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César Leal

 

Dante e os modernos

 

A partir do século XIX, Dante tornou-se uma divindade para muitos escritores, especialmente para aqueles cuja consciência formal parece estar intimamente relacionada aos processos de construção geométrica, ou geométrico-simbólica, tal como se pode observar nos diferentes planos construtivistas da Divina comédia. Segundo creio, as relações entre Dante e os modernos devem ser analisadas, ainda que sumariamente, para que se possa melhor entender o significado de sua influência na lírica contemporânea.

Para muitos escritores, a investigação de tal problema não apresenta dificuldades, o que não é certo, quando se verifica que o poema de Dante se apóia numa distribuição mística de formas a que se associam unidades de sentido de natureza sumamente complexa. O estudo do problema implica uma revisão da terminologia da crítica, pois quando se analisa a poesia que a partir do século XIX vem modificando as teorias da expressão poética e o conceito de moderno na arte e na literatura, obviamente se procura estabelecer relações entre o poema moderno escrito na época em que Arnaut Daniel inventava a sextina, outro que fizesse sua aparição na Inglaterra quando em Londres se falava de um modern style na arquitetura, e ainda os poemas modernos de Pound e Eliot, Apollinaire e Rilke, Dylan Thomas e Evtuchenco, que de certo modo coincidem com a criação do arranha-céu de cem andares, o desenvolvimento da física atômica e a exploração do espaço extraterrestre.

Em todos os casos aqui citados, creio que apenas no último exemplo se pode estabelecer uma relação entre o "moderno" a que se refere Dante em seu encontro com Guinizelli, no Purgatório, e a estrutura da lírica contemporânea. Claro que tal identidade de conceitos só pode ser estabelecida no plano artístico. O poeta moderno dos séculos XIX e XX não seria nem poderia ser igual ao poeta moderno dos séculos XIII e XIV. Mas ao aproximá-los agora, não vejam nisso uma intenção minha em estabelecer paralelos entre a poesia do fim da Idade Média e a poesia contemporânea.
Minha tese deve ser entendida nestes termos: o conceito de moderno, na poesia do século XX, está mais próximo do de Dante do que o conceito moderno que prevaleceu no período unitário do Classicismo, quando as formas literárias internacionalizadas por Petrarca, Boccaccio e Ariosto constituíam o cânon da literatura européia, especialmente da poesia, enquanto Dante, como observou Papini, era considerado um megatério ou dinossauro fóssil, cuja obra era lida apenas nas catedrais por meia dúzia de clérigos vadios.

O Ressurgimento, a revolução romântica alemã, Gabriel Rosseti e seu grupo na Inglaterra restabeleceram o prestígio de Dante, graças ao interesse — especialmente dos românticos pelos estudos medievais. Contudo, a liberdade formal dos românticos não poderia realizar-se em perfeita harmonia com a disciplina intelectual de Dante. Segundo creio, a Divina comédia só veio a influenciar decisivamente a poesia contemporânea com a decadência do Romantismo, no fim da primeira metade do século XIX. Muitos poderiam dizer que a poesia moderna continua sendo romântica, o que não parece exato, pois o que ela conservou do Romantismo Novecentista — como nos demonstra o romanista Hugo Friedrich — foram seus meios de representação daquele estado de consciência que desde a segunda metade do século ia cada vez mais se distanciando do Romantismo. Por isso muitos com razão asseguram que a poesia que se escreve atualmente "é romantismo desromantizado".

A primeira obra autenticamente moderna cujo plano arquitetônico se assemelha ao da Divina comédia é Les fleurs du mal, de Baudelaire. Não intentem ver nessa observação um desejo de aproximar um poeta como Baudelaire da posição em que se encontra situado Dante. A comparação já quase chega a ser antiga.

Contudo, Baudelaire é o principal teórico da poesia moderna tal como escreveram ou escrevem ainda poetas como Pound, Frederico Garcia Lorca, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Jorge de Lima. No caso da obra desses autores a relação de proximidade com a Comédia não ocorre apenas no intento construtivista, em que prevalecem as unidades de sentido místico, a composição numérica, o anseio de elevação que no plano interno se manifesta por uma ânsia de purificação pelo fogo. Os Four Quartets, de T. S. Eliot, estão impregnados do pensamento de Dante. Quando na segunda parte do Little Gidding, Eliot nos fala de um encontro com certo mestre já morto, conhecido, olvidado, mas lembrado ao observar, em seus traços tostados, os olhos de um fantasma familiar e íntimo, que o obriga a exclamar de súbito: "Como! Você aqui?" (What! Are here?) não está senão repetindo a surpresa de Dante ao encontrar às margens do Flagetonte — o rio de fogo do inferno — seu antigo mestre Brunetto Latini: Siete voi qui, ser Brunetto? ("Mestre Brunetto, vós aqui?"). Observe-se que em ambos o tema é o de castigo pelo fogo. Diz Eliot:


From Wrong to Wrong the exasperated spint

Proceeds unless restored by that refining fire

Where you must move in measure, like a dancer.



(De erro em erro avança a alma exasperada

enquanto não a restaure o fogo que refina

e nos impõe um ritmo, como aos bailarinos.)


 

Em seu diálogo com Dante, diz Brunetto Latini, desculpando-se por não poder sentar-se, pois tem de obedecer ao ritmo da dança:


ó figliuol, dissi, qual di questa greggia

s'arresta punto, giacepoi cent’anni

sanz'arristarsi quando'l foco il fegia.


 

A semelhança das duas passagens dispensa a análise, de tal modo que não se pode conceber a de Eliot senão como um exercício perifrástico. A dificuldade inicial que Dante tem em reconhecer seu antigo mestre é estar ele com o rosto queimado, o mesmo motivo que faz Eliot esquecer também um dead master que de súbito responde ao grito: — What! Are you here? ("Como! Você aqui?").

Baudelaire, num dos poemas de Les fleurs du mal — Elevation — também revela a influência que sobre ele exerceu a Divina comédia. Atira-se aos céus alegremente, numa fuga a tudo o que é terreno, arrastado no vôo por voluptuosa força que o conduz aos "espaços claros", que ele metaforicamente chama de "puro e divino licor". Aspira alcançar o Empíreo, mas o que choca em Baudelaire, em relação à mística, está em não alcançar depois das estrelas senão a "linguagem da flor" e da "matéria muda", justamente onde Dante se deslumbra na luce eterna, com a qual se identifica, tomando-se parte inseparável dessa luz. Se em Baudelaire não há uma perfeita identidade com a visão de Dante no plano da construção interior, é evidente que o mesmo não ocorre em relação aos grandes poetas do século XX, cujo mestre de todos é Dante. Os exemplos de Eliot abarcam um campo extensíssimo em sua obra; melhor, portanto, que o leitor substitua meus comentários pelos próprios textos eliotianos.

