Daniela Birman
Zumbis de Marcelino
30.07.2005
O escritor Marcelino Freire é capaz de
provocar reações extremas. Com sua fala pontuada por palavrões, a
capacidade de desconcertar ouvintes e leitores e a escrita que ecoa
em nossos ouvidos mesmo depois de termos fechado seu livro, esse
pernambucano de 38 anos é referência entre jovens autores por seu
trabalho e atuação, seja pela difusão da literatura na internet (ele
mantém o blog eraOdito) ou em articulações como o Movimento
Literatura Urgente. Na nova obra, a primeira que lança por uma
grande editora, a Record, Marcelino explora temas delicados e
polêmicos, como racismo e homossexualismo. As histórias que escreve
são banhadas de oralidade, tanto que o autor as nomeia no corpo do
livro de “cantos”, perfeitos para serem lidos em voz alta. O volume,
de 126 páginas e programação visual caprichada, aborda com
naturalidade sérios problemas, como o do turismo sexual. Marcelino
escreve a partir do ponto de vista do brasileiro pobre, miserável ou
até morto-vivo, como ele diz, tais como fantasmas zumbis que tudo
venderam para sobreviver, do rim ao olho. Filho de retirantes, o
escritor que mora em São Paulo desde 1991 afirma que a sua geração é
a da teimosia.
Gostaria que você contasse um pouco como surgiu o “Contos
negreiros”, como ele começou a tomar forma.
MARCELINO FREIRE: Eu gosto muito
de ver o livro como um trabalho homogêneo, imaginar uma unidade para
ele. Percebi que em vários livros meus os negros eram personagens.
Havia um conto que publiquei numa antologia chamado “Solar dos
príncipes”, tem o “Nação Zumbi”, sobre tráfico de órgãos, o
“Trabalhadores do Brasil”, sobre trabalho escravo. Percebi que havia
aí uma unidade, que sempre procuro nos meus livros. E comecei a
reler o Castro Alves, ler coisas do Jorge de Lima. Foi quando eu
peguei a coisa dos negreiros, contos negreiros, com Castro Alves.
Comecei a perceber que estava fazendo um livro negreiro.
São contos e cantos ao mesmo tempo?
FREIRE: Nunca chamo os meus
contos de contos. No “BaléRalé”, eu chamei de 18 improvisos. E nos
contos negreiros, automaticamente nesse universo dos livros do Cruz
e Souza, do Castro Alves, resolvi chamar de cantos. Trabalho muito
com a memória musical, de ouvido. Tenho a coisa da oralidade
sertaneja, dessas ladainhas, queixas nordestinas. O que eu faço
acaba sendo música, um canto, um maracatu qualquer.
Nasce sempre primeiro como som?
FREIRE: Eu não tenho muito
história para contar imediata, de cara. Tenho sempre uma frase ou
alguma coisa que vai me remeter a um som. Acabo sendo guiado por
esse ouvido que o nordestino tem. A gente está muito próximo de uma
ladainha. O nordestino é de falar muito, reclamar, se queixar. Isso
de alguma coisa ficou na minha memória e meus textos acabam sendo
muito orais, monólogos prontos.
Como é escrever um livro abolicionista hoje em dia? O que isso
implica?
FREIRE: Eu vejo o trabalho
escravo lá em Pernambuco mesmo, gente cortando cana para ganhar R$ 1
por dia. Você vê o tráfico de órgãos: existia todo um esquema que
saía lá de Pernambuco, de Peixinhos. As pessoas vendiam um rim por
R$ 10 mil. Era um esquema que levava esse pessoal para a África, um
hospital em Nampula. Saiu uma reportagem na televisão. A Polícia
Federal descobriu o esquema todo e eles ficaram sem rim, sem
dinheiro e sem nada.
Aí surgiu o conto...
FREIRE: O “Nação Zumbi”. Zumbi
no sentido de morto-vivo, de que você vai vendendo o seu rim, vende
o seu pé, o seu olho. Chegamos a uma tal miséria que Zumbi virou um
morto-vivo. A questão de turismo sexual já está presente no meu
livro “BaléRalé” e volta de novo à tona. Lá no Recife havia um vôo
alemão que chegava todo domingo às cinco da tarde. Trazia vários
alemães e eles sabiam que estavam vindo para o Brasil para ficar com
as negrinhas e os negrinhos. As pessoas já esperavam por esses
alemães no aeroporto e passeavam com eles por Boa Viagem.
