César Leal
Dante e os modernos
A partir do século XIX, Dante
tornou-se uma divindade para muitos escritores, especialmente para
aqueles cuja consciência formal parece estar intimamente relacionada
aos processos de construção geométrica, ou geométrico-simbólica, tal
como se pode observar nos diferentes planos construtivistas da
Divina comédia. Segundo creio, as relações entre Dante e os modernos
devem ser analisadas, ainda que sumariamente, para que se possa
melhor entender o significado de sua influência na lírica
contemporânea.
Para muitos escritores, a
investigação de tal problema não apresenta dificuldades, o que não é
certo, quando se verifica que o poema de Dante se apóia numa
distribuição mística de formas a que se associam unidades de sentido
de natureza sumamente complexa. O estudo do problema implica uma
revisão da terminologia da crítica, pois quando se analisa a poesia
que a partir do século XIX vem modificando as teorias da expressão
poética e o conceito de moderno na arte e na literatura, obviamente
se procura estabelecer relações entre o poema moderno escrito na
época em que Arnaut Daniel inventava a sextina, outro que fizesse
sua aparição na Inglaterra quando em Londres se falava de um modern
style na arquitetura, e ainda os poemas modernos de Pound e Eliot,
Apollinaire e Rilke, Dylan Thomas e Evtuchenco, que de certo modo
coincidem com a criação do arranha-céu de cem andares, o
desenvolvimento da física atômica e a exploração do espaço
extraterrestre.
Em todos os casos aqui citados,
creio que apenas no último exemplo se pode estabelecer uma relação
entre o "moderno" a que se refere Dante em seu encontro com
Guinizelli, no Purgatório, e a estrutura da lírica contemporânea.
Claro que tal identidade de conceitos só pode ser estabelecida no
plano artístico. O poeta moderno dos séculos XIX e XX não seria nem
poderia ser igual ao poeta moderno dos séculos XIII e XIV. Mas ao
aproximá-los agora, não vejam nisso uma intenção minha em
estabelecer paralelos entre a poesia do fim da Idade Média e a
poesia contemporânea.
Minha tese deve ser entendida nestes termos: o conceito de moderno,
na poesia do século XX, está mais próximo do de Dante do que o
conceito moderno que prevaleceu no período unitário do Classicismo,
quando as formas literárias internacionalizadas por Petrarca,
Boccaccio e Ariosto constituíam o cânon da literatura européia,
especialmente da poesia, enquanto Dante, como observou Papini, era
considerado um megatério ou dinossauro fóssil, cuja obra era lida
apenas nas catedrais por meia dúzia de clérigos vadios.
O Ressurgimento, a revolução
romântica alemã, Gabriel Rosseti e seu grupo na Inglaterra
restabeleceram o prestígio de Dante, graças ao interesse —
especialmente dos românticos pelos estudos medievais. Contudo, a
liberdade formal dos românticos não poderia realizar-se em perfeita
harmonia com a disciplina intelectual de Dante. Segundo creio, a
Divina comédia só veio a influenciar decisivamente a poesia
contemporânea com a decadência do Romantismo, no fim da primeira
metade do século XIX. Muitos poderiam dizer que a poesia moderna
continua sendo romântica, o que não parece exato, pois o que ela
conservou do Romantismo Novecentista — como nos demonstra o
romanista Hugo Friedrich — foram seus meios de representação daquele
estado de consciência que desde a segunda metade do século ia cada
vez mais se distanciando do Romantismo. Por isso muitos com razão
asseguram que a poesia que se escreve atualmente "é romantismo
desromantizado".
A primeira obra autenticamente
moderna cujo plano arquitetônico se assemelha ao da Divina comédia é
Les fleurs du mal, de Baudelaire. Não intentem ver nessa observação
um desejo de aproximar um poeta como Baudelaire da posição em que se
encontra situado Dante. A comparação já quase chega a ser antiga.
Contudo, Baudelaire é o principal
teórico da poesia moderna tal como escreveram ou escrevem ainda
poetas como Pound, Frederico Garcia Lorca, Carlos Drummond de
Andrade, Fernando Pessoa, Jorge de Lima. No caso da obra desses
autores a relação de proximidade com a Comédia não ocorre apenas no
intento construtivista, em que prevalecem as unidades de sentido
místico, a composição numérica, o anseio de elevação que no plano
interno se manifesta por uma ânsia de purificação pelo fogo. Os Four
Quartets, de T. S. Eliot, estão impregnados do pensamento de Dante.
Quando na segunda parte do Little Gidding, Eliot nos fala de um
encontro com certo mestre já morto, conhecido, olvidado, mas
lembrado ao observar, em seus traços tostados, os olhos de um
fantasma familiar e íntimo, que o obriga a exclamar de súbito:
"Como! Você aqui?" (What! Are here?) não está senão repetindo a
surpresa de Dante ao encontrar às margens do Flagetonte — o rio de
fogo do inferno — seu antigo mestre Brunetto Latini: Siete voi qui,
ser Brunetto? ("Mestre Brunetto, vós aqui?"). Observe-se que em
ambos o tema é o de castigo pelo fogo. Diz Eliot:
From Wrong to Wrong the exasperated spint
Proceeds unless restored by that refining fire
Where you must move in measure, like a dancer.
(De erro em erro avança a alma exasperada
enquanto não a restaure o fogo que refina
e nos impõe um ritmo, como aos bailarinos.)
Em seu diálogo com Dante, diz
Brunetto Latini, desculpando-se por não poder sentar-se, pois tem de
obedecer ao ritmo da dança:
ó figliuol, dissi, qual di questa greggia
s'arresta punto, giacepoi cent’anni
sanz'arristarsi quando'l foco il fegia.
A semelhança das duas passagens
dispensa a análise, de tal modo que não se pode conceber a de Eliot
senão como um exercício perifrástico. A dificuldade inicial que
Dante tem em reconhecer seu antigo mestre é estar ele com o rosto
queimado, o mesmo motivo que faz Eliot esquecer também um dead
master que de súbito responde ao grito: — What! Are you here?
("Como! Você aqui?").
Baudelaire, num dos poemas de Les
fleurs du mal — Elevation — também revela a influência que sobre ele
exerceu a Divina comédia. Atira-se aos céus alegremente, numa fuga a
tudo o que é terreno, arrastado no vôo por voluptuosa força que o
conduz aos "espaços claros", que ele metaforicamente chama de "puro
e divino licor". Aspira alcançar o Empíreo, mas o que choca em
Baudelaire, em relação à mística, está em não alcançar depois das
estrelas senão a "linguagem da flor" e da "matéria muda", justamente
onde Dante se deslumbra na luce eterna, com a qual se identifica,
tomando-se parte inseparável dessa luz. Se em Baudelaire não há uma
perfeita identidade com a visão de Dante no plano da construção
interior, é evidente que o mesmo não ocorre em relação aos grandes
poetas do século XX, cujo mestre de todos é Dante. Os exemplos de
Eliot abarcam um campo extensíssimo em sua obra; melhor, portanto,
que o leitor substitua meus comentários pelos próprios textos
eliotianos.