No Brasil, o maior poeta e agora o menos estudado em nosso próprio país, Jorge de Lima, foi o que melhor entendeu a importância de Dante. Sua compreensão intelectual de certas passagens da Comédia é admirável. Por exemplo, esta em que ele fala da dança dos espíritos divinos ( Cantos XIII, XXX e XXXI do Paraíso):


E de repente, passa-se de novo

a cena da coréia delirante:

e enquanto vem de cima o cisne de ouro,

os dançarinos mudam de semblante.



Senti meus olhos mais que dantes altos,

sem perceber se o giro estava em mim

ou se no seres áureos que giravam

como corola viva se entreabrindo.

Era um orbe rodando todo aceso

arrastando-me a vida: e aqui e além

levando-me de vez no eterno giro.

Da visão vale a hora verdadeira.

Ó minha graça, ó vida de repente,


que loucura medonha e que alegria.


 

A síntese de Jorge de Lima não abarca apenas os cantos do paraíso aqui citados. Quando ele diz que sentiu seus olhos mais do que dantes altos, sem saber se o giro do orbe aceso estava nele ou nos seres áureos que giravam, não está senão interpretando uma das passagens do Canto XXXIII, quando Dante, fitando a Suprema Luz, ou seja, a Trindade, diz:


Non perché píú ch’on semplice sembiante

fosse nel vivo lume ch'io mirava

che tal é sempre qual sera davante;



ma per la viste che s’avalorava

in me guardando una sola parvenza,

mutandom'io, a me si travagliava.

 

 

Noutra passagem, Jorge de Lima nos fala também da chama, aludindo não ao fogo purificador, mas ao Espírito Santo, que do cimo domina os malebolges e a ilha "insofrida". Aqui há uma alusão clara ao problema da queda. A montanha do Purgatório é em Invenção de Orfeu, "a ilha insofrida", a "altiva serra" que se formou simultaneamente com o Inferno, conforme a explicação de Virgílio no final do Canto XXXIV. Virgílio mostra como Lúcifer ao cair perfurou o centro da Terra. O cone formado pela perfuração, contendo nove círculos, criou o Inferno, enquanto a Terra espantada retirou-se no outro hemisfério formando a montanha do Purgatório, que se ergue no mar (o mar do ser), constituída também de nove moradas: os sete círculos ascendentes onde são purgados os sete pecados capitais, o paraíso terrestre e a árvore da vida.

Procurei mostrar até aqui a influência de Dante sobre os grandes poetas modernos, elegendo como exemplos Baudelaire, T. S. Eliot e Jorge de Lima. Poderia também citar Pound, poeta complexo, que além de profético realizou em seus Cantos — sua obra mais importante — algo tão grandioso quanto a Divina comédia. Esses cantos também se dividem em três partes: lnferno, Purgatório e Paraíso. A obra, trabalho de mais de quarenta anos, constitui, efetivamente,uma poesia soberba. O Inferno é representado pelos gregos, o Renascimento e as duas Grandes Guerras Mundiais; o Purgatório é formado pela moeda e os bancos — os últimos Cantos representam o Paraíso. Pound nos mostra a tragédia do mundo moderno, a admiração do homem pelas máquinas; mas não esquece de revelar que o inferno dos campos de concentração é tão realista e doloroso quanto o próprio Inferno de Dante.

Poderia dizer ainda que, no caso de Baudelaire, a influência que ele sofre seria mais de Milton do que de Dante. Efetivamente, a subida de Baudelaire ao Empíreo, onde depois de atravessar os longes estrelados não encontra senão a "linguagem da flor" e da "matéria muda", revela uma tensão bipolar, já notada por Hugo Friedrich: um dos polos da tensão o empurra para os céus: o outro — o polo satânico — o devolve ao abismo. A imagem dessa luta nos lembra uma passagem de Milton no Canto III do Paraíso Perdido, quando um grupo de almas condenadas, depois de atravessar os sete céus, as estrelas fixas e o móbile primeiro, numa busca de reconquista do Paraíso, já levantava os pés sobre o primeiro degrau das portas de São Pedro, quando um forte vento o dispersou, a uma grande distância, na vaga região do ar. Entretanto, Milton é um filho espiritual de Dante. O Paraíso perdido não teria existido sem Dante, assim como Dante sem Virgílio não se poderia conceber. Meu intento até aqui foi provar a modernidade de Dante. Os que o acusam de obscuridade não são pessoas bem informadas sobre a Divina comédia.

T. S. Eliot, em ensaio mundialmente famoso, diz que Dante é mais fácil de ler do que Shakespeare, que se serviu de uma linguagem metafórica extremamente difícil. Dante, ao contrário, é mais fácil de ler do que os poetas modernos, pois sempre expressa visões, "habito psicológico, cuja arte esquecemos, porém tão bom quanto qualquer dos nossos hábitos intelectuais modernos". Em certa passagem de seu estudo, lembra-nos que hoje o costume de ter visões ficou relegado aos loucos e aos ignorantes, mas que em certa época foi um gênero de "sonho significativo, interessante e disciplinado".
Confesso que não me atrevo a discordar de tais conceitos. Isso é boa crítica, porque ajuda o leitor da Comédia a não dar importância às acusações de obscuridade em Dante. Um movimento muito cultivado em nossa época é o Surrealismo. A palavra foi criada por Apollinaire, mas o Surrealismo mesmo, segundo o manifesto de André Breton, começou com Dante.

Ainda que muitos situem no mesmo nível de Dante poetas modernos como Ariosto, Camões, Shakespeare e Goethe, creio por uma experiência particular que não deriva apenas do gosto, mas de um estudo quase sistemático da poesia, que a Comédia é um livro único, uma obra que não pode ser comparada a qualquer outra, nem mesmo ao D. Quixote, que também - como observou Mário Casella, da Universidade de Florença — se fundamenta na metafísica cristã do ser, realizando a epopéia do espírito que se eleva a Deus e com ele se identifica, revelando a vida da humanidade em seu passado, em seu presente e seu futuro, para além das divisões esquemáticas da história e do tempo.

A concepção arquitetônica do poema exige uma técnica de composição numerológica. Na Divina comédia, quando se analisa o sentido dessas relações entre a numerologia e a expressão poética em si, sente-se natural inclinação em separar a função simbólica ou mística, dos números, daqueles valores considerados próprios do poema.

Falo do poema em sentido amplo e não apenas da Comédia. Desse ponto de vista geral, os números não teriam significado poético; não constituiriam mais do que maneirismos técnicos desligados da verdadeira expressão. Mas em Dante os números funcionam também como imagens. Seria possível alguém conceber expressão verdadeiramente poética sem imagens? Croce, para quem a Divina comédia seria apenas pouco mais que fragmentos líricos interrompidos por falsa ciência, vê no poema de Dante a fixação da transcendência medieval na natureza protéica de seu terceto, não parecendo dar maior importância aos números. Para Croce, a poesia prescinde de estrutura, de artifícios, configurando-se apenas através do ritmo, do metro, das palavras. Ao negar valor à alegoria — e o número em Dante é também alegoria —, Croce parece esquecer que o terceto por ele citado como inscrito em bronze é quem sustenta, num encadeamento ad infinitum, a mais complexa estrutura lingüística que a mente humana já organizou.

