Donizete Galvão
Entrevista de Dora Ferreira da
Silva
Revista Cult – Maio/99
Tradutora e poeta, Dora Ferreira da
Silva mantém sua fidelidade à poesia como via para se chegar ao
sagrado. Oito livros editados, duas vezes premiada com o Jabuti,
várias traduções, ela acaba de lançar Poesia Reunida pela Topbooks
(484 páginas, R$42,00) –que inclui sua obra completa, um prefácio de
Gerardo de Mello Mourão e uma fortuna crítica com ensaios de Ivan
Junqueira, José Paulo Paes e Vilém Flusser, entre outros. Dona de
uma voz poética em que se juntam emoção e pensamento, lirismo e
reflexão, à sua volta multiplicam-se os poetas. Todos ávidos por
suas palavras que reafirmam o papel da poesia em tempos sombrios.
Aos 80 anos, Dora chegou àquele ponto em que não precisa das
vaidades da vida literária. É contemporânea do eterno, como disse um
dos seus maiores amigos, o filósofo português Agostinho da Silva.
CULT – Você mal chegou a conhecer seu pai. No
entanto, a presença/ausência dele permeia toda a sua obra. Por que
você diz ter sido a Koré de seu pai?
Dora Ferreira da Silva – Você começa pelo nervo da questão. Ser a
Koré (mito associado à virgindade) de meu pai é um fato em que
acredito agora
Depois de ler tantos livros e ter estudado a obra de Jung. Todos nós
poetas temos nossos mitologemas. Um dos meus mitologemas é a relação
de Koré com Hades, das bodas com o deus sombrio. Para traduzir em
termos biográficos, meu Hades foi meu pai. Um dos primeiros poemas
que escrevi começa com um verso que diz: “Nunca vi teu rosto”. O
poema prossegue e de uma maneira não-linear trata rapto de
Perséfone. O fato de não ter conhecido meu pai despertou em mim uma
paixão pelo desconhecido, pelo mundo das sombras, pelo sonho. Quando
menina, minha mãe abria a janela do quarto e eu pedia que a deixasse
fechada.Quero sonhar mais um pouco, dizia. Era minha atração por um
mundo escuro e crepuscular. No escuro, podia sonhar, inventar e
divagar a vontade. Hoje, podemos dizer, sem o mínimo de escândalo,
que o primeiro amor da menina é seu pai. E do menino, a mãe. Toda
ausência do meu pai foi preenchida com meu imaginário. No meu livro
Poemas da estrangeira há uma série que denominei “Retratos da alma”
que mostra a evolução do meu animus (elemento masculino na mulher,
de acordo com a psicologia junguiana). Há um rei assírio, um
antiquário neurastênico e exigente em cuja loja de antiguidades
apareço coberta por uma pirâmide. São formas do animus negativo. Não
no sentido do mal, mas no do que é invisível e não lhe dá amor. Você
tem de inventá-lo. Num dos meus versos digo: “Pai, filho imaginário
do meu pensamento”. Meu pai é meu filho. Criado por mim.
CULT – Ingmar Bergman, ao comentar sobre um
personagem de O sétimo selo, disse que tinha visões quando criança.
Você que nasceu no mesmo dia, mês e ano que Bergman, também teve uma
imaginação fértil e povoada de visões?
Dora Ferreira da Silva - Estes dados biográficos sobre Bergman estou
sabendo agora por você. A minha imaginação sempre foi grande. Não só
a de olhos fechados, mas sobretudo a de olhos abertos. Eu gostava de
ficar na penumbra, criando histórias em quadrinhos. Criava imagens e
estourava de dar risadas. Minha mãe vinha perguntar porque estava
rindo. Tinha de mentir para não ser chamada de louca, boba,
distraída. Logo cedo eu percebi a marca da diferença que me fazia
sofrer. Não uma diferença da qual eu me orgulhasse ou que me fizesse
sentir especial. Queria ser igual a todo mundo. Fazer parte do
conjunto. A diferença me custou varadas, repreensões. Era chamada de
psicana por minha mãe. Era uma diferença que me magoava e me
humilhava. Só mais tarde, quando comecei a ler, surgiu uma
identificação com os estranhos, os inadequados. Identificava-me como
o Harry Haller de O lobo da estepe ou com a Nastássia Filipovna de O
idiota de Dostoievski. Foi só então que encontrei minha verdadeira
família. Nos Poemas em fuga, escrevo uma Carta a Ingmar Bergman.