No Brasil, o maior poeta e agora o
menos estudado em nosso próprio país, Jorge de Lima, foi o que
melhor entendeu a importância de Dante. Sua compreensão intelectual
de certas passagens da Comédia é admirável. Por exemplo, esta em que
ele fala da dança dos espíritos divinos ( Cantos XIII, XXX e XXXI do
Paraíso):
E de repente, passa-se de novo
a cena da coréia delirante:
e enquanto vem de cima o cisne de ouro,
os dançarinos mudam de semblante.
Senti meus olhos mais que dantes altos,
sem perceber se o giro estava em mim
ou se no seres áureos que giravam
como corola viva se entreabrindo.
Era um orbe rodando todo aceso
arrastando-me a vida: e aqui e além
levando-me de vez no eterno giro.
Da visão vale a hora verdadeira.
Ó minha graça, ó vida de repente,
que loucura medonha e que alegria.
A síntese de Jorge de Lima não
abarca apenas os cantos do paraíso aqui citados. Quando ele diz que
sentiu seus olhos mais do que dantes altos, sem saber se o giro do
orbe aceso estava nele ou nos seres áureos que giravam, não está
senão interpretando uma das passagens do Canto XXXIII, quando Dante,
fitando a Suprema Luz, ou seja, a Trindade, diz:
Non perché píú ch’on semplice sembiante
fosse nel vivo lume ch'io mirava
che tal é sempre qual sera davante;
ma per la viste che s’avalorava
in me guardando una sola parvenza,
mutandom'io, a me si travagliava.
Noutra passagem, Jorge de Lima nos
fala também da chama, aludindo não ao fogo purificador, mas ao
Espírito Santo, que do cimo domina os malebolges e a ilha "insofrida".
Aqui há uma alusão clara ao problema da queda. A montanha do
Purgatório é em Invenção de Orfeu, "a ilha insofrida", a "altiva
serra" que se formou simultaneamente com o Inferno, conforme a
explicação de Virgílio no final do Canto XXXIV. Virgílio mostra como
Lúcifer ao cair perfurou o centro da Terra. O cone formado pela
perfuração, contendo nove círculos, criou o Inferno, enquanto a
Terra espantada retirou-se no outro hemisfério formando a montanha
do Purgatório, que se ergue no mar (o mar do ser), constituída
também de nove moradas: os sete círculos ascendentes onde são
purgados os sete pecados capitais, o paraíso terrestre e a árvore da
vida.
Procurei mostrar até aqui a
influência de Dante sobre os grandes poetas modernos, elegendo como
exemplos Baudelaire, T. S. Eliot e Jorge de Lima. Poderia também
citar Pound, poeta complexo, que além de profético realizou em seus
Cantos — sua obra mais importante — algo tão grandioso quanto a
Divina comédia. Esses cantos também se dividem em três partes:
lnferno, Purgatório e Paraíso. A obra, trabalho de mais de quarenta
anos, constitui, efetivamente,uma poesia soberba. O Inferno é
representado pelos gregos, o Renascimento e as duas Grandes Guerras
Mundiais; o Purgatório é formado pela moeda e os bancos — os últimos
Cantos representam o Paraíso. Pound nos mostra a tragédia do mundo
moderno, a admiração do homem pelas máquinas; mas não esquece de
revelar que o inferno dos campos de concentração é tão realista e
doloroso quanto o próprio Inferno de Dante.
Poderia dizer ainda que, no caso
de Baudelaire, a influência que ele sofre seria mais de Milton do
que de Dante. Efetivamente, a subida de Baudelaire ao Empíreo, onde
depois de atravessar os longes estrelados não encontra senão a
"linguagem da flor" e da "matéria muda", revela uma tensão bipolar,
já notada por Hugo Friedrich: um dos polos da tensão o empurra para
os céus: o outro — o polo satânico — o devolve ao abismo. A imagem
dessa luta nos lembra uma passagem de Milton no Canto III do Paraíso
Perdido, quando um grupo de almas condenadas, depois de atravessar
os sete céus, as estrelas fixas e o móbile primeiro, numa busca de
reconquista do Paraíso, já levantava os pés sobre o primeiro degrau
das portas de São Pedro, quando um forte vento o dispersou, a uma
grande distância, na vaga região do ar. Entretanto, Milton é um
filho espiritual de Dante. O Paraíso perdido não teria existido sem
Dante, assim como Dante sem Virgílio não se poderia conceber. Meu
intento até aqui foi provar a modernidade de Dante. Os que o acusam
de obscuridade não são pessoas bem informadas sobre a Divina
comédia.
T. S. Eliot, em ensaio
mundialmente famoso, diz que Dante é mais fácil de ler do que
Shakespeare, que se serviu de uma linguagem metafórica extremamente
difícil. Dante, ao contrário, é mais fácil de ler do que os poetas
modernos, pois sempre expressa visões, "habito psicológico, cuja
arte esquecemos, porém tão bom quanto qualquer dos nossos hábitos
intelectuais modernos". Em certa passagem de seu estudo, lembra-nos
que hoje o costume de ter visões ficou relegado aos loucos e aos
ignorantes, mas que em certa época foi um gênero de "sonho
significativo, interessante e disciplinado".
Confesso que não me atrevo a discordar de tais conceitos. Isso é boa
crítica, porque ajuda o leitor da Comédia a não dar importância às
acusações de obscuridade em Dante. Um movimento muito cultivado em
nossa época é o Surrealismo. A palavra foi criada por Apollinaire,
mas o Surrealismo mesmo, segundo o manifesto de André Breton,
começou com Dante.
Ainda que muitos situem no mesmo
nível de Dante poetas modernos como Ariosto, Camões, Shakespeare e
Goethe, creio por uma experiência particular que não deriva apenas
do gosto, mas de um estudo quase sistemático da poesia, que a
Comédia é um livro único, uma obra que não pode ser comparada a
qualquer outra, nem mesmo ao D. Quixote, que também - como observou
Mário Casella, da Universidade de Florença — se fundamenta na
metafísica cristã do ser, realizando a epopéia do espírito que se
eleva a Deus e com ele se identifica, revelando a vida da humanidade
em seu passado, em seu presente e seu futuro, para além das divisões
esquemáticas da história e do tempo.
A concepção arquitetônica do poema
exige uma técnica de composição numerológica. Na Divina comédia,
quando se analisa o sentido dessas relações entre a numerologia e a
expressão poética em si, sente-se natural inclinação em separar a
função simbólica ou mística, dos números, daqueles valores
considerados próprios do poema.
Falo do poema em sentido amplo e
não apenas da Comédia. Desse ponto de vista geral, os números não
teriam significado poético; não constituiriam mais do que
maneirismos técnicos desligados da verdadeira expressão. Mas em
Dante os números funcionam também como imagens. Seria possível
alguém conceber expressão verdadeiramente poética sem imagens?
Croce, para quem a Divina comédia seria apenas pouco mais que
fragmentos líricos interrompidos por falsa ciência, vê no poema de
Dante a fixação da transcendência medieval na natureza protéica de
seu terceto, não parecendo dar maior importância aos números. Para
Croce, a poesia prescinde de estrutura, de artifícios,
configurando-se apenas através do ritmo, do metro, das palavras. Ao
negar valor à alegoria — e o número em Dante é também alegoria —,
Croce parece esquecer que o terceto por ele citado como inscrito em
bronze é quem sustenta, num encadeamento ad infinitum, a mais
complexa estrutura lingüística que a mente humana já organizou.
