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Cleberton Santos


 

Reynaldo Valinho Alvares:
O poeta nas entranhas da cidade.*

 

 

Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto
estou sozinho na América.

(Carlos Drummond de Andrade, A bruxa)


 

No livro O Sol nas Entranhas [1] , o poeta Reynaldo Valinho Alvarez [2] realiza, através de uma voz lírica essencialmente urbana, uma das vertentes da poesia contemporânea: a poesia de “desencanto da cidade” [3].

Segundo Aleilton Fonseca [4] “o tema da solidão é recorrente na poesia moderna e se manifesta com assiduidade nos textos que tematizam a vida da cidade.” Assim, a solidão na cidade grande é um dos motivos geradores desse “desencanto” pela vida urbana presente na poesia desse autor carioca. Além de outros sentimentos de tonalidade negativa (tédio, tristeza, angústia) que constituem a matéria poética que plasmará os versos desse sujeito imerso no caos da grande cidade. Espaço no qual, como constatou Drummond, o poeta sente-se sempre sozinho entre milhões de habitantes.

Exemplar nesse sentido é o poema em prosa NINGUÉM É GERAL (p. 24), através do qual o eu poético anuncia seu sentimento de solidão na metrópole:
 

estou perdido e só mais perdido e só do que nunca
 

A mutilação do eu poético, experiência propiciada em parte pelo caos da vida moderna, é evidente na abertura do poema:
 

estraçalho-me neste sol de agosto
o céu me aquece
o ventre da terra me engole no asfalto

 

A morte do poeta (simbolizando a morte da poesia nesta sociedade de consumo que não tem tempo para desfrutar das inutilidades estéticas) é anunciada no canto solitário deste sujeito inútil (pois criador de inutilidade) que sabe ser seu inevitável destino estar sentado sozinho na ponta do penhasco destas ruas entulhadas de vazios.
 

estou morto entre os ciprestes
destes palitos de concreto que furam o bom gosto

há postes em profusão nas ruas entulhadas
as viaturas em decúbito ventral impedem-me a passagem

 

Eis aqui a imagem do homem moderno fragmentado e contorcido sobre sua própria solidão. A consciência aguda de estar perdido e só neste labirinto urbano de angústias e frustrações imerso num mundo que segue sua marcha fedorenta intensifica a dor existencial do poeta. Afinado pelo mesmo diapasão do “desencanto”, escreveu Manuel Bandeira sobre o Rio de Janeiro:
 

Hoje ninguém está contente.
Hoje, meu Deus, todo mundo
Traz na boca a cinza amarga
Da frustração... Minha gente,
Vou-me embora pra Pársagada.

(Saudades do Rio antigo)

 

Assim como Bandeira, vários outros poetas que viveram nas entranhas da cidade moderna também sentiram o indesejável gosto da cinza amarga das frustrações no confronto com este mundo banal e delirante, mas souberam transformar suas frustrações em formas estéticas que intentam “despertar e cultivar o que há de humano no homem” [5].

Estraçalhado, morto, triste, perdido, sozinho, são imagens que simbolizam a condição desse sujeito moderno que sem deuses para consolá-lo (pois a morte de Deus foi anunciada há muito), confronta-se consigo próprio, com seus semelhantes e com a cidade tentacular (palco primordial das sensações/experiências para o poeta moderno) e descobre-se “nada”. Desta perspectiva não há alívio para a dor do poeta. A não ser escrever: a catarse através da lírica.

Apenas o silêncio resta a essa humanidade desumanizada e bestializada, vítima do processo de um capitalismo impiedoso que devora todas as almas e corrompe todos os espíritos. A poesia torna-se incomunicável.

No poema LORCA E WHITMAN A LAS CINCO EN PUNTO DE LA TARDE (p. 25) o tédio, este sentimento tipicamente urbano dos fins do século XIX (fortemente presente no livro As Flores do Mal, do poeta francês Charles Baudelaire) que influencia bastante na vida psicológica dos homens nos grandes centros urbanos do século XX, é uma tônica recorrente que perpassa este livro reforçando o topos do “desencanto”:
 

o tédio está recolhido em minha mão
canto hosanas ao Senhor e estou cansado
o olho esquerdo me pisca sem parar
todos me perguntam que é isso e isso me perturba
estou farto de que me perguntem que é isso e deixo passar

 

Cansado e entediado da vida em sociedade (palco das máscaras e lugar onde impera a mediocridade humana), o poeta perturba-se com tantas perguntas indesejáveis e resolve afastar-se da vida banal, numa espécie de auto-exílio:
 

Não tomarei remédios não entrarei na tua biritarei por bibocas
Olharei de longe as biroscas das favelas
Meu olho complicado desvendará problemas insolúveis
Sherlocarei casos mil sob o cobertor
Beberei chá a las cinco en punto de la tarde
E haverá sangre de toros y matadores na infusão de artemísia

 

O tédio (proporcionado muitas vezes pelo ócio cultivado nas repartições públicas) é canal aberto à força criativa do poeta. Como resistência a esse esmagamento cotidiano imposto aos homens que vivem em uma espécie de geléia geral, amorfa e medíocre, a poesia insiste em brotar no meio do asfalto.