Mas a Croce não interessam alegorias e outras figuras que sirvam apenas para revestir a espressioni letteraria. Sua teoria da espressione poetiche é interessante, porém arbitrária ao extremo. Claro que ele julga qualquer poema de acordo com suas próprias teorias. Mas muitas pessoas — inclusive eu — discordam delas; por exemplo, quando ele exclui do âmbito das obras pertencentes à espressioni poetiche, Os Lusíadas, os melhores poemas de Byron, alguns dos melhores livros de Schiller, e até obras inconfundivelmente poéticas como os dramas, as comédias de Molière. Parece-me que Croce, ao negar valor artístico ao método alegórico, se contradiz, pois ao mesmo tempo concede à imagem a importância que geralmente deve ter em todo bom poema. Onde estaria, então, a contradição?

Justamente no fato de que não se pode negar à alegoria uma condição de imagem. Daí por que — segundo me parece — não se deve valorizar a imagem e negar a alegoria.

Sem recusar o conceito de que a alegoria não é senão uma substituição do abstrato pelo aparentemente concreto, ou como definiu Coleridge, "uma transposição de noções abstratas para uma linguagem colorida", prefiro considerar o alegorismo de Dante como um perfeito sistema de imagens intensificadoras, do tipo das que Henry Wells encontrou nos poemas de Spenser, ao procurar exemplos de tais figuras na poesia da língua inglesa.

Para os melhores críticos de poesia deste século, ao contrário de Croce, o método alegórico não é frígido nem antiartístico. Croce fala das dificuldades da alegoria por ser toda composição alegórica uma tentativa de "aproximação convencional e arbitrária de dois fatos espirituais". Por exemplo, um conceito e uma imagem, "pela qual se pretende que esta imagem deve representar aquele conceito". Para a mente filosófica, educada dentro de uma concepção de que o saber é coisa feita, vivendo todos nós dentro da filosofia ou do conceito mondrianiano da arte realizada, Croce pode ter razão. Para mim, que não costumo aderir à autoridade dos filósofos ou dos teóricos, prefiro acreditar que símbolo, imagem e alegoria constituem limites fluidos de um mesmo território; ao fazê-lo, uso da mesma liberdade que Croce usa para negar a existência dos gêneros literários ou afirmar que Os Lusíadas não é uma obra poética.

Que seria, então, para Croce a Divina comédia, cujo autor ele tanto admira e o chama de "pai Dante"? A Comédia seria uma obra de serviço, uma obra de compromisso, didático-estrutural, uma novela teológica, constituindo justamente esta parte de compromisso ou de serviço o elemento prosaico do livro, com trechos líricos emaranhados na trama novelesca. Um seu discípulo — Karl Vossler — observou com certa acuidade que para Dante jamais a relação poesia/prosa constituiu um problema como ocorreu em relação a tantos poetas europeus do século XX, para os quais depurar o poema de contaminações filosóficas ou purificar a prosa de qualquer contaminação poética foram tarefas árduas, muitas vezes convertidas em autoflagelação. Ao contrário de Croce, Vossler é da opinião que Dante "teria visto no elemento 'teológico' o condutor, e na poesia um auxiliar que não fez prevalecer a qualquer preço". Julgo, porém, que o juízo de Vossler merece uma retificação.

Não creio que Dante tenha desejado, na Divina Comédia, ser mais do que poeta, ainda que o tenha sido. É o que pretendo demonstrar ao longo deste ensaio. Mas antes gostaria de fazer algumas alusões ao problema numerológico.


Da l'un, se si conosce, il cinque e 'l sei
 

 

Este verso Dante põe na boca de Cacciaguida no XV Canto do Paraíso. Vejamos todo o terceto:

 

Tu credi che a me tue pensier mei

da quel che è prime,

cosi raia

da l'un se si conosce, il cinque e 'l sei...


 

Trata-se de uma referência à metafísica numerológica de Pitágoras. O fato de a Divina comédia ser estruturada sob uma concepção numerológica não foi ainda estudado suficientemente. Acredito que os números, em Dante, têm mais do que o significado místico que se lhes atribuía na Idade Média. Não representam também apenas uma união entre o alegorismo numerológico dos hebreus e a metafísica numerológica dos gregos.

Os números em Dante constituem estruturas primárias destinadas a sustentar a cadeia de símbolos e figuras alegóricas através das quais o leitor entra em comunhão com o poeta e participa, assim, de sua viagem pelos mundos da transcendência. Creio que é através dos números que o leitor se sente identificado com a função transumana de que se encontra investido o poeta, e cuja experiência nos revela no Canto I do Paraíso, estrofes 22 a 24:


Beatrice tutta ne l'eterne rote

Fissa con li occhi stava; ed io in lei

le luci fisse, di là su remote



Nel suo aspetto tal dentro mi fei

qual si fé Glauco nel gustar de l'erba

che'l fé consorte in mar de li altri Dei



Transumanar significar per verba

non si poria, però l'esemplo basti

a cui espeilenza grazia serba


 

O número 9 na Comédia quase sempre significa um milagre, por ser múltiplo de 3, símbolo da Trindade. O trecho citado tem nove versos, que expressam de forma total tudo o que Dante deseja para fazer sentir ao leitor o que significa transumanar.

A passagem nos mostra que a experiência de Dante, como pessoa que transpõe o plano humano e situa-se diretamente no plano divino, não ocorre apenas no momento em que ele contempla a luz divina, no último Canto do Paraíso. Já aqui se revela a nova condição, depois que lhe fora apagado, num dos cantos finais do Purgatório, o último dos 7 Pês que lhe haviam marcado na testa, e Matilde o banhara nos rios Letes e Eunoé, sob as vistas de nove figuras femininas: Beatriz, as quatro Virtudes Cardiais, as três Teologais e a própria Matilde.

Os versos mostram que ele ao observar o rosto de Beatriz, cujos olhos estavam fixos ne l'eterne rote, viu na própria face de Beatriz a luz divina e dela foi penetrado intensamente. Recorre então à bela comparação épica dele com Glauco, que tendo comido um alimento exclusivo dos deuses marinhos se sentiu de súbito deus do mar como os demais. Transumanar Dante não pode dizer o que significa per verba, porém ao leitor basta o exemplo de Glauco que acaba de referir. Creio que essa passagem fez Mário Casella interpretar a experiência de Dante como semelhante à de São Paulo: "Não sou eu quem vive, mas Cristo que vive em mim."

Contudo, não é pela função puramente mística que se deve atribuir tanta importância aos números. Ainda que as poéticas omitam o número como elemento essencial da estrutura do poema, para mim ele tem um significado tão importante quanto a de outro qualquer fator integrante da obra poética e que as teorias da literatura nunca dispensam, por exemplo, a anáfora, a assonância, a rima entre os valores da camada sonora. O símbolo, o mito entre as unidades de sentido. Creio que o próprio número já transporta em si uma carga simbólica. Algumas vezes se transforma em imagem cinética, como ocorre com o número 3 em Dante. A presença de imagens cinéticas pode ser observada logo no Canto I do Inferno, pela visão da pantera, do leão e da loba; ou no Canto II, quando a Virgem, Santa Luzia e Beatriz rogam a Deus para que salve o poeta da selva selvaggia.