Mas a Croce não interessam
alegorias e outras figuras que sirvam apenas para revestir a
espressioni letteraria. Sua teoria da espressione poetiche é
interessante, porém arbitrária ao extremo. Claro que ele julga
qualquer poema de acordo com suas próprias teorias. Mas muitas
pessoas — inclusive eu — discordam delas; por exemplo, quando ele
exclui do âmbito das obras pertencentes à espressioni poetiche, Os
Lusíadas, os melhores poemas de Byron, alguns dos melhores livros de
Schiller, e até obras inconfundivelmente poéticas como os dramas, as
comédias de Molière. Parece-me que Croce, ao negar valor artístico
ao método alegórico, se contradiz, pois ao mesmo tempo concede à
imagem a importância que geralmente deve ter em todo bom poema. Onde
estaria, então, a contradição?
Justamente no fato de que não se
pode negar à alegoria uma condição de imagem. Daí por que — segundo
me parece — não se deve valorizar a imagem e negar a alegoria.
Sem recusar o conceito de que a
alegoria não é senão uma substituição do abstrato pelo aparentemente
concreto, ou como definiu Coleridge, "uma transposição de noções
abstratas para uma linguagem colorida", prefiro considerar o
alegorismo de Dante como um perfeito sistema de imagens
intensificadoras, do tipo das que Henry Wells encontrou nos poemas
de Spenser, ao procurar exemplos de tais figuras na poesia da língua
inglesa.
Para os melhores críticos de
poesia deste século, ao contrário de Croce, o método alegórico não é
frígido nem antiartístico. Croce fala das dificuldades da alegoria
por ser toda composição alegórica uma tentativa de "aproximação
convencional e arbitrária de dois fatos espirituais". Por exemplo,
um conceito e uma imagem, "pela qual se pretende que esta imagem
deve representar aquele conceito". Para a mente filosófica, educada
dentro de uma concepção de que o saber é coisa feita, vivendo todos
nós dentro da filosofia ou do conceito mondrianiano da arte
realizada, Croce pode ter razão. Para mim, que não costumo aderir à
autoridade dos filósofos ou dos teóricos, prefiro acreditar que
símbolo, imagem e alegoria constituem limites fluidos de um mesmo
território; ao fazê-lo, uso da mesma liberdade que Croce usa para
negar a existência dos gêneros literários ou afirmar que Os Lusíadas
não é uma obra poética.
Que seria, então, para Croce a
Divina comédia, cujo autor ele tanto admira e o chama de "pai
Dante"? A Comédia seria uma obra de serviço, uma obra de
compromisso, didático-estrutural, uma novela teológica, constituindo
justamente esta parte de compromisso ou de serviço o elemento
prosaico do livro, com trechos líricos emaranhados na trama
novelesca. Um seu discípulo — Karl Vossler — observou com certa
acuidade que para Dante jamais a relação poesia/prosa constituiu um
problema como ocorreu em relação a tantos poetas europeus do século
XX, para os quais depurar o poema de contaminações filosóficas ou
purificar a prosa de qualquer contaminação poética foram tarefas
árduas, muitas vezes convertidas em autoflagelação. Ao contrário de
Croce, Vossler é da opinião que Dante "teria visto no elemento
'teológico' o condutor, e na poesia um auxiliar que não fez
prevalecer a qualquer preço". Julgo, porém, que o juízo de Vossler
merece uma retificação.
Não creio que Dante tenha
desejado, na Divina Comédia, ser mais do que poeta, ainda que o
tenha sido. É o que pretendo demonstrar ao longo deste ensaio. Mas
antes gostaria de fazer algumas alusões ao problema numerológico.
Da l'un, se si conosce, il cinque e 'l sei
Este verso Dante põe na boca de
Cacciaguida no XV Canto do Paraíso. Vejamos todo o terceto:
Tu credi che a me tue
pensier mei
da quel che è prime,
cosi raia
da l'un se si conosce, il cinque e 'l sei...
Trata-se de uma referência à
metafísica numerológica de Pitágoras. O fato de a Divina comédia ser
estruturada sob uma concepção numerológica não foi ainda estudado
suficientemente. Acredito que os números, em Dante, têm mais do que
o significado místico que se lhes atribuía na Idade Média. Não
representam também apenas uma união entre o alegorismo numerológico
dos hebreus e a metafísica numerológica dos gregos.
Os números em Dante constituem
estruturas primárias destinadas a sustentar a cadeia de símbolos e
figuras alegóricas através das quais o leitor entra em comunhão com
o poeta e participa, assim, de sua viagem pelos mundos da
transcendência. Creio que é através dos números que o leitor se
sente identificado com a função transumana de que se encontra
investido o poeta, e cuja experiência nos revela no Canto I do
Paraíso, estrofes 22 a 24:
Beatrice tutta ne l'eterne rote
Fissa con li occhi stava; ed io in lei
le luci fisse, di là su remote
Nel suo aspetto tal dentro mi fei
qual si fé Glauco nel gustar de l'erba
che'l fé consorte in mar de li altri Dei
Transumanar significar per verba
non si poria, però l'esemplo basti
a cui espeilenza grazia serba
O número 9 na Comédia quase sempre
significa um milagre, por ser múltiplo de 3, símbolo da Trindade. O
trecho citado tem nove versos, que expressam de forma total tudo o
que Dante deseja para fazer sentir ao leitor o que significa
transumanar.
A passagem nos mostra que a
experiência de Dante, como pessoa que transpõe o plano humano e
situa-se diretamente no plano divino, não ocorre apenas no momento
em que ele contempla a luz divina, no último Canto do Paraíso. Já
aqui se revela a nova condição, depois que lhe fora apagado, num dos
cantos finais do Purgatório, o último dos 7 Pês que lhe haviam
marcado na testa, e Matilde o banhara nos rios Letes e Eunoé, sob as
vistas de nove figuras femininas: Beatriz, as quatro Virtudes
Cardiais, as três Teologais e a própria Matilde.
Os versos mostram que ele ao
observar o rosto de Beatriz, cujos olhos estavam fixos ne l'eterne
rote, viu na própria face de Beatriz a luz divina e dela foi
penetrado intensamente. Recorre então à bela comparação épica dele
com Glauco, que tendo comido um alimento exclusivo dos deuses
marinhos se sentiu de súbito deus do mar como os demais. Transumanar
Dante não pode dizer o que significa per verba, porém ao leitor
basta o exemplo de Glauco que acaba de referir. Creio que essa
passagem fez Mário Casella interpretar a experiência de Dante como
semelhante à de São Paulo: "Não sou eu quem vive, mas Cristo que
vive em mim."
Contudo, não é pela função
puramente mística que se deve atribuir tanta importância aos
números. Ainda que as poéticas omitam o número como elemento
essencial da estrutura do poema, para mim ele tem um significado tão
importante quanto a de outro qualquer fator integrante da obra
poética e que as teorias da literatura nunca dispensam, por exemplo,
a anáfora, a assonância, a rima entre os valores da camada sonora. O
símbolo, o mito entre as unidades de sentido. Creio que o próprio
número já transporta em si uma carga simbólica. Algumas vezes se
transforma em imagem cinética, como ocorre com o número 3 em Dante.