Aquela carta veio do meu plexo solar. Veio com choro e soluços.
Sempre seguia os filmes de Bergman como se seguisse a trilha de um
irmão. Afligia-me com suas peripécias. Dizia: agora ele está muito
mal, agora melhorou. Só bem mais tarde soube que ele nasceu em 1 de
julho de 1918. Somos irmãos astrais. Todo este embate duro com a
infância me fez forte e fraca ao mesmo tempo.
Cult – Foi este sentimento de inadequação que
deu impulso para você começar a escrever?
Dora Ferreira da Silva – Não. O impulso teve origem na minha
família. Meu pai, Theodomiro Ribeiro, escrevia poemas. Numa época,
roubei de minha mãe as cartas dele. Ele escrevia uns sonetos bonitos
que nunca publicou. Do lado materno, também havia escritores, um tio
que era musicista nato, um primo pianista. A música sempre teve
importância enorme para mim. Eu mesma dedilhei um pouco de todas as
artes: o balé, o canto coral – tinha uma voz pequena, mas afinada -,
o desenho. Cheguei a estudar com Valdemar da Costa. Faziam parte
desse grupo Maria Leontina, Lothar Charoux e Mabel Vargas. Adorava
também os esportes. Sempre nadei muito. Tenho uma fascinação pelo
elemento água. Viemos para São Paulo quando tinha uns dois anos.
Fomos morar no final da rua Teodoro Sampaio, em Pinheiros. Mais
tarde vi a casa em que morei no exato momento em que ela estava
sendo demolida. Foi uma torrente de lágrimas. Aquela casa viu meus
primeiros pânicos, as primeiras surpresas diante do céu. Falei do
crepúsculo porque me assaltava um medo ao fim do dia. Entrava para a
casa aos gritos e chorando. Dizia para minha mãe: “O sol caiu de um
barranco e se machucou todo”. Todo aquele vermelho do sol se pondo
era sangue para mim. Minha mãe retrucava que o sol não se machucava,
era um astro. Astro para mim era apenas uma palavra. Uma abstração.
Quando viajava para Conchas, na casa do meu avô, também escrevia
cartas com poemas para minha mãe. Minha avó grega, Marietta, já
tinha morrido. Meu avô era a cara do Pirandello. Chamava-se Luigi
Locchi. Tinha uma farmácia, cheia de frascos e vidros. Era para mim
um alquimista. Talvez venha daí meu interesse pela alquimia. Andava
em lombo de burro para curar as pessoas nas roças. Hoje, na cidade
há uma praça com seu nome. Enfim, fiquei muito ligada a esse mundo
de Conchas. A água sendo retirada do poço. A seguir, sendo coada
para tirar os bichinhos. Nesta altura, eu já tinha herdado os livros
de meu pai. Tinha lido os poetas românticos como Álvares de Azevedo.
O primeiro poema que escrevi de Conchas, no papel timbrado Pharmacia
Locchi, chamava-se Os segredos do céu: “Céu por que não me confessas
teus segredos/Aclarando os mistérios que te cercam?”. Contava os
versos nos dedos, tentando escrever em decassílabos. Escrevia na
mais perfeita inocência, numa espécie de paraíso. Sem saber o que
era editar. Era um impulso forte, vindo do coração. Na verdade, não
descobri a literatura e, depois, a poesia. Descobri a poesia direto.
Vida e poesia para mim estão permanentemente entrelaçadas.
Cult – Como você conheceu seu marido, Vicente
Ferreira da Silva?
Dora Ferreira da Silva – Conheci Vicente no meu primeiro baile. Usei
um vestido branco e minha mãe tinha permitido o uso do batom. Achei
estranho ver aquela moça no banheiro usando batom. Quem nos
apresentou foi o Milton Vargas. Disse que queria apresentar um
“gênio” para outro “gênio”. Aos quinze anos, não havia para nós nada
menos do que a genialidade. Éramos todos geniais. O Vicente era dois
anos mais velho do que eu. Foi um encantamento súbito. Aconteceu
como se fosse um raio. Ele estudava direito, sempre com um livro de
matemática do lado. Aprendeu matemática com o professor Fantapié.
