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Caio Porfírio Carneiro




Um cronista na vida


 


 

A eterna discussão se a crônica é ou não gênero literário nunca teve, para mim, maior sentido. Será literária se o talento de quem a escreveu pode levá-la à arte da escrita. A discussão surge porque, na maioria das vezes, o gênero tende ao circunstancial. Então a crônica pode refletir um simples acontecimento do dia-a-dia ou sublimar-se em pagina do melhor lavor literário. Em citação única e ligeira, para ficar nesta, lembro a crônica de Machado de Assis sobre a morte do velho Garnier, proprietário da famosa editora que levava o seu nome. Partiu-me e, ainda hoje, ao relê-la, parte o coração.

A crônica, pelo contrário, não é gênero de feitura fácil. Não são muitos os nossos bons cronistas. Numerosos são os que a praticam, mas não lhe sabem dar alma. Podem ser dadas noticias de um crime hediondo numa “crônica”, como se pode, através de uma crônica verdadeira, falar apenas de um poste.

Vem-me a relevo este curto e pálido comentário ao ler estas crônicas de Cyro de Mattos, reunidas em livro – Alma mais que tudo. Dentro da versatilidade temática própria do gênero, o autor se volta, de coração pulsante, em grande parte dos textos, às reminiscências do passado, seja da infância na terra natal, na juventude estudantil na capital do seu Estado ou na vida jornalística, no Rio de Janeiro. Mas, como todo cronista que se preza, aborda um universo de temas variados, analisa-os e dá o seu ponto de vista, se necessário. “Direis” que qualquer um procede assim. Não procede, não. O cronista verdadeiro domina o gênero, como domina um poldro bravo, e o conduz àquela dignidade, só dela, que lhe dá um todo inconsútil.
Então as crônicas, como aqui, levam o leitor a lê-las e senti-las como corrente de um elo só. Eis que há mais no cronista: sabe dizer, como dizer, e analisar com aguda sabedoria de observação, de vida e de arte literária, para além da jornalística.

E nos vem à lembrança o velho truísmo: ser simples sem ser fácil. Quaisquer destes textos são de uma leveza estilística notável. Tudo é elíptico e rápido. E nem poderia ser diferente, dada à dimensão de cada texto, todos praticamente do mesmo tamanho, por imposição provável do espaço em que foram publicados. Acontece que o autor encontra nos temas pontos nodais ou detalhes subjacentes, que trazem ao vivo riqueza não revelada deles, e os “ampliam” para além do que está escrito. Tal como a arte implícita do conto.

Como destacar os melhores trabalhos aqui reunidos? Por mais que se faça uma eleição pessoal muitos ficarão de fora. O que dizer de O Rio? Uma crônica poética? E de Quintais? Uma crônica - reminiscência? Salvador da Bahia? Uma viagem ao passado da cidade e ao próprio passado perdido do autor? Terras da Morte... O que dizer desta pagina? Haverá dimensão maior para a morte do que na curiosidade e aflição de um menino?

Para que mais citações... O livro todo nasceu do talento notável de um escritor, de um poeta do primeiro plano da poesia brasileira, de um senhor do como dizer na arte de escrever.

Cyro de Mattos dispensa apresentação. Tudo o que escreve e tudo o que publica trazem sua marca personalíssima. O seu estilo nunca sofre lesões que desnivelem a sobriedade e o ritmo cristalino da frase, sempre essencial e sem arestas.

Estes trabalhos são, em parte, um espelho da alma do autor, e em parte sua ótica de observação humana e critica do mundo que o cerca e, por extensão, do nosso próprio mundo, com alguns sinais sensíveis, sublimes em quantos desconsertos e precariedades.

Lê-se o livro de uma corrida.

Depois? Depois relê-lo, que não é obra para uma leitura só.


*Caio Porfírio Carneiro é contista, romancista, ensaísta e autor de livros para jovens e crianças. Secretário administrativo da União Brasileira de Escritores, São Paulo, há quarenta anos. Publicou, entre outros, “Os Meninos e o Agreste”, Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, e “O Casarão”, Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, volumes de contos.
 



Cyro de Mattos
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08/07/2005