No poema 1938, CASA 14, VILA HILDA (p. 27) o sentimento baudelairiano da multitude/solitude marca sua condição de poeta solitário que flana pelas ruas da cidade e é tratado com extrema repulsa pelos seus semelhantes:
 

ando só pelas ruas e isso me dá uma grande tristeza
não encontro nenhum amigo esta cidade está deserta
e no entanto as pessoas me empurram dá licença
outros dizem eu merda sai daí bestalhão
quero sair pra onde mas não encontro a saída
há um duas três hiroximas me queimando por dentro
estou explodido e roubado não sei pra onde me levam

 

É a nova expulsão do poeta da cidade. Mas dessa vez ele insiste em ficar mesmo sem saber para “onde” vai.

O “deslocamento” do poeta na cidade/mundo é evidenciada pelo verso:
 

que estou fazendo nesta cidade neste mundo?
 

A indignação é grande diante desta vida porca e enfadonha que levam as gentes ordinárias. O poeta está farto da busca pelo status social que submete os homens à gravatas ensebadas e falsas alegrias dominicais:
 

esta fila é uma fila cachorra que não anda
estou farto de concursos e testes
a mesma vida porca de toda repartição
o mesmo colarinho apertado aproveitado de meu pai
a mesma gravata ensebada caída cafajeste
estou gordo e sem classe em meus vinte e dois anos
será que um dia me tratarão de doutor?

 

Na composição intitulada ROBSON CRUSOÉ NO MEIO DA TEMPESTADE (p. 60) o poeta retoma um figura emblemática da literatura universal, o náufrago Robson Crusoé, para reiterar em sua poesia o topos da solidão humana através de uma imagem de cidade-ilha, onde as buzinas parecem urros desesperados e o eu poético encontra-se ilhado dentro de si nesta metafórica ilha petrificada da solidão.
 

chamarei o motorista da companhia e seguirei solitário
de qualquer modo estarei ilhado no meio do tráfego
estarei ilhado dentro de mim
estarei ilhado
não sou mais que uma ilha sem comunicação com o continente.

 

No momento da morte, a consciência da solidão é definitiva e expressa em tom resignado.

Ainda na morte, o poeta será carregado pelas ruas da cidade e ouvirá roncos explosões buzinas e também a última trepidação das britadeiras, como se estas onomatopéias formassem a partitura do seu bizarro réquiem urbano.

A morte apresenta-se como solidão total (o último dos milagres como diria Bandeira), solução radical para o problema da incompatibilidade do sujeito com a vida, esta vida nas entranhas de uma ilha urbana que é morte antecipada. Desta forma Reynaldo Valinho Alvares forja em sua lira a poesia do “desencanto” à cidade moderna, afinando sua dicção no ritmo da tradição da lírica urbana iniciada por Baudelaire, o poeta das multidões.


Cleberton Santos – Poeta e crítico literário.
*Artigo publicado no Caderno Cultural do Jornal Tribuna Feirense.


Notas:
 

 [1] ALVAREZ, Reynaldo Valinho. O sol nas entranhas. São Paulo: Editora Três, 1982.

[2] Nascido no Rio de Janeiro, em 1931, é poeta, cronista, ficcionista e ensaísta premiado por diversas entidades literárias nacionais e internacionais. Vencedor do Prêmio Status de Poesia Brasileira (1979), com o livro O Sol nas Entranhas (poemas), que só foi publicado em 1982. Em 2003 esteve na UEFS participando do Colóquio A crise da poesia.

[3] FONSECA, Aleilton. O poeta na metrópole: “expulsão” e deslocamento. In: Rotas e Imagens: Literatura e outras viagens. Feira de Santana: UEFS, 2000.

[4] FONSECA, Aleilton. A poesia da cidade. Imagens urbanas em Mário de Andrade. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997. (Tese de Doutorado)

[5] Ferreira Gullar. Indagações de Hoje. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
 

 

Reynaldo Valinho Alvarez

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04.11.2004