Chegou a ser assistente do filósofo norte-americano William Van
Orman Quine. Vicente sempre detestou o direito. Nunca exerceu a
profissão. Estudava e escrevia sem parar. Deve ter publicado perto
de mil páginas, mas escreveu o triplo. Tenho pastas e pastas dele
com aquela caligrafia sempre ascendente. No nosso primeiro encontro
fizemos um jogo do absurdo. Um fazia uma pergunta e o outro
respondia da maneira mais arbitrária e maluca. Ríamos muito.
Casei-me aos 19 anos. Vicente estudava e escrevia. Nunca soube
ganhar dinheiro. Foi professor de Lógica Matemática na Faculdade de
Filosofia da USP. Hoje, a matéria é valorizada. Na época era
abominada como um quebra-cabeças. Preparou-se muito para a
titulação. Sua tese se chamava Dialética das Consciências.
A política estava muito polarizada entre esquerda e direita. Vicente
não era da direita. Era um anarquista. Já minha visão era marxista,
via a política de uma maneira universalista. Acho meu lado político
está todo no livro Uma via de ver as coisas. Enfim, Vicente não
conseguiu o título. Oswald de Andrade também não. Estudiosos como
Ernesto Grassi fizeram preleções sobre a obra de Vicente na
Universidade de Roma. A recusa do título não perturbou a obra
filosófica de Vicente. Pelo contrário. Se tivesse sido professor,
talvez não tivesse escrito tanto. Vicente fundou o Colégio Livre de
Estudos Superiores. O pessoal remanescente da Semana de 22, como
Oswald de Andrade, participava. Iam professores da USP como Ítalo
Bettarello, anarquistas, freis dominicanos como Frei Rosário e Frei
Benevenuto Santa Cruz (que fundou e dirigiu a editora e livraria
Duas Cidades). Surgiam discussões acaloradas e em meio à polêmica os
freis saíam movimentando seus hábitos brancos. Antonio Candido fez
uma bela conferência sobe os Quartetos de T. S. Eliot.
CULT Foi com Rilke que você se entusiasmou
pela tradução? Elegias de Duíno é considerada até hoje uma tradução
insuperável. Qual foi seu método para traduzir Rilke?
D.F.S Rilke era um poeta pouco traduzido. Creio que não havia
tradução em português. Li a tradução inglesa de Stephen Spender.
Schwarczenbach, nosso professor de alemão, fazia muitas críticas. “O
Rilke diz coisas ininteligíveis. É um poeta que não vai durar nem
uma geração. Vamos traduzir Goethe e Schiller”, dizia. Eu não
arredava. Fui adiante com a edição em alemão e a inglesa. Foi uma
tradução apaixonada feita no escritório dessa casa nos momentos em
que havia aquele impulso para traduzir. Sinceramente, eu sabia pouco
do alemão para traduzir Rilke. Agora eu sei os poemas de cor (recita
versos em alemão). São poemas longos, difíceis, com um conteúdo
complexo. Há um outro mitologema muito importante para mim: o de que
os reinos dos vivos e dos mortos se comunicam. Olhe que eu não sou
espírita. O amor que tradutor sente por um poeta faz com que ele
estabeleça uma relação, um vaso comunicante com sua poética. Acho
que Rilke, de certa forma, me ajudou a traduzi-lo. Por isso, quando
não gosto de um poeta não insisto em traduzi-lo. Com Apollinaire,
foi assim. Reconheço o valor dele para a literatura, mas não senti
afinidade. Seria uma tradução apenas profissional. Quem descobriu
minhas traduções foi Francisco de Almeida Salles. Numa visita, viu
os poemas em uma mesa. Ficou entusiasmado e enviou para o suplemento
Letras & Artes, editado por Jorge Lacerda no Rio de Janeiro. As
Elegias saíam uma após a outra. Os leitores começaram a esperar
pelas próximas edições. Lembro que Sábato Magaldi foi um desses
entusiastas de primeira hora. Depois, fui procurada por um grupo de
admiradores de Rilke para fazer uma edição de luxo. O editor
importou tipos. Nonê de Andrade, filho de Oswald de Andrade,
desenhou um anjo para cada exemplar. Ganhei 10 exemplares. Fiquei
apenas com um e meu anjo desapareceu. Houve críticas elogiosas, uma
delas de José Geraldo Vieira. Mais tarde a Editora Globo quis
publicar uma edição mais barata para estudantes do curso de
literatura. Já deve estar na quadragésima edição.