A presença de imagens cinéticas pode ser observada logo no Canto I
do Inferno, pela visão da pantera, do leão e da loba; ou no Canto
II, quando a Virgem, Santa Luzia e Beatriz rogam a Deus para que
salve o poeta da selva selvaggia.
Dante recorre a figuras de animais
e de pessoas (humanas, místicas ou divinas), em parte em obediência
ao cânon do medievo; em parte porque sendo — como observou Eliot —
um poeta competente, possui "uma imaginação visual". Todo esse
processo segue a tradição do medievo, que desde São Jerônimo se
vinha enriquecendo pelo cruzamento com valores poéticos e
filosóficos do mundo pagão.
Assim, à mística cristã dos
números, herdada do alegorismo bíblico, associa-se agora à
metafísica numerológica de Pitágoras. Mas a técnica poética de Dante
não é tanto quanto se julga uma herança do mundo greco-latino. Para
Dante, Virgílio é o guia. Mas Virgílio é também figura alegórica, um
símbolo quase puro de sabedoria moral. Por isso ele é o guia de
Dante durante 63 Cantos da Comédia.
Quanto à concepção estrutural do
poema, é nas poéticas medievais de origem inglesa e francesa — se é
válido o testemunho de Ernst Robert Curtius — em que "se apóiam a
poética e a retórica de Dante". A vantagem do método alegórico
utilizado por Dante é dar ao leitor uma presença imediata de algo
que impressiona, antes que ele possa alcançar idéia definida sobre o
significado daquilo que vê.
Por exemplo, as 3 mulheres que
aparecem no Canto 11 do Inferno não causariam a impressão que causam
ao leitor se lhes disséssemos que elas são transposições, em termos
alegóricos, da Misericórdia, da Justiça e do Amor. Para que imagens
desse tipo, freqüentes no poema, estejam presentes na memória, Dante
cria uma visão exterior do número — o terceto ou terça rima — imagem
estática e concreta que não se separa de quem o lê do início ao fim
de cada Canto. Mas o 3 aqui considerado imóvel e paradoxalmente em
movimento contínuo, ou até mesmo quando Dante fala das 3 mulheres
que surgem dançando na estrofe 41 do Canto XXIX do Purgatório e que
significam as virtudes teologais, não possui a transcendência que
encerra o número 3 em seu sentido teológico, anagógico ou místico.
Na realidade, a base do poema se assenta sobre o número 3; mas são
também importantes os números 7, 9 e 10.
Na Divina comédia é preciso
observar que cada alegoria, cada símbolo, possui vários níveis de
sentido. O 3 significa a Trindade. A viagem de Dante dura 7 dias,
que somados aos 3 cânticos em que se divide o poema formam o número
10, símbolo da suprema sabedoria. Vimos antes que Virgilio acompanha
Dante durante 63 Cantos. Os algarismos do número 63 somados entre si
são iguais a 9. A sabedoria moral metafísica, de que Virgílio é o
símbolo, pode guiá-lo até a aparição de Beatriz. Daí por diante,
restam 37 Cantos. Os algarismos do número 37, somados entre si, são
iguais a IO, símbolo da suprema sabedoria.
Giustizía mosse íl mio alto
fattore;
fecime la Divina potestate
la summa sapienza e I primo amore,
estes versos formam a raiz dos 9
que se encontram gravados em maiúsculas, nas portas do Inferno. Cada
cântico se divide em 33 Cantos que — segundo o alegorismo místico
medieval — correspondem ao período em que Cristo viveu como homem
entre os homens. Esses, somados, dão um total de 99, aos quais se
junta o Canto introdutório, para que se alcance o número que
representa o máximo da perfeição numa multiplicação única:
10 x 10 = 100.
O mesmo número se obtém quando se
juntam os Cantos que simbolizam a sabedoria moral guiando o poeta
(Virgilio), 63, e a sabedoria divina (Beatriz e São Bernardo), 37.
Aqui, em vez de multiplicação, o total de cantos do poema é obtido
por soma:
63 + 37 = 100
T. S. Eliot, apesar de sua grande
admiração pela poesia e estilo de Dante, fez certas restrições ao
Canto XXXIV. Diz ele que pode parecer grotesca a imagem de Satanás,
a sofrer tanto quanto as outras almas, quando o seu sofrimento devia
ser completamente diferente. Acredito que a imagem do Demônio, com
suas bocas a devorar os máximos traidores da História —.Judas,
Cássio e Brutus — constituiu para a consciência estética de Dante um
problema. Mas Dante, aproveitando as possibilidades expressivas da
alegoria, fez valer o espírito de sua consciência formal
fundamentada no número. E não teve dúvidas — segundo creio — em pôr
na cabeça de Satanás 3 faces, graças ao seu tremendo poder de
associação: as 3 faces correspondiam à África, Europa e Ásia, ou
seja, as três partes do mundo conhecidas na época.
Eliot admirou-se de que Dante
deixasse a essência do Mal encerrada em uma forma e lugar, quando
devia estar em toda parte; ao que parece não interpretou, com a
visão crítica que lhe é universalmente reconhecida, a significação
da imagem poética, do símbolo, pois aquelas 3 faces mostravam que o
Diabo se encontrava além dos limites do Inferno assim como também,
fora desses limites, se encontravam os traidores.
Números ou palavras que não
pertencem à estrutura lingüística de nenhum povo são freqüentes
entre os melhores poemas de autores medievais, não apresentando,
contudo, uma sistematização tão cerrada quanto em Dante. Sob esse
aspecto, podemos falar de magia, de obscuridade manipulada
intencionalmente; ao envolver o poema num véu, ao circundá-lo numa
atmosfera misteriosa, o poeta pretende aumentar a singularidade de
sua expressão, tomando-se um invocador de palavras dotado de
acentuado poder de comunicação, mesmo quando o sentido de sua
linguagem passa despercebido ao leitor que o admira.
É a isso que a crítica inglesa,
desde Ben Jonson, chama "lucidez poética", em oposição à "lucidez
intelectual". O importante para um grande poeta não é se fazer
compreendido ou entendido; mais importante é transmitir algo que
tenha para o leitor um caráter de revelação natural ou sobrenatural.
Qualquer grande poeta o possui, em certa medida, se não é um
diletante, se não está privado de uma concepção própria do mundo,
uma concepção que seja sua e esteja escrita na alma. Creio que essa
é uma das condições capazes de justificar aqueles poetas que vêem no
realismo uma concessão ao vulgo, desde que se entenda como vulgo não
o povo, sempre receptivo à obscuridade intelectual do realismo
poético não só na poesia, na literatura como nas artes em geral, mas
os semiletrados, impregnados de idéias políticas ou de teorias
sociológicas sobre a arte, sempre dispostos a defender o povo contra
o 'vazio', a 'obscuridade', o 'hermetismo', a 'falta de conteúdo', a
ausência do 'sentido da vida' ou de 'consciência social' dos
artistas.