Dante recorre a figuras de animais e de pessoas (humanas, místicas ou divinas), em parte em obediência ao cânon do medievo; em parte porque sendo — como observou Eliot — um poeta competente, possui "uma imaginação visual". Todo esse processo segue a tradição do medievo, que desde São Jerônimo se vinha enriquecendo pelo cruzamento com valores poéticos e filosóficos do mundo pagão.

Assim, à mística cristã dos números, herdada do alegorismo bíblico, associa-se agora à metafísica numerológica de Pitágoras. Mas a técnica poética de Dante não é tanto quanto se julga uma herança do mundo greco-latino. Para Dante, Virgílio é o guia. Mas Virgílio é também figura alegórica, um símbolo quase puro de sabedoria moral. Por isso ele é o guia de Dante durante 63 Cantos da Comédia.

Quanto à concepção estrutural do poema, é nas poéticas medievais de origem inglesa e francesa — se é válido o testemunho de Ernst Robert Curtius — em que "se apóiam a poética e a retórica de Dante". A vantagem do método alegórico utilizado por Dante é dar ao leitor uma presença imediata de algo que impressiona, antes que ele possa alcançar idéia definida sobre o significado daquilo que vê.

Por exemplo, as 3 mulheres que aparecem no Canto 11 do Inferno não causariam a impressão que causam ao leitor se lhes disséssemos que elas são transposições, em termos alegóricos, da Misericórdia, da Justiça e do Amor. Para que imagens desse tipo, freqüentes no poema, estejam presentes na memória, Dante cria uma visão exterior do número — o terceto ou terça rima — imagem estática e concreta que não se separa de quem o lê do início ao fim de cada Canto. Mas o 3 aqui considerado imóvel e paradoxalmente em movimento contínuo, ou até mesmo quando Dante fala das 3 mulheres que surgem dançando na estrofe 41 do Canto XXIX do Purgatório e que significam as virtudes teologais, não possui a transcendência que encerra o número 3 em seu sentido teológico, anagógico ou místico. Na realidade, a base do poema se assenta sobre o número 3; mas são também importantes os números 7, 9 e 10.

Na Divina comédia é preciso observar que cada alegoria, cada símbolo, possui vários níveis de sentido. O 3 significa a Trindade. A viagem de Dante dura 7 dias, que somados aos 3 cânticos em que se divide o poema formam o número 10, símbolo da suprema sabedoria. Vimos antes que Virgilio acompanha Dante durante 63 Cantos. Os algarismos do número 63 somados entre si são iguais a 9. A sabedoria moral metafísica, de que Virgílio é o símbolo, pode guiá-lo até a aparição de Beatriz. Daí por diante, restam 37 Cantos. Os algarismos do número 37, somados entre si, são iguais a IO, símbolo da suprema sabedoria.

 

Giustizía mosse íl mio alto fattore;

fecime la Divina potestate

la summa sapienza e I primo amore,

 

estes versos formam a raiz dos 9 que se encontram gravados em maiúsculas, nas portas do Inferno. Cada cântico se divide em 33 Cantos que — segundo o alegorismo místico medieval — correspondem ao período em que Cristo viveu como homem entre os homens. Esses, somados, dão um total de 99, aos quais se junta o Canto introdutório, para que se alcance o número que representa o máximo da perfeição numa multiplicação única:

 

10 x 10 = 100.

 

O mesmo número se obtém quando se juntam os Cantos que simbolizam a sabedoria moral guiando o poeta (Virgilio), 63, e a sabedoria divina (Beatriz e São Bernardo), 37. Aqui, em vez de multiplicação, o total de cantos do poema é obtido por soma:


63 + 37 = 100
 

 

T. S. Eliot, apesar de sua grande admiração pela poesia e estilo de Dante, fez certas restrições ao Canto XXXIV. Diz ele que pode parecer grotesca a imagem de Satanás, a sofrer tanto quanto as outras almas, quando o seu sofrimento devia ser completamente diferente. Acredito que a imagem do Demônio, com suas bocas a devorar os máximos traidores da História —.Judas, Cássio e Brutus — constituiu para a consciência estética de Dante um problema. Mas Dante, aproveitando as possibilidades expressivas da alegoria, fez valer o espírito de sua consciência formal fundamentada no número. E não teve dúvidas — segundo creio — em pôr na cabeça de Satanás 3 faces, graças ao seu tremendo poder de associação: as 3 faces correspondiam à África, Europa e Ásia, ou seja, as três partes do mundo conhecidas na época.

Eliot admirou-se de que Dante deixasse a essência do Mal encerrada em uma forma e lugar, quando devia estar em toda parte; ao que parece não interpretou, com a visão crítica que lhe é universalmente reconhecida, a significação da imagem poética, do símbolo, pois aquelas 3 faces mostravam que o Diabo se encontrava além dos limites do Inferno assim como também, fora desses limites, se encontravam os traidores.

Números ou palavras que não pertencem à estrutura lingüística de nenhum povo são freqüentes entre os melhores poemas de autores medievais, não apresentando, contudo, uma sistematização tão cerrada quanto em Dante. Sob esse aspecto, podemos falar de magia, de obscuridade manipulada intencionalmente; ao envolver o poema num véu, ao circundá-lo numa atmosfera misteriosa, o poeta pretende aumentar a singularidade de sua expressão, tomando-se um invocador de palavras dotado de acentuado poder de comunicação, mesmo quando o sentido de sua linguagem passa despercebido ao leitor que o admira.

É a isso que a crítica inglesa, desde Ben Jonson, chama "lucidez poética", em oposição à "lucidez intelectual". O importante para um grande poeta não é se fazer compreendido ou entendido; mais importante é transmitir algo que tenha para o leitor um caráter de revelação natural ou sobrenatural. Qualquer grande poeta o possui, em certa medida, se não é um diletante, se não está privado de uma concepção própria do mundo, uma concepção que seja sua e esteja escrita na alma. Creio que essa é uma das condições capazes de justificar aqueles poetas que vêem no realismo uma concessão ao vulgo, desde que se entenda como vulgo não o povo, sempre receptivo à obscuridade intelectual do realismo poético não só na poesia, na literatura como nas artes em geral, mas os semiletrados, impregnados de idéias políticas ou de teorias sociológicas sobre a arte, sempre dispostos a defender o povo contra o 'vazio', a 'obscuridade', o 'hermetismo', a 'falta de conteúdo', a ausência do 'sentido da vida' ou de 'consciência social' dos artistas.