Você sofre ou sofreu preconceito como nordestino morando em São
Paulo. De que modo isso influencia a sua literatura?
FREIRE: Eu sou filho de
retirantes, de sertanejos que saíram de uma cidade chamada Sertânia
por causa da seca e foram morar em Paulo Afonso, na Bahia. Não sou
de família rica, nunca fui. Vim para São Paulo sozinho,
desempregado, fodido de tudo. Ver essa cidade de igual para igual,
porque ela tem tudo para nos oprimir, prédios grandes, um tempo
corrido e o povo na velocidade do dinheiro. Você tem que correr. Já
estou morando em São Paulo desde 1991, há 14 anos. Enfrentei essa
cidade feito um Xangô, continuo enfrentando, e sinto muito na pele
essa coisa da luta. Não importa se você está trabalhando numa
agência chique de São Paulo ou se mora num buraco. O que faz a
diferença é a visão de mundo que você tem e as angústias que você
carrega. Não importa se você é rico, pobre, negro, chinês.
‘Esse negócio de cotas é vergonhoso’
Mas e o preconceito contra o nordestino?
FREIRE: Você chegar, nordestino,
vindo de lá, ouve muita coisa mesmo: ah, veio tirar o trabalho da
gente, veio lá de longe, da caatinga. Eu sou muito irônico. Ouvia
esse tipo de coisa e levava na gozação. Tudo isso é mais uma forma
de te oprimir. Prefiro entender as pessoas mais humanamente do que
ficar comprando briga. Tem uma coisa que percebo que é foda: o fato
de eu ser nordestino, mas ser um cara alto, branco feito leite
triste, isso de alguma forma atenuava o estereótipo nordestino. Se
eu fosse nordestino, negro e homossexual trejeitoso estava lascado.
Você acha que o racismo brasileiro está mudando a partir dessa
discussão de cotas?
FREIRE: Esse negócio de cotas é
vergonhoso. É vergonhoso o negro ter que entrar na universidade
porque foi feita uma cota para ele. O que é isso? Não é assim. Não
vou entrar na universidade porque tem uma cota para nordestino,
entendeu? Quero entrar de cabeça erguida. Não quero dever nada à
universidade, nada a governo não. Eu acho isso uma escrotice do
governo querendo amenizar uma coisa que é histórica. Há outras
maneiras de resolver e não se resolve. Por isso eu fiz aquele conto
que é na verdade uma crônica (“Curso superior”). Isso não é forma de
resolver. Resolver é você respeitar o outro, ver a outra pessoa. Não
se compreende o seu semelhante. Assim que você resolve qualquer
preconceito, se irmanando, se juntando, vendo que todos nós somos
iguais e estamos aqui nessa mesma merda, temos que nos ajudar.
Você é homossexual assumido e escreve sobre o tema nos seus
contos. Qual a importância dessa questão na sua obra?
FREIRE: Quando dizem para mim:
você é homossexual assumido, eu digo: oxente, eu nunca assumi nada
não. Por que eu tenho que assumir alguma coisa?
Eu já li em algum lugar...
FREIRE: Mas era essa resposta
que eu dava na entrevista. O homem perguntou: quando você disse para
você “eu sou gay”? Eu falei: nunca disse “eu sou gay”. Você diz eu
sou heterossexual? Não. Faz uma ficha cadastral para quem te
pergunta? Para uma roda de amigos? Na vida é tudo muito natural. A
coisa vai se desenhando, você vai se aproximando das pessoas, as
pessoas vão sabendo de você, você das pessoas. Eu fico abusando com
esse tipo de coisa que um heterossexual não responde.
Mas qual a importância desse tema na sua obra?
FREIRE: Já no “AcRústico”
(primeiro livro) havia um conto com esse tema. Mas não é um tema que
eu escolha. Isso automaticamente vai para o meu texto. Há contos que
eu chamo de contos ponte, que acabam levando a gente. Você diz:
nossa, esse conto está me levando para uma outra história, um outro
momento na minha literatura. “A sagração da primavera” foi muito
isso. É um conto de uma mulher que se apaixona por um bailarino e
todo mudo fica dizendo: ele é gay, não vai com ele não que ele é
gay. Tem essa coisa do estereótipo do bailarino e da cobrança da
sociedade, dizer que ele é gay. Talvez esse discurso entre muito
fortemente no “BaléRalé”, com essas perguntas que a sociedade acaba
nos fazendo, querendo respostas imediatas, quando são respostas
dadas na convivência e para quem interessa a você dar. São respostas
muito mais sentidas do que ditas.
