessa tantas vezes firmada quantas desmentida. Talvez
se oculte aí uma das chaves que permitirá compreender o sentido de
sua trajetória poética e humana. Antes de aventar outras
explicações, convido o leitor a deter comigo a atenção em Crime na
Calle Relator, marcadamente característico do último Cabral.
A exemplo do que vinha ocorrendo
desde Museu de tudo, não se trata de um livro "vertebrado", isto é,
composto a partir de um plano geral de estruturação. É uma recolha
mais ou menos arbitrária de poemas avulsos, "não chega ao
vertebrado/ que deve entranhar qualquer livro:/ é depósito do que aí
está", dizia o poeta na abertura da coletânea de 1975. Em entrevista
concedida no ano seguinte, como que para atenuar a severidade da
autocrítica, ele esclarece, referindo-se a Museu de tudo: "Fiz o que
todos os poetas fazem: escrevi, escrevi e publiquei o livro. Por
isso ele é menos rigoroso como concepção geral, mas não creio que se
possa dizer o mesmo quanto à concepção do verso".
A avaliação é correta e aplica-se
também aos livros posteriores, como este Crime na Calle Relator.
Aqui João Cabral utiliza uniformemente um só padrão métrico, o
octossilábico, de rimas ora toantes, ora consoantes, realizando um
esforço de disciplina e contenção invulgar na moderna poesia da
língua. Mas isso não é novidade. O leitor habituado à poesia
cabralina conhece de longa data sua aversão à "espontaneidade". Não
são novidade também a extrema concisão e o discurso elíptico, que
obrigam o leitor a uma cerrada atenção, sob pena de perder o fio do
que se diz, sempre sutil, velado, escondido nas entrelinhas.
Considere-se por exemplo o poema
intitulado "A sevilhana que não se sabia" (composição aliás
reproduzida na coletânea mais recente, Sevilha andando), cujos
versos iniciais
Quando queria dá-la a ver
ou queria dá-la a se ver
ei-lo então incapaz de todo:
nada sabe dizer de novo
soam herméticos, ou ao menos dúbios,
à primeira leitura. "Dá-la a ver" entende-se: dar a ver a sevilhana,
"que não se sabia", como informa o título. Mas quem o "queria"? Bem,
por ora não importa; alguém o queria, quem quer que seja, que não a
própria sevilhana. E "dá-la a ver" a quem? Ao corrigir o primeiro
verso, o segundo introduz um "se" gerador de inevitável ambigüidade.
Permitindo que a sevilhana seja vista, por qualquer observador, esse
alguém também se vê a si próprio. A ambigüidade, decorrente da
elisão dos pronomes retos e da similitude de formas verbais e
pronomes oblíquos, para as duas pessoas, estende-se por todo o longo
poema, composto de quatro conjuntos simétricos de dez dísticos. ("Eu
tenho mania de simetria", confessará o poeta em entrevista recente.)
A ambigüidade só ao final se esclarece, entre parênteses: "não fosse
ele homem do Nordeste".
Isso nos obriga a reler o poema,
cientes agora de que esse alguém que queria dar a ver a sevilhana é
o próprio poeta (que também "não se sabia"?), imiscuído em seu
motivo literário desde o primeiro verso --o que também não chega a
ser surpresa. Mesmo que não se tivesse dado conta antes, até o
leitor menos atento já o sabia, desde as "Dúvidas apócrifas de
Mariane Moore", esclarecedor poema de Agrestes, que assim principia:
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
Crime na Calle Relator não escapa à
regra: é uma sucessão de poemas que "falam de coisas", poemas
descritivos e narrativos, expediente em que o autor vem insistindo
há muitos anos. O recenseamento dos seus motivos não parece ser, de
imediato, revelador: a neta que leva um gole de cachaça à avó no
leito de morte; a sevilhana que é Sevilha sem o saber; a suicida que
conduz uma tartaruga pelas ruas; três viúvas que conversam
interminavelmente a propósito das filhas artistas; um ferrageiro de
Carmona que explica a diferença entre ferro fundido e ferro forjado;
o psiquiatra; o leito de lama do Parnamirim, em Recife; outra vez
Sevilha, e assim por diante. O resultado é um colorido mosaico de
tipos humanos --dramatis personae que povoam cenários variados,
sempre em clima de estranheza, nonsense, magia.