Não entendem o realismo poético de Dante, por se processar num plano de analogia, até certo ponto fantástico, desenvolvendo-se sob uma contínua tensão provocada pela magia das imagens de sentido plurivalente, por uma utilização sistemática daquilo que integra a estrutura de uma verdadeira obra de arte poética: ritmo, símbolo, metáforas, efeitos harmônicos dos sons, aliterações, encadeamentos de rima, tudo harmoniosamente disposto, contribuindo para aumentar a beleza da expressão e a luminosidade do campo poético.

Por isso, estou de acordo com aqueles que defendem uma autonomia de termos para a crítica moderna. Os termos facilitam a compreensão do fenômeno criador. Fornecem-nos mapas para a compreensão dos mundos que estamos a percorrer. Assim, quando um critico diz que o estilo de Dante possui uma "lucidez peculiar, porque o pensamento pode ser obscuro mas a palavra é sempre lúcida, ou melhor, translúcida", sabemos o que ele quer dizer e quão interessante é o sentido dessa observação.

Para Dante, o símbolo, a imagem possuem, além de seu valor de relação com o objeto que procuram representar, um significado próprio. Nele, a imagem se configura, quase sempre, pela alegoria. Eis por que o leitor da Divina comédia deve estar sempre atento à compreensão do sistema de formas alegóricas adotado por Dante.
Claro que o mais importante para o leitor é sentir a própria poesia; mas tenho minhas dúvidas de que alguém pudesse sentir a Comédia, se Dante não criasse os meios indispensáveis à visualização dos conceitos abstratos ou espirituais. A consciência formal de Dante realiza essa tarefa, porque nele o poder visualizador das formas é altamente desenvolvido.

Tais formas são quase sempre representadas por linhas, estátuas, carros, monstros, círculos, montanhas, jardins, árvores, cruzes, estrelas, coroas, lagos, flores, aves, chamas. São inumeráveis, todas dotadas de grande força expressiva.

É o método alegórico em pleno exercício de sua função estética. Vejamos algumas dessas formas. Por exemplo: a estátua que chora eternamente e cujas lágrimas formam as correntes do Aqueronte, do Flegetonte, do Estígio e do Cocito, os rios infernais perpetuamente abastecidos pelo pranto que flui do tempo. A estátua é aqui a forma concreta que representa o abstrato conceito de tempo e os rios plenos de lágrimas e chamas simbolizam a dor, o choro oculto dos homens que no mundo (a estátua está situada no mundo) sofrem e cujas paixões foram as chamas punitivas da cidade de Dite, das margens do Flegetone, onde Brunetto Latini, num apelo patético a Dante pede-lhe que preserve o seu tesouro sieti raccomandato il mio tesoro, única chama de vida que resta de sua alma morta.

No Purgatório, uma constelação de quatro estrelas constitui outra forma, cujo objeto é visualizar as virtudes cardiais. Essas estrelas espelham seus raios com tanto fulgor sobre a face de Catão, símbolo da liberdade civil, que é sua luz igual à própria luz do sol, embora a visão ocorresse pela madrugada:

 

Li raggi de le quattre luce sante

fregiavam si Ia sua faccia de lume

ch'lo 'l vedea cane 'I solfosse davante.


 

Noutra passagem do Purgatório (Canto XXIX) as mesmas virtudes apresentam-se em forma de mulheres que dançam à esquerda do carro, na procissão da Igreja em triunfo:

 

Da la sinístra quattro facean festa,

in porpora vestito, dientro al modo

d'uma diler chavea occhi in testa.


 

Esta mulher que tem os três olhos na testa é a Prudência. Os três olhos simbolizam as dimensões do tempo: Passado, Presente e Futuro.

No Paraíso, os representantes da sabedoria, no quarto céu, governados pelas potestades, aparecem em formas de coroas luminosas; no céu de Marte, a forma em que se apresentam os heróis da luta pela fé é uma cruz de estrelas, uma constelação de 9 cavaleiros.

Em versos soberbos, Dante nos mostra como eles apareceram, à medida que Cacciaguida lhes anuncia os nomes:


"Pero mira necorni de la croce..

quelle ch'io nomeró li farà l'atto

che fa in nube il suo foco veloce".



Io vidi per Ia croce un lume tratto

dal nomar Josuè com'el si feo

né mi fu noto il dir prima che'l fatto.



E al nome de l'alto Maccabeo

vidi moversi un altro roteando,

e letizia era ferza del paleo.



Cosi per Carlo Magno e per Orlando

due ne segui lo mio attento sguardo

com'occhío segue suo falcon velando.



Poscia trasse Guiglíelmo, e Renoardo

e'il duca Gottifredi Ia mia vista

per quella croce, e Roberio Guiscardo.



Indi, tra l'altre luci meta e mista

mostrommi l'alma che m’avea parlato

qual era tra i cantor dei cielo artista.

 

Dante raramente usa a metáfora. Contudo, quando o faz, poucos poetas o superam, se é que haja algum capaz de superá-lo. Observe-se o primeiro terceto, quando fala Cacciaguida: "Por isso olha para os braços da cruz, e aquele que eu chamar se fará presente como na nuvem o seu fogo veloz."

Este fogo é o relâmpago. A metáfora é, portanto, altamente expressiva. O segundo terceto confirma o que Cacciaguida lhe dissera, pois um traço rutilante percorreu a cruz, ao ouvir o nome de Josué, tão rapidamente que não pôde notar quem se fez primeiro: a voz ou a luz. São passagens como esta que me levam a crer quão certo estava Eliot quando fala de Dante como um poeta de imaginação visual.

Observem-se, por exemplo, as belas imagens visuais da estrofe. em que ele fala de Maccabeo: Vide moversi, girando como um pião radiante; com atenção aguarda Carlos Magno e o sobrinho, tão atento com'occhio segue suo falcon volando, diz neste verso de uma modernidade surpreendente. Ao reunir num terceto o conde de Oringa, Rinoardo, o duque de Bouillon e o príncipe Roberto, mostra-nos como o sentido da visão está sempre disperso: Ia mia vistal per quella croce...

Por fim, aparece novamente Cacciaguida:


mostrommi l'alma che m’avea parlato

qual era tra i cantor del cielo artista.


 

Assim, verifica-se que a forma da cruz representa uma visualização ilustrada com exemplos históricos, da potencialidade interna que possui cada homem de lutar e morrer por suas crenças, por seus ideais, por sua fé, constituindo para Dante tal virtude uma razão para alto prêmio, tão alto que esses cavaleiros se elevam por cima de Santo Tomás e dos doutores da Igreja. Os símbolos de tal potência interior são os que vimos: Josué, Judas Macabeu, o imperador Carlos, seu sobrinho Rolando, o conde Guilherme de Orange, Rionador, o duque Godofredo, conquistador de Jerusalém, Roberto Guiscardo e o tetravô de Dante, Cacdiaguida, herói em batalha, lutando contra os sarracenos.

Mais uma vez observa-se aqui o princípio da composição numerológica: a cruz formada por nove estrelas.

A forma da cruz em Marte é seguida em Júpiter por uma forma complexíssima: a imagem da águia, que simboliza o espírito dos monarcas modelares. Ao criar a águia, podemos observar o tremendo poder de Dante como artista. Um poder sobretudo de associação. Nenhum poeta fizera isso anteriormente.