Não entendem o realismo poético de
Dante, por se processar num plano de analogia, até certo ponto
fantástico, desenvolvendo-se sob uma contínua tensão provocada pela
magia das imagens de sentido plurivalente, por uma utilização
sistemática daquilo que integra a estrutura de uma verdadeira obra
de arte poética: ritmo, símbolo, metáforas, efeitos harmônicos dos
sons, aliterações, encadeamentos de rima, tudo harmoniosamente
disposto, contribuindo para aumentar a beleza da expressão e a
luminosidade do campo poético.
Por isso, estou de acordo com
aqueles que defendem uma autonomia de termos para a crítica moderna.
Os termos facilitam a compreensão do fenômeno criador. Fornecem-nos
mapas para a compreensão dos mundos que estamos a percorrer. Assim,
quando um critico diz que o estilo de Dante possui uma "lucidez
peculiar, porque o pensamento pode ser obscuro mas a palavra é
sempre lúcida, ou melhor, translúcida", sabemos o que ele quer dizer
e quão interessante é o sentido dessa observação.
Para Dante, o símbolo, a imagem
possuem, além de seu valor de relação com o objeto que procuram
representar, um significado próprio. Nele, a imagem se configura,
quase sempre, pela alegoria. Eis por que o leitor da Divina comédia
deve estar sempre atento à compreensão do sistema de formas
alegóricas adotado por Dante.
Claro que o mais importante para o leitor é sentir a própria poesia;
mas tenho minhas dúvidas de que alguém pudesse sentir a Comédia, se
Dante não criasse os meios indispensáveis à visualização dos
conceitos abstratos ou espirituais. A consciência formal de Dante
realiza essa tarefa, porque nele o poder visualizador das formas é
altamente desenvolvido.
Tais formas são quase sempre representadas por linhas, estátuas,
carros, monstros, círculos, montanhas, jardins, árvores, cruzes,
estrelas, coroas, lagos, flores, aves, chamas. São inumeráveis,
todas dotadas de grande força expressiva.
É o método alegórico em pleno exercício de sua função estética.
Vejamos algumas dessas formas. Por exemplo: a estátua que chora
eternamente e cujas lágrimas formam as correntes do Aqueronte, do
Flegetonte, do Estígio e do Cocito, os rios infernais perpetuamente
abastecidos pelo pranto que flui do tempo. A estátua é aqui a forma
concreta que representa o abstrato conceito de tempo e os rios
plenos de lágrimas e chamas simbolizam a dor, o choro oculto dos
homens que no mundo (a estátua está situada no mundo) sofrem e cujas
paixões foram as chamas punitivas da cidade de Dite, das margens do
Flegetone, onde Brunetto Latini, num apelo patético a Dante pede-lhe
que preserve o seu tesouro sieti raccomandato il mio tesoro, única
chama de vida que resta de sua alma morta.
No Purgatório, uma constelação de quatro estrelas constitui outra
forma, cujo objeto é visualizar as virtudes cardiais. Essas estrelas
espelham seus raios com tanto fulgor sobre a face de Catão, símbolo
da liberdade civil, que é sua luz igual à própria luz do sol, embora
a visão ocorresse pela madrugada:
Li raggi de le quattre luce sante
fregiavam si Ia sua faccia de lume
ch'lo 'l vedea cane 'I solfosse davante.
Noutra passagem do Purgatório (Canto XXIX) as mesmas virtudes
apresentam-se em forma de mulheres que dançam à esquerda do carro,
na procissão da Igreja em triunfo:
Da la sinístra quattro facean festa,
in porpora vestito, dientro al modo
d'uma diler chavea occhi in testa.
Esta mulher que tem os três olhos na testa é a Prudência. Os três
olhos simbolizam as dimensões do tempo: Passado, Presente e Futuro.
No Paraíso, os representantes da sabedoria, no quarto céu,
governados pelas potestades, aparecem em formas de coroas luminosas;
no céu de Marte, a forma em que se apresentam os heróis da luta pela
fé é uma cruz de estrelas, uma constelação de 9 cavaleiros.
Em versos soberbos, Dante nos mostra como eles apareceram, à medida
que Cacciaguida lhes anuncia os nomes:
"Pero mira necorni de la croce..
quelle ch'io nomeró li farà l'atto
che fa in nube il suo foco veloce".
Io vidi per Ia croce un lume tratto
dal nomar Josuè com'el si feo
né mi fu noto il dir prima che'l fatto.
E al nome de l'alto Maccabeo
vidi moversi un altro roteando,
e letizia era ferza del paleo.
Cosi per Carlo Magno e per Orlando
due ne segui lo mio attento sguardo
com'occhío segue suo falcon velando.
Poscia trasse Guiglíelmo, e Renoardo
e'il duca Gottifredi Ia mia vista
per quella croce, e Roberio Guiscardo.
Indi, tra l'altre luci meta e mista
mostrommi l'alma che m’avea parlato
qual era tra i cantor dei cielo artista.
Dante raramente usa a metáfora. Contudo, quando o faz, poucos poetas
o superam, se é que haja algum capaz de superá-lo. Observe-se o
primeiro terceto, quando fala Cacciaguida: "Por isso olha para os
braços da cruz, e aquele que eu chamar se fará presente como na
nuvem o seu fogo veloz."
Este fogo é o relâmpago. A metáfora é, portanto, altamente
expressiva. O segundo terceto confirma o que Cacciaguida lhe
dissera, pois um traço rutilante percorreu a cruz, ao ouvir o nome
de Josué, tão rapidamente que não pôde notar quem se fez primeiro: a
voz ou a luz. São passagens como esta que me levam a crer quão certo
estava Eliot quando fala de Dante como um poeta de imaginação
visual.
Observem-se, por exemplo, as belas imagens visuais da estrofe. em
que ele fala de Maccabeo: Vide moversi, girando como um pião
radiante; com atenção aguarda Carlos Magno e o sobrinho, tão atento
com'occhio segue suo falcon volando, diz neste verso de uma
modernidade surpreendente. Ao reunir num terceto o conde de Oringa,
Rinoardo, o duque de Bouillon e o príncipe Roberto, mostra-nos como
o sentido da visão está sempre disperso: Ia mia vistal per quella
croce...
Por fim, aparece novamente Cacciaguida:
mostrommi l'alma che m’avea parlato
qual era tra i cantor del cielo artista.
Assim, verifica-se que a forma da cruz representa uma visualização
ilustrada com exemplos históricos, da potencialidade interna que
possui cada homem de lutar e morrer por suas crenças, por seus
ideais, por sua fé, constituindo para Dante tal virtude uma razão
para alto prêmio, tão alto que esses cavaleiros se elevam por cima
de Santo Tomás e dos doutores da Igreja. Os símbolos de tal potência
interior são os que vimos: Josué, Judas Macabeu, o imperador Carlos,
seu sobrinho Rolando, o conde Guilherme de Orange, Rionador, o duque
Godofredo, conquistador de Jerusalém, Roberto Guiscardo e o tetravô
de Dante, Cacdiaguida, herói em batalha, lutando contra os
sarracenos.
Mais uma vez observa-se aqui o princípio da composição numerológica:
a cruz formada por nove estrelas.
