Cyro de Mattos
Andanças de caminhante lúcido
Álvaro Alves de Faria nasceu na capital de São Paulo, no dia 9 de
fevereiro de 1942. Jornalista profissional, dedica-se especialmente
à área cultural, na qual exerce a função de crítico literário. Por
esse trabalho recebeu dois prêmios Jabuti da Câmara Brasileira do
Livro, em 1976 e 1983. É autor de vários romances, novelas e peças
de teatro. Foi o iniciador do movimento de recitais públicos de
poesia nas ruas de São Paulo, ao lançar o livro O Sermão do Viaduto
em pleno Viaduto do Chá, no centro da cidade, em 1965. Fez nove
recitais, tendo sido preso cinco vezes pelo Dops. Seus livros de
poesia são: Noturno-Maior (1963), Tempo Final (1964), O Sermão do
Viaduto (1965), Quatro Cantos de Pavor e Alguns Poemas Desesperados
(1973), Em Legítima Defesa (1978), Motivos Alheios (1983), Mulheres
do Shopping (1988), Lindas Mulheres Mortas (1990), O Azul
Irremediável (1992), Pequena Antologia Poética (1996), Gesto Nulo
(1998), Terminal (1998) e 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções
para Coimbra (1999), editado em Portugal. O poeta paulista, que
participa de antologias no Brasil e exterior, concedeu entrevista
exclusiva ao escritor Cyro de Mattos:
Da “Geração 60” dos poetas de São Paulo, Álvaro Alves de Faria é o
único que circula em diversas escritas literárias, tendo publicado
romances, novelas, ensaios e peças teatrais encenadas em várias
capitais brasileiras, além de praticar o jornalismo cultural, o que
lhe valeu o prêmio Jabuti de Imprensa, da Câmara Brasileira de
Livro, em 1976 e 1983.
Quando lançou O Sermão do Viaduto (1), no Viaduto do Chá, em São
Paulo, em nove recitais, que lhe custaram cinco detenções, até que
foram proibidas pelo Dops (Departamento de Ordem Pública e Social)
por motivos políticos, acusado de subversão, o poeta Alves de Faria
instalava um comportamento poético diferente do que se estava
acostumado a ver nos meios culturais. A geração antecedente de
poetas aprisionara a vida nas torres da arte.
Qual profeta moderno, o poeta revolucionário Álvaro Alves de Faria,
sem ser panfletário, recorria ao sermão para atar as pontas da vida
e da poesia nas grandes planícies. Usava a metáfora, a alegoria e a
parábola em plena via pública até perder-se na noção de sua altura,
exatamente naquele ponto em que se busca reencontrar uma morada
antiga. Na paisagem de incertezas, comparecia sob o tom luminoso
para resistir aos rumores e temores do abismo. Com uma dicção
bíblica enfrentava uma ordem política atemorizadora, que bania o
amor e galopava nas trevas, como se a solidariedade fosse inútil e o
absurdo do déspota a relva. Naqueles idos, a voz do poeta vibrava
com todo o seu empenho luminoso nos grandes e solitários desertos.
Ao pobre, ao triste, ao indefeso repercutia um ramo verde de luz. Do
coração sensitivo ofertava-se o trigo vindo dos longe comovidos para
os sem voz num campo de traumas.
Nos ventos de sempre, em que a poesia pulsa verdade e sentimento, o
poeta revolucionário cede agora ao transe lírico da memória e
coração nestes 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para
Coimbra (2). A forma do poema, a linguagem, o ritmo que sai da fala
poética enumerativa e repetitiva sobre seres e coisas aderem a um
fluxo lírico de forte teor emotivo, no coração acordado que fere a
“memória da memória”, cabendo aqui a observação feita na introdução
do livro pela professora Graça Capinha (3), da Universidade de
Coimbra, na medida em que esta viagem inexplicável vai sendo
empreendida pelo caminhante solitário. O coração transpira momentos
que lhe são caros; a memória, imagens em suas passagens puras e
ardentes. Situações que chegam de rostos, sombras, lugares que
surpreendem o poeta porque superpostos em outros liberados do
subconsciente, coabitam nele naquela zona suspensa do azul onde o
tempo perdura com o inexorável.
A emoção do poeta cresce nas gradações do amor que a cidade revela,
com suas ruas, becos, ofícios que afloram de outras cidades,
“degraus que não terminam”, telhados acumulados de ausências,
janelas fechadas, “portas do silêncio”. No tempo feito de história
que encanta, seqüência soberba de raridades arquitetônicas na
tessitura humana de um tear invisível, a cidade coberta por um manto
branco de casario belíssimo na encosta conversa com o poeta através
de rostos apagados na moldura que o tempo guarda, se não cabendo
“num vaso de porcelana”, pode até caber no olhar do anjo que fita o
mundo ou no aceno triste das distâncias que a alma recolhe. Dos
corações que habitam bocas, palavras saem atônitas, trazem sensações
solitárias nos passos que buscam respostas para perguntas que se
deixam levar na paisagem feita em segredo.