Não é novidade também, por fim, a
presença dominante do tema da morte, que já se insinua no título* e
comparece, explícito, em boa parte dos poemas. Assim tem sido, a
rigor, desde os primeiros livros. É possível afirmar que o tema da
morte se erigiu, há longo tempo, em verdadeira obsessão do poeta,
seja a morte "social", seja a "pessoal", distinção mais de uma vez
sugerida por ele próprio. Mas fiquemos por ora com a presença
insistente de thánatos nas longas composições de Crime (ex-morte) na
Calle Relator.
Sua leitura atenta revela algumas
surpresas ao leitor menos familiarizado com o último João Cabral. Em
quase todos os poemas, só aparentemente impessoais, ocorre aquela
simbiose entre o poeta e seus motivos, como vimos em relação à
sevilhana. Não se trata apenas de um falar das coisas para que o
leitor leia, aí, uma "indireta confissão", mas um falar de coisas e
um falar de si, este também explícito, que abertamente se confundem.
Referindo-se a três viúvas, "As
infundiosas", diz o poeta, outra vez entre parênteses: "Conheci bem
as três artistas;/ eram todas minhas amigas". No final, discorrendo
sobre o caráter inconcluso da conversa, ele esclarece:
Visitá-las era ir a um teatro
que o espectador vive do palco.
Tinha a visita de ir à mesa
e tomar parte na conversa,
e quase sempre alimentá-la
com infúndios da própria lavra.
Só então o leitor percebe que as três
viúvas são também o próprio poeta e que essa conversa interminável
representa, também, a sua própria poesia. Relido o poema a essa luz,
ganha dimensão autobiográfica a espécie de geografia arbitrária que
lhe serve de fio condutor. Em sua palração labiríntica, as viúvas
vão enumerando nomes de lugares: Sevilha, Madrid, Índias, França,
Japão, Recife, Arábia, Olinda, Rio, Peru, Cachoeiro do Itapemirim,
Inglaterra, Alemanhas, Suíças, Irlandas... A atraente enumeração
compõe um anti-roteiro onde se pode ler, também, a perambulação
errante, o périplo de passageiro clandestino do poeta-diplomata.
Já em outras composições João Cabral
se rende abertamente ao impulso autobiográfico. "Aventura sem caça e
pesca", por exemplo, descreve o rio Parnamirim, percorrido pelo
poeta, menino, como se reescrevesse, adulto, o arqui-lugar-comum dos
"Meus oito anos", de Casimiro de Abreu --aliás, discretamente
citado, "amor e medo", na terceira estrofe. (Da mesma forma, "The
return of the native", poema de Agrestes, é uma versão muito
cabralina da "Canção do exílio", de Gonçalves Dias.) Na mesma toada,
em "O desembargador" o poeta narra como foi levado, jovem, para o
Rio de Janeiro, depois da formatura, em Recife, e, muitos anos e
muitos países depois, aposentado, já de volta ao Rio, retorna
sentimentalmente às origens, "volta ao sotaque nordestino,/ volta a
vestir-se do velho jeito". Enfim, falando de coisas e contando
"causos", João Cabral tem falado muito de si, cada vez mais aberta e
explicitamente, nos últimos livros, exatamente desde o instante em
que prometeu parar, pela primeira vez. Com isso voltamos à indagação
inicial.
A educação pela pedra de fato
assinala, já em 1966, um impasse na trajetória do poeta. Até aí João
Cabral percorrera um caminho sempre ascendente, desbravador, em
busca da definição de uma poética anti-sentimental, anti-subjetiva,
antimelodiosa; uma poética fruto da vontade deliberada e não da
inspiração; uma poética antitradicional, em suma. Este o lado
marcante de sua personalidade literária, o lado "engenheiro",
técnico, disciplinado, que leva até onde é possível o seu projeto
construtivista. Notável e surpreendente no esforço cabralino é que
essa nova poética se incorpora aos poemas e vai sendo construída
verso a verso, em vez de ser alardeada em prefácios e manifestos,
como é hábito entre nós. Desde a estréia, com Pedra do sono, de
1942, até A educação pela pedra, o que o poeta produz é
predominantemente "poesia da poesia".