A águia não é apenas o símbolo do império nem de uma ave mortal, l'aguglie morlali, como diz Dante. É uma águia coroada, mas ainda que sua coroa nos lembre a monarquia, pois se forma do M de terram, da expressão latina que aparece no final do Canto XVIII do Paraíso, a forma com que agora se apresenta é antes de tudo um processo técnico, uma fusão dos espíritos de seis imperadores, sendo que o olho, a pupila da águia, é formado por David:


Colui che luce in mezzo per pupilla

fu il cantor de lo Spirito Santo,

che l'arca traslató di villa in villa:


 

Se Dante não houvesse conseguido criar esta forma — e esta é uma criação exclusivamente sua, pois me parece não encontrar apoio na tradição —, ele não poderia fazer cada um desses monarcas falar sem romper o sistema da composição numerológica. A águia começa a aparecer no Canto XVIII e o Cântico inteiro não pode ter mais de 33 cantos. Ele podia escrever quantos cantos quisesse, mas como explica no último Canto do Purgatório, o freio da arte não lhe deixa ir além: non mi lascia piú ir lo fren de l'arte. Ao estudar essa passagem, concluí que não se devia interpretá-la como aplicável apenas ao segundo Cântico, isto é, ao Purgatório, mas a qualquer outro trecho do poema. Estudando mais atentamente o Canto XX do Paraíso, observei que a descrição que a águia faz dos espíritos que a integram se inicia na estrofe 14, com um traço estilístico típico: a expressão ora conosce. E aparece seis vezes, a partir da estrofe 14 a 24, alternando-se de forma absolutamente regular. Exemplo:


Ora conosce il medo del suo canto,

in quanto effetto fu del suo consiglio,

per lo remunerar ché altrettanto.



Dei cinque che mi fan, cherchio per ciglio,

colui che più al bécco mi s’accosta,

la vedovella consoló del figlio:



Ora conosce quanto caro costa

non seguir Cristo, per l'esperienza

di questa dolce vita e de l'opposta.


 

O primeiro ora conosce se refere a David. A seguir, explica a Águia que dos outros cinco imperadores que ornam seus belos olhos, aquele que mais se aproxima do bico, la vedovella consoló delfíglio. Não é necessário saber, por enquanto, quem é a viúva e o filho,mas o ora conosce que se segue é muito expressivo, porque já não nos permite dúvidas: esta luz é o imperador Trajano. A expressão ora conosce se repete seis vezes, abarcando exatamente um grupo de tercetos que formam um total de 33 versos, a contar do primeiro terceto onde ela aparece até aquele onde surge pela última vez.

Não conheço nada igual, do ponto de vista técnico-artístico, em qualquer literatura. Talvez seja melhor enviar o leitor ao próprio texto da Comédia. Acredito, porém, que a união dos espíritos que modela a Águia obedece unicamente à necessidade de síntese resultante de uma consciência formal sempre desperta e o impulso construtivista, de um pensamento de engenheiro, suportes de uma atividade criadora que emula com Deus no plano da analogia, como demonstram as estrofes finais do Canto XXXIII do Paraíso:


Ob abbondante grazia ond’io presunsi

ficcar lo viso per la luce eterna

tanto che Ia veduta vi consunsi.



Nel suo profondo vidi che s’interna,

legato con amore ín un volume

ciò che per l'univeno si squaderna.


 

Dante raramente se serve da metáfora. Na passagem citada, a metáfora do livro estabelece uma relação entre a Divina comédia e o universo criado por Deus. Depois de contemplar a luz eterna, e nela penetrar até o centro, consumando a visão almejada, o poeta viu que se interioriza nessa luz, como num livro encadernado por amor, tudo o que pelo universo se esquaderna. A criação foi comparada a um livro escrito por Deus: legato com amore in un volume. Dante, todavia, tendo sido guiado por São Bernardo na fase final de sua viagem, teve a visão de Deus, e, ao vê-lo, foi como se houvesse lido o livro divino, pois ele diz que Ia forma, universal di questo nodo/ credo ch'i vidi.

Mas o ver apenas não é o suficiente. Não poderá traduzir tal visão senão aquele que se torne parte integrante da própria luz eterna, ou seja, do próprio Deus. Para escrever o seu livro, expressando tudo o que viu, Dante tinha que tomarse Deus pelo conhecimento experimental do Inferno, do Purgatório e dos diferentes reinos da hierarquia celeste. Dante pode entender essa luz porque ela vive nele.

Surge então o belo terceto, no qual expressa em versos soberbos e altamente representativos do seu gosto pelas aliterações e annominatios, sua integração à Trindade:


O luce eterna che sola in te sidi

sola t'intendi e da te intelletta

e intendente te, ami e arrdi,


 

De qualquer modo, podemos dizer que a compreensão da alegoria básica do poema na( constitui problema para a sensibilidade de um leitor inteligente, dotado de certa faculdade, crítica operante. Primeiramente, temos que admitir pelo menos as interpretações formulada pelo próprio Dante em sua famosa carta ao Can Grande della Scala. A primeira seria uma inter- pretação literal: a segunda, alegórica, a terceira, moral e a quarta, mística ou anagógica. Outros níveis de interpretação podem ser encontrados, mas o roteiro deixado por Dante revela-nos que a Comédia não pretende ser mais do que um poema, uma visão poética do universo, justamente por ser uma visão tão universal, é que os planos filosófico, místico, tropológico teológico não podiam escapar à imensa rede em que se estruturam os seus diferentes níveis.

A interpretação literal serve ao leitor comum. Devia ter uma força maior ainda para o leito da Idade Média, quando a concepção teocêntrica do mundo colocava Deus no centro da história.

Ainda hoje, a interpretação literal agrada sumamente ao homem que, efetivamente crendo ou descrendo nos reinos de ultratumba, goza com as descrições de Dante, com si técnica expressiva, e o tom novelesco da Comédia. Para tal leitor, a Divina comédia seria uma obra de ficção como outra qualquer. Por exemplo: um romance de Dostoievski, uma novela de Proust ou de Balzac.

Mesmo entre os leitores modernos, poucos são os que não interpretam literalmente as obras de arte literária, tanto dos autores antigos quanto dos modernos.

Mas o sentido literal não deve ser entendido apenas nesse nível. Dante exige do leitor que o interprete literalmente, a aceitação, como realidade, de tudo o que foi por ele expresso Comédia. Em tal caso, o poema exprimiria uma antevisão da vida do espírito após libertar da carne.

Os outros níveis podem resumir-se num único sentido, senso translato, em que o tropológico e o anagógico ou místico representam l'uomo in quanto capace di meritare e demeritare per suo libero arbítrio, e perciò dispendenti dela guistizia premiattrice e puniatrice, diz, citando Dante, o professor F. Chiappelli.

Contudo, seja qual for a posição de Dante em relação aos mundos de suas crenças, a Divina comédia constitui uma luminosa teoria da humanidade, um código moral cuja obediência aos seus preceitos levaria o homem à reconquista do Paraíso perdido.

