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Cyro de Mattos


 


O projeto ecopoético de Cyro de Mattos

 


Helena Parente Cunha
Escritora e Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

No sempre lembrado e citado “O mal-estar na civilização”, Freud, a partir da sua visão cética da existência, menciona, entre os três maiores fatores responsáveis pela infelicidade humana, as incontroláveis turbulências da natureza. E nós, mergulhados na perplexidade deste milênio recém-inaugurado, bem sabemos do ímpeto devorador de tsunamis, terremotos e furacões, em nossos dias muito mais freqüentes e destruidores do que nos tempos do polêmico mago dos meandros inconscientes.

Com freqüência tomamos conhecimento dos efeitos catastróficos desencadeados pelo furor dos elementos, causando mortes e desgraças nos quatro cantos do planeta. Apesar das advertências alarmantes proclamadas pelos ambientalistas a respeito dos perigos de destruição, a sanha devastadora continua na queimada de florestas, na poluição das águas e dos ares. Por outro lado, nunca se ergueram tantas vozes nem se organizaram tantas cruzadas em defesa da humanidade e do planeta ameaçado.

Desde tempos muito antigos, os poetas se inspiram na natureza, ora como cenário, ora como amiga e confidente ou mesmo até madrasta. Não foram poucos os que se entregaram ao aconchego da grande mãe que dá seus filhos à luz e os recolhe na tepidez uterina, após a morte.

Cyro de Mattos, nos sugestivos versos deste livro, vive poeticamente o sentido primordial da ecologia, mantendo-se fiel à origem grega do vocábulo, Oikos = casa e logos = palavra ou linguagem. Ao nos voltarmos para o fundamento etimológico de ecologia, seu painel significativo se amplia e nos encaminha para o simbolismo de “casa” como centro do mundo e imagem do universo, direcionando-nos ainda para o sentido do ser interior. Portanto, a ecologia nos seus desdobramentos de sentido, nos insere no centro. No centro do mundo, onde moramos e no centro do ser que é a nossa morada. Através da linguagem, do logos.

Na bela imagística do seu discurso poético, Cyro de Mattos recorre às palavras reveladoras de uma sincera e visceral integração com a natureza. Os elementos, ao invés de comparecerem na mera composição de cenários, participam de vivências profundas do eu lírico..
O soneto dedicado à cidade natal, por exemplo, “Itabuna”, em tom delicadamente nostálgico, carrega ressonâncias do tempo de criança, impregnando-se da paisagem natural, transfigurada pela memória: “Como sonho menino nos outeiros” e, mais adiante “Quem nesse chão me plantou com raízes / Fundas até que me dispersem ventos / Da saudade e solidão?” As imagens se inscrevem na mesma atmosfera, “mãos de cata-ventos” ou “Quem me fez estilingue tão certeiro / Nos verões das caçadas ideais?” As evocações e invocações do último verso nos transportam a paragens paradisíacas pertencentes a um tempo irremediavelmente perdido: “Ó recantos! Ó águas do meu rio!”

Em várias passagens, o eu enunciador do poema se identifica com a rica fauna da terra natal do poeta, a região cacaueira ao sul da Bahia, haja vista a transfiguração onírica do pássaro que, “acontece”, isto é, realiza-se, torna-se real, na sua realidade poética tão viva quanto a que percebemos no plano da concretude: “Na nervura da pétala, / Tremor translúcido, / Meu pássaro tece e acontece.” Atente-se para o jogo aliterativo de sonoridades que reforçam a intenção significativa do leve e luminoso oscilar daquele “Tremor translúcido”. A rima interna de “acontece” e “tece” cria um campo metafórico que sugere o labor do pássaro, diga-se do poeta, enquanto tece, isto é, trabalha a realização do poema.

A composição “Oferenda” apresenta um momento supremo de doação à mãe terra feita pelo filho, ele mesmo teluricamente tornado parte daquelas criaturas vistas sem adjetivação, por se mostrarem na sua pureza essencial: “Abre-te terra, / ... / Última oferenda de teu filho / Que foi ave, mão e árvore, / Agora flor sem vento / Na poeira do tempo.”

No poema “Da Mulher”, os dois sujeitos amantes se completam através do jogo bipolar dos elementos simetricamente dispostos no mínimo de palavras que se bastam para dizer a complementaridade e a completude: “ Suas mãos // Minhas mãos: //Ave/céu, // Peixe/água, // Abelha/mel, // Raiz/chão”.

Ao contrário da antiga dicotomia – civilização versus natureza -- a ciência ecológica, na sua condição de nível superior do pensamento, empenha-se para que se harmonizem os dois extremos, indicando o relacionamento dos seres e das coisas entre si e com o todo. É o que se passa no projeto ecopoético de Cyro de Mattos. A propósito, o poema “Parábola” nos oferece uma verdadeira profissão de fé e solidariedade com o mundo natural: “Prometeu soltar os pássaros, / Não extrair a lágrima da árvore, / Repartir os frutos com os outros / Deixar a água limpa, / Não envenenar o céu.” Mais do que uma promessa, subentendemos um compromisso ou, pelo menos, o desejo voltado para reverter a onda devastadora.

Sabe-se que o verdadeiro sentimento ecológico intensifica os laços comunitários. No poema “Viola”, tudo faz parte de uma grande totalidade uníssona, em que dentro e fora se correspondem e a voz da comunidade ressoa no interior do eu: “Um povo e sua flor / dentro de mim / Com vozes, cores, rios./ Um povo e sua flor / Com ventos, aves, penas.”

A noção de totalidade, sugerida pela ciência ecológica, é registrada em várias passagens da produção do poeta baiano. No despojamento vocabular do poema “Ciclo do Azul”, o essencial se diz em poucas palavras abrangentes do ponto de vista significativo: “Em cima / O céu me iluminava, / Embaixo / O verde me encantava, / Os olhos / Navegavam no azul.”

Para Ezra Pound, o poeta é antena da raça. A sensibilidade do poeta lhe abre as portas da percepção para captar desejos humanos e carências vitais e, no dito de suas imagens, sugerir o indizível do mistério de nosso estar no mundo. Por mais que os avanços da ciência tenham conferido saber e poder aos habitantes da hora presente, a natureza não se deixou desvendar nos seus enigmas mais secretos. O encantamento poético é um modo de vivenciar e até conhecer oniricamente os arcanos da natureza.

A sensibilidade poética de Cyro de Mattos nos aproxima deste mistério que vivenciamos através da magia de sua palavra. Na celebração realizada nos poemas deste livro, todos nós, leitores e leitoras de Cyro de Mattos, deixamo-nos envolver pelo mistério escondido no esplendor da Grande Mãe Terra.

 

 

 


 

08/03/2007