A obstinação artesanal daí resultante
foi o que chamou a atenção de críticos e leitores, a partir dos anos
50 e 60, e não incluo aí, está claro, os que só tomaram conhecimento
de João Cabral após o êxito de Morte e vida Severina, em 1968, no
palco, e a isso reduzem o seu convívio com o escritor pernambucano.
Diga-se de passagem, o texto desse "Auto", publicado pela primeira
vez em Duas águas, em 1956, bem como sua primeira encenação, dois
anos depois, por um grupo amador em Recife, passaram despercebidos.
Foi preciso que Roberto Freire, com a inestimável contribuição da
música de Chico Buarque, levasse o "Auto de natal pernambucano" à
premiação no Festival de Nancy, em 1968, para que o poeta ganhasse
repercussão nacional. A circunstância colaborou indiretamente para
que a inovadora poética de João Cabral vencesse as últimas
resistências e se impusesse. Mas, fato significativo, a quase
totalidade dos estudos abrangentes sobre a poesia cabralina são
posteriores a essa data, embora até 1966 esta já tivesse trilhado
uma longa e fundamental etapa de sua trajetória.
Tudo somado, o lado engenheiro da
poesia de João Cabral vem a ser hoje uma conquista definitiva:
suplantou as reservas que se lhe impuseram nos primeiros tempos,
ajudou a combater os excessos do lirismo vulgar e se impôs como um
dos veios mais férteis da poesia da língua, atraindo seguidores em
grande número, dos dois lados do Atlântico. Nos anos recentes, o
itinerário que vai de Pedra do Sono a A educação pela pedra tem sido
objeto de estudos sem conta, incluindo monografias e teses
universitárias. O que em 1966 era surpresa e novidade, hoje é
lugar-comum. Desnecessário pois insistir no óbvio. Fixemos a atenção
apenas nos elementos-chave e em alguns aspectos menos explorados.
Digamos que a partir de 1945, ano do
segundo livro, O engenheiro, João Cabral decidiu que não valia a
pena ser simplesmente "mais um" a engrossar a mesmice da
autocomiseração presunçosa que caracteriza nosso lirismo. Nesse
instante, talento criador e lucidez crítico-teórica se deram as
mãos, a fim de marcar uma presença nova, original, única. Foi o que
se deu até o impasse representado pela cabal definição dessa poética
do rigor, por volta de 1966. De fato, um projeto poético centrado no
propósito de negar a tradição abre diante de si uma perspectiva
necessária e deliberadamente limitada, como tive a oportunidade de
assinalar, já naquela data (V. "Registro"). Depois de A educação
pela pedra, estando já cumprido o propósito, em todas as nuances
possíveis, para onde prosseguir? O impasse que então se instala tem
pelo menos aparentemente uma configuração dilemática: prosseguir
será ou repetir-se ou contradizer-se. Por isso, nessa altura, o
poeta dá por encerrada a tarefa e começa a prometer parar, como que
paralisado pelos limites que se auto-impusera.
Se insistir nas "lições de poesia"
implicava repetir-se, a única alternativa lógica seria mesmo o
silêncio. Mas restava considerar a alternativa indesejada, porque
nada lógica, que era enveredar por outro rumo, correndo o risco de
voltar atrás e se contradizer. Qualquer que fosse, esse outro rumo
resultaria em livros não-vertebrados e provavelmente levaria à
retomada do confessionalismo e do sentimentalismo, tendência
arduamente sufocada ao longo de toda a trajetória anterior.
Repetir-se ou contradizer-se... É compreensível que, para um poeta
rigoroso e exigente como João Cabral, tal perspectiva incomodasse a
ponto de ele pensar seguidamente em desistir.