CULT – Tradução e criação poética tiveram para
você a mesma importância?
Dora Ferreira da Silva – Caminharam sempre juntas. Continuei
trabalhando junto com o Vicente. Muitas vezes ele me pedia que
contasse o que tinha lido. Respondia que era impossível contar um
poema. A tradução ocupa um lugar tão importante quanto à criação.
Era movida por entusiasmo. Queria escrever como eles. Como já tinham
escrito, buscava traduzi-los. Para mim, a tradução é, sim, um
trabalho de recriação. A tradução literal não é poesia. Falta um
élan, uma coisa ígnea como esta chama da lareira. Esta chama é a
paixão. Traduzi Milosz, Saint-John Perse, San Juan de la Cruz, D. H.
Lawrence, Hölderlin, Angelus Silesius, T.S. Eliot. Só em 1970,
depois de ter feito uma leitura de meus poemas, meus amigos me
incentivaram a publicá-los. Publiquei Andanças que reúne poemas de
48 a 70. Para minha surpresa, ganhei o Prêmio Jabuti. Até então eu
não tinha a menor ligação com o público leitor. Nunca escrevi
pensando em um leitor ideal. Houve também comentários muito
positivos de Ernesto Grassi, do crítico italiano Enzo Pacce e na
Colóquio Letras de Portugal saíram dois artigos de Euryalo
Cannabrava. Carlos Drummond de Andrade também foi um leitor muito
fiel. Nunca o conheci pessoalmente. Falávamos por telefone ou por
cartas. Tenho cartas dele sobre todos os livros que lhe mandei. Em
Poemas da Estrangeira publiquei o poema que dedicou a mim. Liguei
para perguntar se poderia usar. Disse-me: “Nunca estarei tão bem
como quando perto de você”. Foi sempre muito generoso e estimulante.
CULT – Como eram as reuniões em sua casa? Era
como se fosse um salão literário?
Dora Ferreira da Silva - Não era um salão literário como o de D.
Olívia Penteado. Era o contrário de um salão. Tudo muito informal,
sem periodicidade. Juntavam-se as pessoas mais díspares e as coisas
aconteciam espontaneamente. Muitas vezes, o Vicente fazia
conferências ou lia parte dos seus escritos. Gilberto Kujawski
escreveu um artigo sobre esses encontros. Os poetas liam seus
poemas( entre outros, Carlos Felipe Moisés, Rodrigo de Haro, Roberto
Piva e Rubens Rodrigues Torres Filho nos anos 60). Ouvíamos música.
Quando o Vicente se impacientava, era eu que fazia sala. Passavam
por ali professores vindos da Europa. Já a história de que havia um
ritual de iniciação para os escolhidos, no sótão, é pura invenção.
Minha filha Inezita (Inês Ferreira da Silva Bianchi) e a Ritinha,
filha da Neli Dutra, sempre se reuniam lá. Não era uma parte
misteriosa da casa. A revista Diálogo foi fundada pelo Vicente com a
minha colaboração. Ele era a alma, o espírito e o centro da revista.
Tínhamos colaboradores de todos os lados. Depois da morte de
Vicente, não tinha mais sentido continuar a revista sem ele. Foi daí
que surgiu a revista Cavalo Azul. Foi inspirada nos cavalos etruscos
que conduzem os mortos para o outro mundo. Mais uma vez aparece um
mitologema: orfandade e viuvez trabalhadas de maneira parecida. É
espantoso como a palavra diz a coisa, vai ao núcleo do imponderável.
Para editar Cavalo Azul, tive a ajuda do Vilém Flusser e do Anatol
Rosenfeld. Foi uma colaboração bem estreita. Guimarães Rosa
colaborou com um conto magnífico chamado As garças. Veio três vezes
a esta casa da Rua José Clemente. As pessoas eram avisadas por
telefone e todos compareciam. Um homem fascinante, muito aberto.
Sempre alegre, elegante como um diplomata. Quando pedimos uma foto,
mandou uma em que estava vestido esportivamente, montado em um
cavalo e olhando para trás. Foi a partir dessa foto que escrevi o
poema A Guimarães Rosa, que está em Andanças. Dedicamos o número 8
inteiro de Diálogo à sua obra. Havia uma disponibilidade maior
naquela época para esses encontros. Houve, acredito, um esfriamento
das camadas interiores. Vejo o artista como um ser em ebulição. Seu
parente mais próximo é o vulcão.