A forma da cruz em Marte é seguida em Júpiter por uma forma
complexíssima: a imagem da águia, que simboliza o espírito dos
monarcas modelares. Ao criar a águia, podemos observar o tremendo
poder de Dante como artista. Um poder sobretudo de associação.
Nenhum poeta fizera isso anteriormente.
A águia não é apenas o símbolo do império nem de uma ave mortal,
l'aguglie morlali, como diz Dante. É uma águia coroada, mas ainda
que sua coroa nos lembre a monarquia, pois se forma do M de terram,
da expressão latina que aparece no final do Canto XVIII do Paraíso,
a forma com que agora se apresenta é antes de tudo um processo
técnico, uma fusão dos espíritos de seis imperadores, sendo que o
olho, a pupila da águia, é formado por David:
Colui che luce in mezzo per pupilla
fu il cantor de lo Spirito Santo,
che l'arca traslató di villa in villa:
Se Dante não houvesse conseguido criar esta forma — e esta é uma
criação exclusivamente sua, pois me parece não encontrar apoio na
tradição —, ele não poderia fazer cada um desses monarcas falar sem
romper o sistema da composição numerológica. A águia começa a
aparecer no Canto XVIII e o Cântico inteiro não pode ter mais de 33
cantos. Ele podia escrever quantos cantos quisesse, mas como explica
no último Canto do Purgatório, o freio da arte não lhe deixa ir
além: non mi lascia piú ir lo fren de l'arte. Ao estudar essa
passagem, concluí que não se devia interpretá-la como aplicável
apenas ao segundo Cântico, isto é, ao Purgatório, mas a qualquer
outro trecho do poema. Estudando mais atentamente o Canto XX do
Paraíso, observei que a descrição que a águia faz dos espíritos que
a integram se inicia na estrofe 14, com um traço estilístico típico:
a expressão ora conosce. E aparece seis vezes, a partir da estrofe
14 a 24, alternando-se de forma absolutamente regular. Exemplo:
Ora conosce il medo del suo canto,
in quanto effetto fu del suo consiglio,
per lo remunerar ché altrettanto.
Dei cinque che mi fan, cherchio per ciglio,
colui che più al bécco mi s’accosta,
la vedovella consoló del figlio:
Ora conosce quanto caro costa
non seguir Cristo, per l'esperienza
di questa dolce vita e de l'opposta.
O primeiro ora conosce se refere a David. A seguir, explica a Águia
que dos outros cinco imperadores que ornam seus belos olhos, aquele
que mais se aproxima do bico, la vedovella consoló delfíglio. Não é
necessário saber, por enquanto, quem é a viúva e o filho,mas o ora
conosce que se segue é muito expressivo, porque já não nos permite
dúvidas: esta luz é o imperador Trajano. A expressão ora conosce se
repete seis vezes, abarcando exatamente um grupo de tercetos que
formam um total de 33 versos, a contar do primeiro terceto onde ela
aparece até aquele onde surge pela última vez.
Não conheço nada igual, do ponto de vista técnico-artístico, em
qualquer literatura. Talvez seja melhor enviar o leitor ao próprio
texto da Comédia. Acredito, porém, que a união dos espíritos que
modela a Águia obedece unicamente à necessidade de síntese
resultante de uma consciência formal sempre desperta e o impulso
construtivista, de um pensamento de engenheiro, suportes de uma
atividade criadora que emula com Deus no plano da analogia, como
demonstram as estrofes finais do Canto XXXIII do Paraíso:
Ob abbondante grazia ond’io presunsi
ficcar lo viso per la luce eterna
tanto che Ia veduta vi consunsi.
Nel suo profondo vidi che s’interna,
legato con amore ín un volume
ciò che per l'univeno si squaderna.
Dante raramente se serve da metáfora. Na passagem citada, a metáfora
do livro estabelece uma relação entre a Divina comédia e o universo
criado por Deus. Depois de contemplar a luz eterna, e nela penetrar
até o centro, consumando a visão almejada, o poeta viu que se
interioriza nessa luz, como num livro encadernado por amor, tudo o
que pelo universo se esquaderna. A criação foi comparada a um livro
escrito por Deus: legato com amore in un volume. Dante, todavia,
tendo sido guiado por São Bernardo na fase final de sua viagem, teve
a visão de Deus, e, ao vê-lo, foi como se houvesse lido o livro
divino, pois ele diz que Ia forma, universal di questo nodo/ credo
ch'i vidi.
Mas o ver apenas não é o suficiente. Não poderá traduzir tal visão
senão aquele que se torne parte integrante da própria luz eterna, ou
seja, do próprio Deus. Para escrever o seu livro, expressando tudo o
que viu, Dante tinha que tomarse Deus pelo conhecimento experimental
do Inferno, do Purgatório e dos diferentes reinos da hierarquia
celeste. Dante pode entender essa luz porque ela vive nele.
Surge então o belo terceto, no qual expressa em versos soberbos e
altamente representativos do seu gosto pelas aliterações e
annominatios, sua integração à Trindade:
O luce eterna che sola in te sidi
sola t'intendi e da te intelletta
e intendente te, ami e arrdi,
De qualquer modo, podemos dizer que a compreensão da alegoria básica
do poema na( constitui problema para a sensibilidade de um leitor
inteligente, dotado de certa faculdade, crítica operante.
Primeiramente, temos que admitir pelo menos as interpretações
formulada pelo próprio Dante em sua famosa carta ao Can Grande della
Scala. A primeira seria uma inter- pretação literal: a segunda,
alegórica, a terceira, moral e a quarta, mística ou anagógica.
Outros níveis de interpretação podem ser encontrados, mas o roteiro
deixado por Dante revela-nos que a Comédia não pretende ser mais do
que um poema, uma visão poética do universo, justamente por ser uma
visão tão universal, é que os planos filosófico, místico,
tropológico teológico não podiam escapar à imensa rede em que se
estruturam os seus diferentes níveis.
A interpretação literal serve ao leitor comum. Devia ter uma força
maior ainda para o leito da Idade Média, quando a concepção
teocêntrica do mundo colocava Deus no centro da história.
Ainda hoje, a interpretação literal agrada sumamente ao homem que,
efetivamente crendo ou descrendo nos reinos de ultratumba, goza com
as descrições de Dante, com si técnica expressiva, e o tom novelesco
da Comédia. Para tal leitor, a Divina comédia seria uma obra de
ficção como outra qualquer. Por exemplo: um romance de Dostoievski,
uma novela de Proust ou de Balzac.
Mesmo entre os leitores modernos, poucos são os que não interpretam
literalmente as obras de arte literária, tanto dos autores antigos
quanto dos modernos.
Mas o sentido literal não deve ser entendido apenas nesse nível.
Dante exige do leitor que o interprete literalmente, a aceitação,
como realidade, de tudo o que foi por ele expresso Comédia. Em tal
caso, o poema exprimiria uma antevisão da vida do espírito após
libertar da carne.
Os outros níveis podem resumir-se num único sentido, senso
translato, em que o tropológico e o anagógico ou místico representam
l'uomo in quanto capace di meritare e demeritare per suo libero
arbítrio, e perciò dispendenti dela guistizia premiattrice e
puniatrice, diz, citando Dante, o professor F. Chiappelli.