Os livros posteriores a 1966, com
efeito, não trazem contribuição de vulto à poética do rigor
ascético, até aí construída, e a "poesia da poesia" já não ocupa um
lugar preponderante em suas preocupações. No que se refere a inovar,
abrir caminhos, revolucionar, a poesia de João Cabral descreve um
movimento ascensional até A educação pela pedra e depois se mantém
no mesmo alto patamar. Isso talvez decepcione a alguns leitores, que
se habituaram ao impacto provocado repetidas vezes pelo poeta, entre
1942 e 1966, e esperam a cada novo livro uma revolução. A partir de
Museu de tudo, não há mais impacto, só livros não-vertebrados. O que
teria ocorrido?
Ocorreu que o subentendido começou a
aflorar, embora sem a ostensividade do seu avesso, até então
alardeado. A paciente construção daquela poética do rigor não
constituiu, como hoje se sabe, apenas um falar de coisas mas também
um falar de si, não só por obra da "confissão indireta", como vimos,
mas sobretudo porque esse esforço foi a maneira que o poeta elegeu
para firmar sua personalidade, extremamente ciosa de seu quid
diferenciador. A face ostensiva dessa personalidade é a que todos
conhecemos bem e admiramos, porque originalíssima nos quadros da
língua: a do artista metódico e disciplinado; calculista e racional,
lúcido e contido, armado em pudor; senhor de si, em suma. Mas,
note-se, é uma face auto-imposta, sistematicamente. Será que João
Cabral é assim ou decidiu ser assim, para impedir que a outra face,
latente, sempre à espreita, viesse à tona? Esta outra face --aí o
receio do escritor-- poderia coincidir com a auto-imagem que nossos
poetas tradicionais exibem, sem pudor: excitação, tumulto interior,
emoções incertas, sentimentos vagos, verbalismo, autopiedade,
narcisismo. Por isso o poeta rompe com a tradição, logo no início da
carreira. Por isso sua poesia é repleta de referências a modelos
estrangeiros. Mas por isso mesmo seu esforço só adquire pleno
sentido à luz da tradição lírica luso-brasileira.
O radicalismo antitradicionalista de
João Cabral denuncia a extrema importância que o poeta atribui a
essa tradição e não seu desprezo por ela; denuncia o medo de
incorrer nos mesmos exageros, na mesma banalidade. Só um poeta
firmemente enraizado na tradição, e inconformado com esse
enraizamento, poderia alardear um radicalismo tão intransigente. Ao
negar a tradição, o poeta passa a carregá-la consigo, como um
fantasma a ser exorcizado, tarefa em que se empenha desde o início,
sabedor de que jamais será capaz de desincumbir-se dela: é
cometimento para o resto da vida. Romper com a tradição obriga a
seguir rompendo, indefinidamente, e obriga ao mesmo tempo a conviver
para sempre com ela, vale dizer, com o lado indesejado de si mesmo.
Para sempre ou até cansar, ou até que a intransigência ceda. Ceder
não seria contrariar a coerência interna daquela poética do rigor?
Insistir até cansar não seria uma forma de violentação? O fato é que
a personalidade integral do poeta já não esconde mais que é
constituída também de um lado sombrio, egotista, sentimental. Por
isso o confessionalismo, o auto-biografismo, o tom memorialístico e
saudosista dos últimos livros. O subjetivismo declarado, enfim, e
não apenas subentendido.