Como escrevi certa vez, em um estudo sobre Jorge de Lima, acredito que o Inferno e o Purgatório são símbolos representativos de condições humanas concretas, transferidas ao espiritual e daí arrancadas e incorporadas ao sensível. Inferno e Purgatório são reinos da sensibilidade. Tanto um quanto o outro refletem "estados" que podem ser comprovados experimentalmente.

Inferno e Purgatório são mundos de nossa experiência e da experiência coletiva; da experiência individual e da experiência social. A Terra significa ambos: no hemisfério antípoda do Inferno se ergue a montanha do Purgatório em pleno mar: o mar do ser.

A diferença fundamental entre os 'habitantes' desses dois hemisférios está no fato de que no Inferno o corpo se encontra privado da alma. O Inferno é a treva em que vivem submersos os assassinos, os traidores, os ladrões, os invejosos, os mentirosos, os bajuladores, os iracundos.

Todos os homens vivos, tendo caído em tal estado (pois o Inferno não é um lugar), perderam definitivamente a oportunidade de encontrar quem os retire da selva selvaggia. O Inferno é a perda do poder de escolha, é o abismo em que vivem todos os que se submetem ao império de suas paixões. Nele, são atirados todos os que se negam a cooperar na vida civil, os fariseus, os hipócritas, ou fraudulentos, que possuem rosto de homem honesto, como o de Gerião, la faccia sua era faccia d’uomo giusto, mas cujo corpo é de serpente, com cauda de escorpião escondida no vazio tenebroso do poço infernal. Eis como Virgílio aponta a Dante, no Canto XVII, esse monstro metafísico, símbolo da fraude:


Ecco lafiera con le coda aguzza,

che passa i monti, e rompe i mupi e l'armi;

ecco colei che tutto, l mondo appuzzal!


 

Que leva, porém, o homem ao Inferno? Simplesmente o pecado?

Não. O pecado em si mesmo não conduz o homem ao 'estado' tenebroso. Não porque exista uma hierarquia para o pecado. Mas porque se pune com o Inferno a perda de um princípio.

No início do Cântico I, Dante põe na boca de Virgilio a relação do mal para cuja redenção não há esperança:


Noi siam venuti al loco ov’io t'ho detto

che tu vedrai le gente dolorose

c'hanno perduto il ben de intelletto.


 

Perder o bem do intelecto é perder o que Dante não perdera quando se viu sozinho, dominado pela paixão política, condenado à morte e cheio de ódio, de rancor e de inveja, aos 35 anos, nel mezzo del cammin di nostra vita. Não tendo perdido o bem do intelecto, encontrou em Virgílio o exemplo de como o homem podia elevar-se da "selva selvaggia" à visão de Deus, que afinal se consuma no Canto XXMII do Paraíso.

Perder o bem do intelecto é perder, do ponto de vista psicológico, a capacidade de julgamento moral. Perdida essa noção do bem, o homem não encontrará mais os caminhos que o conduzam à prática da virtude, à defesa da paz, ao cultivo do amor, do respeito aos direitos humanos e da justiça.

Não fora isso e não se justificaria que o mesmo tipo de pecado que atira o homem ao Inferno é aquele que o conduz ao Purgatório, onde Catão, que do ponto de vista teológico não devia escapar ao limbo, por ser pagão, nem a floresta di color fosco, por ser suicida, é o número de Deus, "o mestre das almas que desejam libertar-se de sua natureza viciada".

Contrariando ensinamento teológico, Dante colocou Catão no Purgatório, o hemisfério continuamente iluminado por duas constelações (as virtudes cardeais e teologais ), porque para ele o homem virtuoso que se suicida para salvar a pátria e a liberdade civil não pecou mortalmente contra Deus.

Por isso, se Catão não pode entrar no Paraíso, também não entrará no Inferno o, sendo a única figura destinada perpetuamente ao Purgatório, onde vive sem sofrimento, com a face sempre iluminada pelos "raggí de Ia quattro luce sante".

Pondo à margem qualquer interpretação da Comédia, como obra teológica, filosófica, antropológica, tropológica, mística ou moral, resta-nos o principal nível sob o qual toda obra de criação artística deve ser considerada: o estético.

Poucos poetas escreveram versos tão belos quanto Dante. Em seus melhores momentos, nenhum se iguala a ele. Não me refiro a uma beleza convencional, uma beleza que pudesse inclusive se desgastar, sempre que transformações na estrutura da sociedade provocassem, como geralmente ocorre, modificações no gosto das pessoas esteticamente educadas.

Sabemos que Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, além de outros grandes poetas deste século — todos considerados modernos no mais extenso sentido — já começam a parecer 'fechados' quando colocados frente a frente à expressão poética de Dante. Tudo o que um poeta de vanguarda possa tentar hoje como inovação não constituiria segredo para Dante. Com a diferença de que ele não foi um cerebralista, tanto quanto julgam alguns poetas de vanguarda. Nele, o racional e o sensível estão sempre em constante equilíbrio. Como teórico, exigia do poeta culto a elaboração do poema com "magistério de arte", não devendo abandonar-se mecanicamente, por casualidade, aos caprichos do sentimento.

Contudo, não desprezava o que o "coração ditava", posição comum a todo stilnovista. jamais foi um experimentalista puro. Nele, as teorias funcionavam como mapas, guardando uma função essencialmente instrumental. O certo, e este é um fato histórica que não se discute, é que todas as conquistas da poesia italiana, a partir de Dante até muitos séculos depois, foram, de certo modo, o resultado de pesquisas, de experimentos.

Creio, todavia, que não devo repetir aqui o que já disse sobre o assunto em ensaio sobre Camões. Naquele estudo, eu afirmo que ao contrário dos poetas de vanguarda, que lançam manifestos sucessivos, sem se deter no trabalho criador, os experimentalistas da Renascença e da pré-Renascença viam suas formas muito cedo internacionalizadas, resultando daí os estilos de cultura e as grandes obras como o Orlando furioso, a Jerusalém libertada, Os Lusíadas.

Ao iniciar a Divina comédia, Dante já não é mais um experimentalista. A reflexão técnica nele é constante; mas ao avistar Virgílio está consciente de com ele haver apreendido "lo bello stilo che m’ha afatto onore". No limbo, ele é o sexto entre os maiores poetas do mundo. Suas experiências nunca o levaram a desligar-se da tradição, daquilo que existiu no passado, mas não passou, pois vive com a eternidade, "a cabeça erguida no presente do tempo".

O conhecimento das obras poéticas de Dante é de importância para o crítico de poesia. O estudo da De vulgari eloquentia revela que para Dante o poema deve estar impregnado de história, de filosofia, de teologia, de ciência.