Você é identificado como autor da Geração 90. Considera-se
integrante dessa geração?
FREIRE: Sempre digo que a minha
geração é a da teimosia. Uma geração de autores que apareceram nos
anos 90, mas já tinham um trabalho pronto ali. Esse rótulo de
Geração 90 não fez de ninguém escritor. Mas eu encontrei muitos
parceiros do crime. Num certo momento, esses escritores se
encontraram, a maioria publicada por editoras pequenas ou médias.
São autores que vieram com uma força danada. E a gente não se
cansou, fez trabalhos juntos, continua produzindo e fazendo uma vida
literária vigorosa e com diversidade. Essa geração denominou-se
Geração 90 até para marcar um território. Ela veio por essa
inquietação, vontade de dizer, fazer ouvir, sem esperar. Se tem algo
que une essa geração é o fato de fazer. Uma vida literária que há
muito tempo não se via, uma coesão de gente, não só daqui. A gente
conhece o pessoal do Rio, se corresponde, divulga. O pessoal de
Porto Alegre também, de Curitiba, Belo Horizonte. Na verdade, a
gente está na ponta de agitação disso aí, mas é uma agitação que já
estava sendo pedida naturalmente. Uma vontade coletiva que a gente
só fez começar.
Você esteve na última Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)
e foi um dos convidados da edição de 2004. O que achou do evento
este ano? Havia poucos escritores novos?
FREIRE: O que eu senti falta na
última Flip foi da presença de escritoras, já que era uma homenagem
a Clarice Lispector. Faltou uma escritora nova, que pudesse até
falar de Clarice. Uma jovem escritora seria fantástico, para mostrar
que a literatura não parou em Clarice, continua. Eu acho que houve
poucos escritores novos este ano sim. Não posso dizer que virou uma
regra, mas que senti falta, senti. Principalmente vendo o vigor e o
talento que estão por aí.
“Contos negreiros” é o seu primeiro livro publicado por uma
grande editora. É uma prova de que escritores talentosos, que
batalham, têm um caminho aberto, ainda que seja difícil?
FREIRE: Claro, você tem que
mostrar onde o calo aperta e o que você quer, pelo amor de Deus.
Gosta de escrever? Escreva, publique nos sites, circule, se
movimente. Não reclame, pelo amor de Deus. Eu mesmo publicava os
meus livros quando comecei o meu trabalho. Publiquei o meu primeiro
livro, meu segundo, até que surgiu o João Alexandre Barbosa, um
crítico de literatura muito conhecido, me indicou para a Ateliê
Editorial, escreveu o prefácio do meu livro, publicou esse prefácio
na revista “Cult”. Aí tudo começou. Mas se eu estivesse em casa
reclamando e com a bunda na cadeira, não teria conhecido o João
Alexandre, circulado, conhecido outros pares de luta.
Você integra o Movimento Literatura Urgente. Quais são os
objetivos?
FREIRE: O Ademir Assunção
(escritor e jornalista) vivia reclamando. Ele dizia: onde estão os
escritores que nunca vão a assembléias que discutem fundos de arte?
E ficava enchendo o saco da gente. Eu disse: Ademir, vamos então nos
encontrar para saber que danado é isso. Toda vez que se fala em
escritor no Brasil, as pessoas vão procurar a União Brasileira de
Escritores e a Academia Brasileira de Letras. Essas instituições não
nos representam, mas estão no imaginário popular e nas instituições.
Na hora de assinar documento, de fazer valer o voto para qualquer
lei em relação à literatura, são elas as procuradas. Com a isenção
de impostos que as editoras obtiveram (no fim de 2004), houve o
acordo para se criar um fundo (o Fundo Pró-Leitura), mas nunca se
falou do escritor enquanto agente criador. Nosso proposta é que
desse fundo viesse um percentual para o autor circular pelas
universidades, ter direito a uma bolsa. Isso com comissões
instituídas para definir cada projeto. A UBE, interessada nessa
discussão, esteve presente em reuniões nossas, para saber como
ajudar. Achei muito digno da UBE. Antes, houve a entrega de um
documento ao Gilberto Gil (ministro da Cultura) e ao Galeno Amorim
(coordenador nacional do livro e da leitura). Há muito tempo não
víamos os escritores reunidos para discutir uma política pública
para o livro. A gente apenas está se organizando, uma primeira
organização.
Leia
Marcelino Freire
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