Clauder Arcanjo
O retorno do burguês
Lutara
avidamente para superar as inexorabilidades do destino. Fizera-se
homem, edificara posses, construíra uma carreira digna e bendita
pelos cânones capitalistas. Carro, casa, esposa e filhos, patrimônio
para o futuro, profissão e algumas passagens pelas colunas sociais.
Batismo de pequeno burguês. Enfim, aquele estágio que satisfaz o ego
dos parentes, que identificam ter com ser, e atrai um ligeiro
sentimento de inveja dos não-aquinhoados.
Voltemos no
tempo e vejamos como tudo começou. Fora uma criança que não tivera
olhos para as brincadeiras da época. Só lhe estimulava os jogos de
poder e ganância. Era maluco por ter um níquel entre os dedos. Com o
tostão de hoje se preparava para o milhão de amanhã. Avidamente.
Sentia-se sempre incomum. Seus conterrâneos, presos e amantes
daquela pequena vida, ele com asas sedentas para novos mundos... Um
Ícaro em busca do céu da riqueza.
O tempo corria e
só aumentava esta ânsia pela posse, compra da vida. Resolvera
abandonar a pequena cidade natal. “Aquela gente era muito parada!”,
vociferava. “Tal local não reúne as oportunidades para satisfazer
minhas ambições!”. Assistira boquiaberto aos programas de televisão
na casa de Zé Gerardo, seu colega de colégio, e babara com a visão
da metrópole: cheia de cifras e de prédios arranhando os céus.
“Gente! Era isso!”, pensara. E não dormira aquela noite, olhos
abertos para este novo mundo. Já se via lá, entre os eleitos. Dois
meses depois, pé na estrada. Viajara no misto até a cidade próxima e
de lá, trem até a cidade grande.
Sofrera e ralara
muito. Tudo demandara muito esforço e superação. Foram lutas em
matas escuras e densas, parcas de estímulo e cheias de ossadas de
desistentes. Só o farol do sonho do ter, lá no fundo, a iludir os
músculos e cérebro de que o alvo estava próximo. Anos e anos de
estudo, trabalho, luta, poupança, privações e de não se entregar.
Hoje aquela rala sensação de que chegara lá. Meio cisma de dever
cumprido. Procurava externá-lo com o carro da moda, a mansão moderna
apesar de incômoda, a casa de praia opulenta, mas nunca visitada,
roupas de grifes, corte de cabelo moderno com creme... Enfim, um
exímio cartão-postal ambulante. Um modernoso.
Formara-se,
casara-se, montara patrimônio, tivera seus filhos e...
Vários anos
escoaram pelo ralo do tempo quando nosso burguês João Batista de
Alencar se deparou com alguma melancolia. Certo peito preso, meio
indefinível para alguém que se achava detentor de tudo. Passou a
sonhar com a sua província e com os seus. Como andavam seus pais Zé
e Maria? E os colegas de escola: Pádua, Gazumba, Totonho,
Expedito?... Um silêncio cortava o ar.
Os filhos
cresceram e, educados em sua cartilha, largaram a família e foram
vencer no mundo. E nem mandavam notícias... Certo dia, encontrou-se
com os versos de Drummond: “... hoje Itabira é apenas um quadro na
parede e como dói...”. Danado desse verso se transformara em uma
pedra no meio do seu caminho. Caminhava para morrer gordo, burocrata
e feliz, sem grandes atribulações. E um poema no meio do caminho
colocara uma pedra na sua consciência. O relógio trabalhava e aquela
sensação só lhe cutucava a mente. Como já se percebera supérfluo em
sua casa (mulher nos chás e nas fofocas, filhos no mundo brigando
por dinheiro), resolveu visitar sua pequena cidade. Precisaria
consultar o mapa para não errar o caminho.
Tinham se
passados cinqüenta anos.
Ao chegar, não
foi reconhecido por ninguém. Rodou a esmo pela cidade, caminhando
sem pressa. Aquilo fez uma limpeza em suas memórias, locupletadas de
cédulas e vazias de emoção... E as lembranças da infância foram se
apresentando. Eram poucas e isso lhe incomodava. Fugira do lúdico na
busca frenética e cega pelo vil metal. Rodou pelas ruas da sua
província, reconheceu sua antiga casa, hoje ocupada por outra
família, visitou a antiga escola, velha e com as paredes prestes a
desabar... Tudo foi lhe invadindo o corpo num crescendo, foi tomado
por uma enxaqueca forte e súbita, parou. Sentou-se no banco da praça
da matriz e chorou. Chorou copiosamente.
As lágrimas
escorriam pela face aos borbotões: fora o primeiro choro da sua
vida. Aquele líquido, ao sair de seu corpo, limpou-lhe a visão,
adubou seus sentimentos e baniu a terrível dor de cabeça. Respirou
profundamente aquele cheiro de vida, levantou a face alegre e... Viu
debaixo do grande tamarineiro no meio da praça três crianças rindo e
jogando bila (na grande cidade eram bolas de gude)...
Aproximou-se,
dobrou a camisa de mangas longas, tirou o sapato da moda, pôs os pés
no chão de terra batida e propôs comprar uma bila dos meninos, a fim
de participar da brincadeira. “Comprar?”, gritou alto o menor deles.
“Tome uma para você e entre no nosso jogo. Sempre cabe mais um
quando se usa Rexona!”, fechou ele resoluto.
O velho burguês
entrou no jogo, fez-se criança e se sentiu, pela primeira vez na
vida, conhecedor de algo simples que sua cidade sempre tivera:
felicidade.
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