Visto de outro ângulo, o impasse
assinalado na altura de A educação pela pedra radica no confronto
dialético entre os pólos da tensão e da descontração. A partir do
impasse, esta última começa lentamente a abrir caminho em meio ao
maciço predomínio daquela, embora não chegue a avançar muito, como
veremos. O lado engenheiro exigiu desde o início uma atitude de
máxima contenção intelectual, um esforço de cordas retesadas até o
limite extremo, contra a possibilidade da explosão emotiva. Daí o
permanente estado de alerta e a perplexidade, assim expressos, por
exemplo, na abertura de A escola das facas:
Um poema é sempre como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
A partir daí as cordas começam a se
distender e o "potro", a mover os pés. Um dos indícios mais
evidentes da descontração que aos poucos se insinua no último João
Cabral é o confessionalismo autobiográfico, explícito. Mas é também
a presença marcante de um humor quase-galhofa, zombeteiro, digamos
que mais para Macunaíma do que para Brás Cubas. A partir daquela
ferina reflexão "sobre o sentar-estar no mundo", de A educação pela
pedra, dedicada à "tábua de latrina,/ assento além de anatômico,
ecumênico,/ exemplo único de concepção universal,/ onde cabe
qualquer homem e a contento"; ou a partir da pequena obra-prima de
sagacidade que é "España en el corazón", de Agrestes, que,
respondendo ao mote "A Espanha é uma coisa de tripa", assim termina:
De tripas fundas, das de abaixo
do que se chama o baixo ventre,
que põem os homens de pé,
e o espanhol especialmente.
Dessa tripa de mais abaixo,
como escrever sem palavrão?
A Espanha é coisa dessa tripa
(digo alto ou baixo?), de colhão.
A Espanha é coisa de colhão,
o que o pouco ibérico Neruda
não entendeu, pois preferiu
coração, sentimental e puta.
A Espanha não teme essa tripa;
dela é a linguagem que ela quer,
toda Espanha (não sei é como
chamar o colhão de mulher)--
a partir desses dois momentos-chave,
como eu dizia, uma nova espécie de humor, mais descontraído que a
acidez de antes, ganha ingresso na visão de mundo de João Cabral.
Mas não exageremos: embora atenuada, a tensão continua dominando a
cena. O "potro" está um pouco mais à vontade mas continua preso a
rédeas bem firmes. O que esses e outros exemplos mostram de
descontração são somente algumas manchas, aqui e ali, que talvez até
passem despercebidas ao leitor menos atento. Mas a mudança é
suficiente para que se instale, pleno, o jogo dialético
tensão/descontração, que substitui a equação anterior, em que o
primeiro pólo sufocava o segundo. O que temos aí, enfim, são apenas
mais alguns indícios de que o auto-alardeado impessoalismo do poeta
não passa de bem urdido disfarce.
Com efeito, nada mais original e
personalista, nos quadros de uma poesia ególatra como a nossa, do
que esse obstinado e aparente impessoalismo. Até a encruzilhada de A
educação pela pedra, o poeta fala efetivamente de "coisas" e não de
si. Em seguida passa a se confessar, a se mostrar diretamente.
Salto? Reviravolta? Parece que não, parece simples e natural
evolução, de dentro para fora. De que coisas falava ele, até então?
A paisagem nordestina, certa similar paisagem ibérica, os utensílios
do cotidiano, uma dezena de motivos que lhe são caros, como a
tourada, o futebol, a arte de alguns poetas e pintores, o flamenco,
a aspirina e outros mais. Quaisquer que sejam, essas coisas acabam
por se confundir, convergindo para um denominador comum, o olho de
João Cabral, que a tudo molda. Ferro forjado e não fundido (como
ensina certo ferrageiro de Carmona), à imagem e semelhança da
personalidade de seu criador. Um engenheiro, um retirante, uma
bailarina andaluza, Miró, Ademir da Guia, Frei Caneca, Manolete,
Mariane Moore, uma sevilhana que não se sabia --todos se igualam sob
o olhar do poeta e se tornam variações em torno da "pedra de
nascença [que] entranha a alma", de que fala A educação pela pedra.
Todos se transformam em exemplos e representações intercambiáveis da
obsessão de João Cabral: a ética/poética da contenção e da
disciplina, do pudor e do autodomínio.