Contudo, seja qual for a posição de Dante em relação aos mundos de
suas crenças, a Divina comédia constitui uma luminosa teoria da
humanidade, um código moral cuja obediência aos seus preceitos
levaria o homem à reconquista do Paraíso perdido.
Como escrevi certa vez, em um estudo sobre Jorge de Lima, acredito
que o Inferno e o Purgatório são símbolos representativos de
condições humanas concretas, transferidas ao espiritual e daí
arrancadas e incorporadas ao sensível. Inferno e Purgatório são
reinos da sensibilidade. Tanto um quanto o outro refletem "estados"
que podem ser comprovados experimentalmente.
Inferno e Purgatório são mundos de nossa experiência e da
experiência coletiva; da experiência individual e da experiência
social. A Terra significa ambos: no hemisfério antípoda do Inferno
se ergue a montanha do Purgatório em pleno mar: o mar do ser.
A diferença fundamental entre os 'habitantes' desses dois
hemisférios está no fato de que no Inferno o corpo se encontra
privado da alma. O Inferno é a treva em que vivem submersos os
assassinos, os traidores, os ladrões, os invejosos, os mentirosos,
os bajuladores, os iracundos.
Todos os homens vivos, tendo caído em tal estado (pois o Inferno não
é um lugar), perderam definitivamente a oportunidade de encontrar
quem os retire da selva selvaggia. O Inferno é a perda do poder de
escolha, é o abismo em que vivem todos os que se submetem ao império
de suas paixões. Nele, são atirados todos os que se negam a cooperar
na vida civil, os fariseus, os hipócritas, ou fraudulentos, que
possuem rosto de homem honesto, como o de Gerião, la faccia sua era
faccia d’uomo giusto, mas cujo corpo é de serpente, com cauda de
escorpião escondida no vazio tenebroso do poço infernal. Eis como
Virgílio aponta a Dante, no Canto XVII, esse monstro metafísico,
símbolo da fraude:
Ecco lafiera con le coda aguzza,
che passa i monti, e rompe i mupi e l'armi;
ecco colei che tutto, l mondo appuzzal!
Que leva, porém, o homem ao Inferno? Simplesmente o pecado?
Não. O pecado em si mesmo não conduz o homem ao 'estado' tenebroso.
Não porque exista uma hierarquia para o pecado. Mas porque se pune
com o Inferno a perda de um princípio.
No início do Cântico I, Dante põe na boca de Virgilio a relação do
mal para cuja redenção não há esperança:
Noi siam venuti al loco ov’io t'ho detto
che tu vedrai le gente dolorose
c'hanno perduto il ben de intelletto.
Perder o bem do intelecto é perder o que Dante não perdera quando se
viu sozinho, dominado pela paixão política, condenado à morte e
cheio de ódio, de rancor e de inveja, aos 35 anos, nel mezzo del
cammin di nostra vita. Não tendo perdido o bem do intelecto,
encontrou em Virgílio o exemplo de como o homem podia elevar-se da
"selva selvaggia" à visão de Deus, que afinal se consuma no Canto
XXMII do Paraíso.
Perder o bem do intelecto é perder, do ponto de vista psicológico, a
capacidade de julgamento moral. Perdida essa noção do bem, o homem
não encontrará mais os caminhos que o conduzam à prática da virtude,
à defesa da paz, ao cultivo do amor, do respeito aos direitos
humanos e da justiça.
Não fora isso e não se justificaria que o mesmo tipo de pecado que
atira o homem ao Inferno é aquele que o conduz ao Purgatório, onde
Catão, que do ponto de vista teológico não devia escapar ao limbo,
por ser pagão, nem a floresta di color fosco, por ser suicida, é o
número de Deus, "o mestre das almas que desejam libertar-se de sua
natureza viciada".
Contrariando ensinamento teológico, Dante colocou Catão no
Purgatório, o hemisfério continuamente iluminado por duas
constelações (as virtudes cardeais e teologais ), porque para ele o
homem virtuoso que se suicida para salvar a pátria e a liberdade
civil não pecou mortalmente contra Deus.
Por isso, se Catão não pode entrar no Paraíso, também não entrará no
Inferno o, sendo a única figura destinada perpetuamente ao
Purgatório, onde vive sem sofrimento, com a face sempre iluminada
pelos "raggí de Ia quattro luce sante".
Pondo à margem qualquer interpretação da Comédia, como obra
teológica, filosófica, antropológica, tropológica, mística ou moral,
resta-nos o principal nível sob o qual toda obra de criação
artística deve ser considerada: o estético.
Poucos poetas escreveram versos tão belos quanto Dante. Em seus
melhores momentos, nenhum se iguala a ele. Não me refiro a uma
beleza convencional, uma beleza que pudesse inclusive se desgastar,
sempre que transformações na estrutura da sociedade provocassem,
como geralmente ocorre, modificações no gosto das pessoas
esteticamente educadas.
Sabemos que Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, além de outros grandes
poetas deste século — todos considerados modernos no mais extenso
sentido — já começam a parecer 'fechados' quando colocados frente a
frente à expressão poética de Dante. Tudo o que um poeta de
vanguarda possa tentar hoje como inovação não constituiria segredo
para Dante. Com a diferença de que ele não foi um cerebralista,
tanto quanto julgam alguns poetas de vanguarda. Nele, o racional e o
sensível estão sempre em constante equilíbrio. Como teórico, exigia
do poeta culto a elaboração do poema com "magistério de arte", não
devendo abandonar-se mecanicamente, por casualidade, aos caprichos
do sentimento.
Contudo, não desprezava o que o "coração ditava", posição comum a
todo stilnovista. jamais foi um experimentalista puro. Nele, as
teorias funcionavam como mapas, guardando uma função essencialmente
instrumental. O certo, e este é um fato histórica que não se
discute, é que todas as conquistas da poesia italiana, a partir de
Dante até muitos séculos depois, foram, de certo modo, o resultado
de pesquisas, de experimentos.
Creio, todavia, que não devo repetir aqui o que já disse sobre o
assunto em ensaio sobre Camões. Naquele estudo, eu afirmo que ao
contrário dos poetas de vanguarda, que lançam manifestos sucessivos,
sem se deter no trabalho criador, os experimentalistas da Renascença
e da pré-Renascença viam suas formas muito cedo internacionalizadas,
resultando daí os estilos de cultura e as grandes obras como o
Orlando furioso, a Jerusalém libertada, Os Lusíadas.
Ao iniciar a Divina comédia, Dante já não é mais um experimentalista.
A reflexão técnica nele é constante; mas ao avistar Virgílio está
consciente de com ele haver apreendido "lo bello stilo che m’ha
afatto onore". No limbo, ele é o sexto entre os maiores poetas do
mundo. Suas experiências nunca o levaram a desligar-se da tradição,
daquilo que existiu no passado, mas não passou, pois vive com a
eternidade, "a cabeça erguida no presente do tempo".
O conhecimento das obras poéticas de Dante é de importância para o
crítico de poesia. O estudo da De vulgari eloquentia revela que para
Dante o poema deve estar impregnado de história, de filosofia, de
teologia, de ciência.