Com a sensação da paisagem guardada nos vitrais, fado dos becos,
ruas medievais, séculos de história, oração e o órgão barroco, o
caminhante de Coimbra ressurge de imagens “machucadas de anjos que
faltam no céu”, alusões aos poetas nos cafés, refletido no espelho
do rio Mondego, a descer sereno no eterno ante o provisório ao lado.
Oscila nas paragens dos antepassados, o pai nasceu em Lobito,
Angola, e a mãe em Famalicão, Portugal. Assim, memória e coração, de
mãos dadas em gesto de amor candente, produzem uma poesia que
palpita de suas fissuras cósmicas, pendendo vibração de remotas
raízes portuguesas.
Notas
1) Álvaro Alves de Faria, O Sermão do Viaduto, Traço Editora, São
Paulo 1998.
2) Álvaro Alves de Faria, 20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções
para Coimbra , A Mar Arte Editora, Coimbra, Portugal, 1999.
3) Graça Capinha, Que a Palavra do Viaduto É a Palavra do Século, in
20 Poemas Quase Líricos e Algumas Canções para Coimbra.
Cyro de Mattos - Como nasceu esse livro publicado em Coimbra, em
homenagem à cidade?
Álvaro Alves de Faria - É resultado de minha participação, no ano
passado, no 3º Encontro Internacional de Poetas, promovido pelo
Centro de Estudos Anglo-Americanos da Faculdade de Ciências e Letras
da Universidade de Coimbra. Acabei sendo um destaque nesse evento,
como pode ser constatado no ensaio escrito por Graça Capinha, que
serve de introdução ao livro. Isso me rendeu um contrato com a
editora A Mar Arte, de Coimbra, para a publicação de um livro por
ano. Envolvido pelas coisas da cidade, acabei escrevendo este livro.
Como diz Graça Capinha, trata-se de um mergulho na memória da
memória. Eu concordo com isso.
C.M. - Como ocorreu você ter escrito o livro com o português de
Portugal?
A.A.F. - Sinceramente, não sei. Creio que isso faz parte desse
envolvimento a que me referi. Voltei de lá com a poesia portuguesa
na cabeça, incluindo aí palavras, ritmo, situações. Acredito mesmo
que nesse caso o português de Portugal seria inevitável.
C.M. - Como foi o lançamento em Coimbra, qual a receptividade?
A.A.F. - A receptividade não poderia ser maior. O lançamento e
apresentação do livro foram no dia 7 de maio, no Teatro Gil Vicente,
que pertence à Universidade, onde também fiz uma leitura de poemas.
Um dia antes, fiz palestra e leitura de poemas na Oficina de Poesia
da Faculdade de Ciências e Letras. Depois participei da Feira do
Livro de Coimbra. No lançamento, cinco universitários leram poemas
de minha obra, de vários livros, dentro da apresentação feita por
Graça Capinha. Foi comovente. Todo aquele envolvimento, aquelas
pessoas cordiais, aquele interesse pelo poeta, pela palavra do
poeta. É muita cordialidade. Outro exemplo foi o tratamento da
imprensa ao meu livro. Como não se comover com um título assim, numa
grande matéria do Diário Beiras: “Poesia do Brasil para cantar
Coimbra”?
C.M. - E a reação das pessoas diante do livro?
A.A.F. - Estiveram no lançamento estudantes, professores, público em
geral, gente interessada mesmo, que conversaram comigo como se me
conhecessem há muito tempo. É preciso também louvar e destacar os
cuidados de minha editora, Elsa Ligeiro, que cercou o livro com zelo
e muito apreço, coisas difíceis de encontrar hoje em dia. É incrível
ver num lançamento assim gente de todo tipo, ingleses,
norte-americanos, espanhóis, franceses.
C.M. - Soube de seu discurso de agradecimento, que se transformou
num ato político. Como foi isso?
A.A.F. - Acho que tudo é um ato político. E isso ficou muito
acentuado, porque disse em certo momento: “Sou um jornalista
brasileiro que escreve as mesmas notícias há 30 anos. Venho de uma
cidade - São Paulo - que ela sozinha possui 1 milhão e 600 mil
desempregados. Sou de um país que obedece a determinações
estrangeiras. Sou de um país que mantém um equilíbrio ilusório às
custas da miséria. Sou de um país que vende tudo que tem como se
fosse sucata. Sou de um pais onde os dirigentes de hoje fazem
exatamente tudo que combatiam com veemência no passado. Eu queria
poder sonhar. Sonhar, por exemplo, com o país solidário , igual para
todos. Eu queria sonhar com um país onde os homens cumpram com suas
promessas, cumpram com suas palavras. Eu queria sonhar com um país
sem homens desesperados pelo poder”.
Cyro de Mattos é poeta e ficcionista; lançou O Mar na Rua Chile (Editus),
na III Feira Internacional do Livro da Bahia.
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