Tal obsessão, enfim, só se compreende
num poeta brasileiríssimo, impregnado da tradição que repudia, ou
parece repudiar. Nenhum de seus modelos estrangeiros é tão
obstinadamente impessoal e rigoroso, nem expressa tamanho horror ao
confessionalismo e ao sentimentalismo. João Cabral assim o faz, até
reconhecer, não sem forte relutância, que este outro lado é parte
integrante de sua personalidade literária. Esta parece ser a
história do último João Cabral, incluindo-se aí a coletânea mais
recente, Sevilha andando, que não altera o quadro aqui descrito. Nos
últimos anos, o poeta não está mais à procura da radical
originalidade, porque esta já fora superiormente conquistada e sua
poesia não corre mais o risco de ser confundida com o frouxo lirismo
da tradição. O último João Cabral --menos rigoroso, mais
descontraído, quase intimista, saudosista, autobiográfico-- resulta
em ser, afinal, o mesmo de sempre, talvez mais "humano". Só deixou
de lutar à "beira do extremo" contra seu avesso, que não é seu
contrário, mas seu complemento. O rigor se tornou uma segunda
natureza.
Psicologia da composição, livro
famoso de 1947, propõe "cultivar o deserto", metáfora da criação
poética. Ao longo dos anos, a secura desértica veio a se tornar
emblema, e uma das mais precisas definições, do projeto cabralino.
Mas se voltarmos ao texto de mais de quarenta anos atrás, leremos:
"cultivar o deserto/ como um pomar às avessas". Do lado de fora,
tensão, disciplina, objetividade --o deserto; do lado de dentro,
descontração, abundância, colorido --o pomar. Mas um é como o outro,
só que às avessas: o primeiro não pretende negar nem excluir o
segundo. Ao contrário: uma vez cultivado, o deserto deixará aparecer
o pomar que esteve o tempo todo escondido em seu bojo, como um
fantasma.
Isso conduz à confirmação de que não
estamos diante de uma poética excêntrica, estrangeirada. Na verdade,
estivemos sempre em face da expressão mais legítima, porque velada,
discreta, da tradição lírica luso-brasileira, no que esta possui de
mais valioso e renovável. Afinal, combater efetivamente a tradição
não consiste em decretar que ela deixou de existir, como o fazem
certas vanguardas ingênuas, mas sim em trazê-la até o presente,
atualizada e revigorada. Quanto a isso, nenhum de nossos poetas
modernos foi mais radical e mais bem sucedido que o autor de Pedra
do sono.
O aparente paradoxo decorre de João
Cabral haver insistido sempre em se mover entre pólos extremos,
supostamente inconciliáveis: subjetivo/objetivo,
tensão/descontração, intelecto/emoção, ordem/desordem. Morte e Vida,
em suma --severina ou outra. Na verdade, a radicalização extremista
denuncia o fundo embasamento impulsivo e emocional da personalidade
criadora do poeta, terreno movediço e indesejado, mas inalienável,
que a máscara do engenheiro racional e comedido procurou encobrir,
ao longo dos anos. A partir do impasse de 1966, como vimos, a
oposição dos contrários vai aos poucos cedendo lugar a uma espécie
de fusão, que aponta na direção da síntese almejada: o ser total. De
certo modo, uma troca de sinais, que busca a frieza da emoção e a
paixão do intelecto. Por que então essa luta obstinada em exorcizar
um fantasma aparentemente inexorcizável? Porque esta seria a única
maneira de enfrentar a obsessão primordial, a certeza da morte, ou,
o que dá no mesmo, a única maneira de afirmar a certeza da vida, em
termos de individualidade intransferível, personalíssima --a vida
como conquista voluntária, autodeterminada, e não como simples dom
concedido a qualquer vivente.
Basta atentar nos motivos e temas
recorrentes, e suas implicações. O tema obsessivo, até A educação
pela pedra, é a própria poesia; daí por diante, dá-se a dispersão
por um número crescente de interesses. Diversidade? Heterogeneidade?
Só aparentemente. Bem vistas as coisas, quer a convergência
monotemática da fase inicial, quer a variedade dos temas e motivos
da fase subseqüente, falam de uma só e sempre a mesma idéia fixa: a
obsessão da morte. Seja explicitamente, como essa Morte logo
substituída por "crime" na Calle Relator, ou um "caixão vitrina", um
"cemitério alagoano", um "funeral na Inglaterra", ou a dura
peregrinação de Severino e seus pares; seja implicitamente, como
ocorre ao longo de toda a obra, sob o disfarce dos mais variados
motivos --é sempre a mesma morte, "a indesejada das gentes" (título
de uma seção de Agrestes, tomado de empréstimo a Manuel Bandeira)
que serve de estímulo à poesia de João Cabral.