CULT – Havia um outro grupo do qual
participava Agostinho da Silva.
Como foi?
Dora Ferreira da Silva – Demorei a chamar o Agostinho de Agostinho.
No início, ele era Dr. Agostinho. Era de uma grande erudição, um
helenista. Traduzia do grego e do latim. Escreveu muitos livros.
Entre eles Cartas a Diotima e um sobre São Francisco de Assis. Tinha
uma biblioteca popular. Saía pela cidade com os livros, fazendo
palestras e conversando com as pessoas. Tinha uma visão
universalista da política. Isso incomodou o ditador Salazar.
Agostinho veio exilar-se no Brasil. No grupo também estavam Jayme
Cortesão e suas filhas Saudade e Judite. Agostinho fundou diversas
universidades no Brasil, deu aulas na Universidade de Brasília. Era
um animador cultural. Conhecia pessoas do mundo inteiro. Os diálogos
dele como Vicente começavam cedo e iam até a noite. Uma pena não
terem sido gravados. Tinha heterônimos. Um deles era Matheus Maria
de Guadalupe. Soube que no Porto há um monumento dedicado a ele.
Achei que um monumento na terra não combinava com ele. Por isso,
escrevi Epitáfio para Agostinho da Silva: “Quatro pétalas brancas
sobre o Mar?/ Não! Quatro gorros de marinheiros portugueses/Flutuam
para sempre naquela imensidão”. Pensei em Agostinho ao falar sobre
Saint-John Perse na Biblioteca Mário de Andrade. Ele também fez
conferências naquele local.
CULT - Você tem uma –preferência pelo verso
livre? O que você acha das formas fixas?
Celso Luís Paulini e eu fizemos muitos exercícios com sonetos.
Partíamos de um primeiro verso e cada um desenvolvia o seu. Acho,
entretanto, um recurso fácil. As formas fixas são aprisionantes.
Gerardo Mello Mourão me escreveu uma carta em que diz que a poesia
joga com as formas, não com a fôrma. Traduzir O cemitério marinho de
Paul Valéry foi um jogo de muito prazer. Trabalhei em decassílabos.
Saint-John Perse também foi outra descoberta. Tinha sido presenteada
com um livro dele. Achei que não era poeta para mim. Muitas
palavras, difícil, com referencial complexo. Levei para a praia.
Numa tarde de tempestade, comecei a lê-lo em voz alta caminhando sob
a chuva. Mais tarde comecei a traduzi-lo. Para compreender Perse é
preciso rastrear suas fontes, os textos sagrados da China e da
Índia, conhecer Píndaro que ele também traduziu. Sua forma é livre,
não se deixa aprisionar. Há novidades estilísticas nos seus versos.
Você me diz que o acha hierático. Ele é hierático. Tem fascínio pelo
Egito e pelo Oriente. O hieratismo dele não é mero pastiche. É
poesia de alta qualidade. Tenho capacidade de gostar de coisas muito
diferentes.
CULT – Como você, que acaba de traduzir O
arquipélago de Hölderlin, responde a interrogação dele: para que
poetas em tempos de carência?
Dora Ferreira da Silva – Mircea Eliade abriu nossos olhos e nossas
idéias sobre religião. Tínhamos uma visão muito pobre, ofensiva
mesmo, como a de uma catequista, sobre a religião. No meu caso, a
parte espiritual é como um elemento condutor ou propulsor de minha
vocação poética. Acho que o papel do poeta é parecido com o daqueles
que levam a tocha na Olimpíada. Mesmo que o mundo esteja
dessacralizado, temos que acreditar que a vida é forte,
transforma-se e cria novas saídas. Penso na imagem de uma flor
brotando nos interstícios de uma pedra. Acredito nas diversas
manifestações do divino, no anima mundi. Temos que viver este
não-ser, esta noite, esta dor como uma passagem. A fidelidade de
cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que se tem, ser fiel
à sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de
suprir essa carência dos deuses.
Donizete Galvão é autor
de Do silêncio da pedra (96), A carne e o tempo(97),
Ruminações(2000) e Mundo mudo (2003), entre outros.
E-mail: dgalvao@uol.com.br
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