Os meios de fundir esses elementos, num símbolo altamente
representativo dos valores existenciais e humanos, são as artes, das
quais a poesia é a primeira, por lidar com a palavra, signo
intelectual e sensível, capaz de expressar a totalidade dos valores
do espírito e incorporá-los aos diferentes níveis da consciência.
Daí a riqueza de sua técnica literária, dos elementos de que se
serve para tomar bela a expressão, utilizando e ampliando as
unidades sonoras através do emprego das aliterações, annominatios,
anáforas. No Inferno, deseja empregar rimas aspre e chiocce, no
Purgatório, rimas melódicas e suaves;
Paraíso anáforas e rimas intensificadoras metafísicas, psicológicas
ou teológicas.
Por exemplo, Cristo, não pode ser rimado com nenhuma outra palavra,
embora a consonância seja perfeita em muitos outros vocábulos. A
rima não pode realizar-se por coincidência de sons, mas de valores
espirituais, valores psicológicos. Por tal razão, Cristo só pode
rimar com Cristo porque a palavra aqui perde a função de signo
semântico para converter-se numa imagem, num signo espiritual, para
o qual não existe correspondência: Cristo é unico!
Qui vince la memoria mia lo 'ngegno
ché quella croce lampeggiava Cristo
si ch'io non so trovare esemplo degno;
na chi prende sua croce e segue Cristo
ancor mi scuserè de quel ch'io lasso,
vedendo in quell'albor balenar Cristo.
Seguindo a convenção do número 3 para significar a Trindade, o
primeiro Cristo é Pai, o segundo, o Filho, e o terceiro, o Espírito
Santo. A rima é perfeita do ponto de vista artístico. A rima não se
repetiu, senão quando se considera apenas do ponto de vista dos
valores sonoros, eliminando-se toda carga espiritual.
O Canto XIII do Inferno, em que se descreve o bosque de color fosco,
formado pelos espíritos dos suicidas, nos dá exemplos de anáforas
duplas ou internas e aliterações bem representativas do estilo de
Dante. Para recordar ao leitor não apenas o emprego desses valores
sonoros mas a própria arte poética de Alighieri, que tanta
influência tem exercido sobre os poetas contemporâneos, transcrevo
aqui os três primeiros tercetos daquele Canto:
Non era ancor de là Nesso arrivato
quando noi ci mettemmo per un bosco
che da negsun sentiero era segnato.
Non fronda verde, ma di color fosco,
non rami schietti, ma nodosi e'nvolti;
nom pomi v’eran, ma stecchi con tòsco.
Non ban si aspri sterpi né si folti
quelle fiere selvagge che 'n odio banno,
tra Cecina e Corneto, i luogbi cólti.
Como se vê, as anáforas alternadas "non" e "ma " são do tipo
freqüentemente empregadas pelos maiores poetas da atualidade. Ainda
nesse Canto, quando Pietro della Veglia explica por que Frederico II
mandou vazar-lhe os olhos, levando-o ao desespero e ao suicídio, as
aliterações surgem como força que demonstram a grande potência
intelectual de Dante:
La meretrice che mai da l'ospizio
di Cesare non torce li occhi putti
infiammò contra me li animi tutti
e li'nflammati infiammar se Augusto,
che i lietti onor tomara in tristi lutti.
Observe-se que aqui a nota da tristeza está intensificada no último
verso pela acumulação da vogal "r" que aparece não menos de sete
vezes, juntamente com a consoante "t". Em todo o terceto o "i"
aparece 19 vezes. Efetivamente, o episódio é de uma grande beleza
triste. Quase tão triste quanto o de Francesca e tão patético quanto
o de Bruneto Latini, no Canto XV, e o de Ulisses e Diomedes no Canto
XXVI. Ainda no Canto XIII, este exemplo de aliteração, soberbo por
sua modemidade:
Lo credo ch’ei credette ch'i’credesse
che ...
Outra grande força de Dante é aquela em que ele se mostra capaz de
reproduzir no espírito do leitor certos estados típicos da alma,
revelando-se, sob esse aspecto, um psicólogo-poeta tão grande quanto
Shakespeare. Por exemplo, seu encontro com Casella, na praia do
Purgatório. Acredito que dificilmente o sentimento humano expresse
com igual nível de beleza uma atmosfera tão civilizada e tão plena
de sentimento nostálgico. Limito-me a transcrever o terceto em que
Casella começa a cantar, a pedido de Dante:
"Amor che la mente mi raggiona "
comminciò elli allor si dolcemente
che la dolcezza ancor dentro mi sona.
Para sentir-se quanto cantava bem o grande Casella hoje (diríamos o
Grande Caruso) e quão bela era a letra dessa canção escrita pelo
próprio Dante, basta dizer que a doçura de seu canto ainda agora soa
no espírito de qualquer leitor esteticamente sensível e não apenas
do poeta, como ele disse no último terceto.
O Paraíso é sublime. Perdoem-me o "sublime" os que não admitem tais
termos em crítica literária. As imagens luminosas são constantes
nesse Cântico; mas também aqui se manifestam artifícios e fórmulas
perifrásticas ao gosto dos mais revolucionários poetas modernos. Por
exemplo, esta passagem do Canto XVIII, depois de passados em revista
os cavaleiros que lutaram pela fé:
E como augelli surti di rivera
quase congratulando a lor pasture
fanno di sé or tonda or lunga schera,
sé dentro ai lumi sante creature
volitando catavano, e faciensi
or D, or I, or L on sue figure.
Quando estabeleci inicialmente uma relação entre Dante e os
modernos, acredito haver deixado bem claro que me referia aos
grandes poetas, na posse de uma consciência de sentido histórico,
que geralmente falta nos meus escritores sempre preocupados com
maneirismos formais, ou em parecerem maiores, como homens situados
em seu tempo, do que suas próprias criações. Minha conceituação de
modemo tem o sentido de novo, mas de novo que não rompeu com a
tradição, incorporando-a, ao contrário, aos valores do presente.
A grandeza de Dante como poeta está condicionada por essa
consciência de sentido histórico. Tal consciência, associada a uma
personalidade poética soberba, permitiu que se elevasse acima de
Virgílio e Homero. Bastaríamos recordar a dificuldade de certos
processos; certos problemas técnicos que ele foi chamado a resolver,
como o uso do terceto encadeado. Dante, com poucas palavras, ou
seja, as palavras iniciais que formam as primeiras rimas de cada
Canto, conseguiu uma explosão de rimas em cadeia, num total de mais
de quatorze mil versos.
Não há nada igual em qualquer literatura. Também é admirável o seu
poder de síntese nas comparações épicas.
Somente pela prática e assimilação de certos valores culturais um
poeta bem dotado poderá repetir em nosso tempo algo que tenha o
sentido de versos como estes, em que se associa ao resplendor
musical a clara consciência de uma potência interior mais capaz de
falar ao futuro do que ao presente, o que é de suma importância para
o verdadeiro artista:
O somma luce, che tanto ti levi
da'concetti morlali, a Ia mia mente
ripresta un poco di quel che parevi.
efa la lingua mia tanto possante
ch’una favilla sol de la tua glória
possa lasciare a lafutura gente;
chè, per tornare alquanto a mia memoria
e per sonare un poco in questi versi,
piú si conceperà di tua vittoria.
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