Afinal, empenhar-se obstinadamente no
propósito do autodomínio, no rigoroso controle sobre os impulsos e
tendências naturais, foi a reação que o poeta elegeu, certamente sem
o premeditar, para fazer frente à obsessão primordial de thánatos,
na tentativa de aplacar ou atenuar o pânico advindo da certeza da
morte. Ao longo da trajetória podemos ler, nítida, a recusa em
aceitar que ao nascer já se esteja a caminho da morte, bem como a
recusa paralela em satisfazer-se com a vida espontânea cuja floração
o homem pode contemplar em si próprio, ou à sua volta, sem esforço.
A vida verdadeira não seria a que brota por inércia no âmago de cada
criatura, mas a que se constrói dia a dia, deliberadamente, sob o
rígido controle da vontade e da consciência. Permitir que os
impulsos se manifestem livremente, entregar-se àquilo que a cega
natureza determina, corresponderia a contemplar passivamente o
doloroso espetáculo do ser que aos poucos se deixa consumir. O
heróico e prolongado esforço cabralino se concentra por inteiro na
recusa em aceitar tal perspectiva, a perspectiva posta a circular
pelo pensamento existencial, segundo a qual somos todos
seres-para-a-morte.
A solução lógica encontrada pelo
poeta foi deter o fluxo, interromper a corrente e altear-se,
soberano, impondo-se o ritmo e a forma, a voz e o rosto capazes de
afirmar a vida contra a morte. Não basta estar ou surpreender-se
vivo, pois o que assim se obtém é tão somente a vida "severina", tão
negativa quanto a morte. É preciso saber-se vivo. E saber-se vivo é
auto-educar-se; etimologicamente: autoconduzir-se. Auto-educação
pela pedra. Autoconduzir-se para poder atuar contra a tradição
limitadora; não se deixar conduzir, não se deixar seduzir pelas
facilidades dessa mesma tradição.
Severo, lúcido, exigente, nem ao
menos essa pequena satisfação o poeta concede a seu leitor, a de
chegar por conta própria à decifração do enigma: João Cabral escreve
para saber-se vivo, para fazer frente à morte. No poema "O
exorcismo" (Crime na Calle Relator), que reproduz, com aparente e
didática frieza, uma conversação mantida com o psiquiatra, em
Barcelona, o poeta esclarece:
"Por que da morte tanto escreve?"
"Nunca da minha, que é pessoal,
mas da morte social, do Nordeste." [...]
"Seu escrever da morte é exorcismo,
seu discurso assim me parece;
é o pavor da morte, da sua,
que o faz falar da do Nordeste."
Ao leitor, que teve a paciência de me
acompanhar desde o início, resta o consolo de haver compreendido o
porquê da promessa de parar, tantas vezes anunciada quantas
desmentida. O consolo de haver compreendido ou de haver encontrado
uma explicação plausível, o que nem sempre é o mesmo. E resta-lhe
também a expectativa de que, outra vez refeita, a promessa venha a
ser mais uma vez quebrada, para que não se interrompa a exemplar
lição de poesia --lição de vida-- com que há mais de meio século nos
brinda o ex-diplomata João Cabral de Melo Neto.
O presente ensaio, incluído no livro
Literatura para quê? (Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996,
págs. 33-46), retoma e desenvolve idéias anteriormente expostas em
uma série de artigos, a saber: "João Cabral, poesia e poética:
I-IV", Suplemento Literário, O Estado de São Paulo, 27/8 e
3-10-17/9/66; "Morte (e vida) na Calle Relator", Jornal da Tarde,
São Paulo, 28/11/87; "João Cabral, o outro e o mesmo", Cultura, O
Estado de São Paulo, 29/9/90.
Leia obra poética de João Cabral de Melo Neto
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