Os meios de fundir esses elementos, num símbolo altamente representativo dos valores existenciais e humanos, são as artes, das quais a poesia é a primeira, por lidar com a palavra, signo intelectual e sensível, capaz de expressar a totalidade dos valores do espírito e incorporá-los aos diferentes níveis da consciência. Daí a riqueza de sua técnica literária, dos elementos de que se serve para tomar bela a expressão, utilizando e ampliando as unidades sonoras através do emprego das aliterações, annominatios, anáforas. No Inferno, deseja empregar rimas aspre e chiocce, no Purgatório, rimas melódicas e suaves;

Paraíso anáforas e rimas intensificadoras metafísicas, psicológicas ou teológicas.

Por exemplo, Cristo, não pode ser rimado com nenhuma outra palavra, embora a consonância seja perfeita em muitos outros vocábulos. A rima não pode realizar-se por coincidência de sons, mas de valores espirituais, valores psicológicos. Por tal razão, Cristo só pode rimar com Cristo porque a palavra aqui perde a função de signo semântico para converter-se numa imagem, num signo espiritual, para o qual não existe correspondência: Cristo é unico!


Qui vince la memoria mia lo 'ngegno

ché quella croce lampeggiava Cristo

si ch'io non so trovare esemplo degno;



na chi prende sua croce e segue Cristo

ancor mi scuserè de quel ch'io lasso,

vedendo in quell'albor balenar Cristo.


 

Seguindo a convenção do número 3 para significar a Trindade, o primeiro Cristo é Pai, o segundo, o Filho, e o terceiro, o Espírito Santo. A rima é perfeita do ponto de vista artístico. A rima não se repetiu, senão quando se considera apenas do ponto de vista dos valores sonoros, eliminando-se toda carga espiritual.

O Canto XIII do Inferno, em que se descreve o bosque de color fosco, formado pelos espíritos dos suicidas, nos dá exemplos de anáforas duplas ou internas e aliterações bem representativas do estilo de Dante. Para recordar ao leitor não apenas o emprego desses valores sonoros mas a própria arte poética de Alighieri, que tanta influência tem exercido sobre os poetas contemporâneos, transcrevo aqui os três primeiros tercetos daquele Canto:


Non era ancor de là Nesso arrivato

quando noi ci mettemmo per un bosco

che da negsun sentiero era segnato.



Non fronda verde, ma di color fosco,

non rami schietti, ma nodosi e'nvolti;

nom pomi v’eran, ma stecchi con tòsco.



Non ban si aspri sterpi né si folti

quelle fiere selvagge che 'n odio banno,

tra Cecina e Corneto, i luogbi cólti.


 

Como se vê, as anáforas alternadas "non" e "ma " são do tipo freqüentemente empregadas pelos maiores poetas da atualidade. Ainda nesse Canto, quando Pietro della Veglia explica por que Frederico II mandou vazar-lhe os olhos, levando-o ao desespero e ao suicídio, as aliterações surgem como força que demonstram a grande potência intelectual de Dante:


La meretrice che mai da l'ospizio

di Cesare non torce li occhi putti

infiammò contra me li animi tutti

e li'nflammati infiammar se Augusto,

che i lietti onor tomara in tristi lutti.


 

Observe-se que aqui a nota da tristeza está intensificada no último verso pela acumulação da vogal "r" que aparece não menos de sete vezes, juntamente com a consoante "t". Em todo o terceto o "i" aparece 19 vezes. Efetivamente, o episódio é de uma grande beleza triste. Quase tão triste quanto o de Francesca e tão patético quanto o de Bruneto Latini, no Canto XV, e o de Ulisses e Diomedes no Canto XXVI. Ainda no Canto XIII, este exemplo de aliteração, soberbo por sua modemidade:


Lo credo ch’ei credette ch'i’credesse

che ...


 

Outra grande força de Dante é aquela em que ele se mostra capaz de reproduzir no espírito do leitor certos estados típicos da alma, revelando-se, sob esse aspecto, um psicólogo-poeta tão grande quanto Shakespeare. Por exemplo, seu encontro com Casella, na praia do Purgatório. Acredito que dificilmente o sentimento humano expresse com igual nível de beleza uma atmosfera tão civilizada e tão plena de sentimento nostálgico. Limito-me a transcrever o terceto em que Casella começa a cantar, a pedido de Dante:


"Amor che la mente mi raggiona "

comminciò elli allor si dolcemente

che la dolcezza ancor dentro mi sona.


 

Para sentir-se quanto cantava bem o grande Casella hoje (diríamos o Grande Caruso) e quão bela era a letra dessa canção escrita pelo próprio Dante, basta dizer que a doçura de seu canto ainda agora soa no espírito de qualquer leitor esteticamente sensível e não apenas do poeta, como ele disse no último terceto.

O Paraíso é sublime. Perdoem-me o "sublime" os que não admitem tais termos em crítica literária. As imagens luminosas são constantes nesse Cântico; mas também aqui se manifestam artifícios e fórmulas perifrásticas ao gosto dos mais revolucionários poetas modernos. Por exemplo, esta passagem do Canto XVIII, depois de passados em revista os cavaleiros que lutaram pela fé:


E como augelli surti di rivera

quase congratulando a lor pasture

fanno di sé or tonda or lunga schera,



sé dentro ai lumi sante creature

volitando catavano, e faciensi

or D, or I, or L on sue figure.


 

Quando estabeleci inicialmente uma relação entre Dante e os modernos, acredito haver deixado bem claro que me referia aos grandes poetas, na posse de uma consciência de sentido histórico, que geralmente falta nos meus escritores sempre preocupados com maneirismos formais, ou em parecerem maiores, como homens situados em seu tempo, do que suas próprias criações. Minha conceituação de modemo tem o sentido de novo, mas de novo que não rompeu com a tradição, incorporando-a, ao contrário, aos valores do presente.

A grandeza de Dante como poeta está condicionada por essa consciência de sentido histórico. Tal consciência, associada a uma personalidade poética soberba, permitiu que se elevasse acima de Virgílio e Homero. Bastaríamos recordar a dificuldade de certos processos; certos problemas técnicos que ele foi chamado a resolver, como o uso do terceto encadeado. Dante, com poucas palavras, ou seja, as palavras iniciais que formam as primeiras rimas de cada Canto, conseguiu uma explosão de rimas em cadeia, num total de mais de quatorze mil versos.

Não há nada igual em qualquer literatura. Também é admirável o seu poder de síntese nas comparações épicas.

Somente pela prática e assimilação de certos valores culturais um poeta bem dotado poderá repetir em nosso tempo algo que tenha o sentido de versos como estes, em que se associa ao resplendor musical a clara consciência de uma potência interior mais capaz de falar ao futuro do que ao presente, o que é de suma importância para o verdadeiro artista:


O somma luce, che tanto ti levi

da'concetti morlali, a Ia mia mente

ripresta un poco di quel che parevi.



efa la lingua mia tanto possante

ch’una favilla sol de la tua glória

possa lasciare a lafutura gente;



chè, per tornare alquanto a mia memoria

e per sonare un poco in questi versi,

piú si conceperà di tua vittoria.
 

 

 

 

William Bouguereau (French, 1825-1905), L'Innocence

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Adriano Espinola