Dimas Macedo
Carlos
Augusto Viana
8.12.2002
ENTREVISTA
Os labirintos de uma escritura
Dimas Macedo é advogado e mestre em
Direito. Exerce as funções de Procurador do Estado e professor da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Estes
títulos, segundo ele, integram a biografia de um outro Dimas, com o
qual o autor de Estrela de Pedra (1994) não está muito de acordo,
embora seja ele um militante político sempre preocupado com a
distribuição da justiça e a efetividade da cidadania.
Costuma dizer que existe dentro de si
próprio uma polifonia de vozes e alteridades, e que com elas convive
de forma harmoniosa, mas às vezes também dissonante, buscando
preservar sempre a sua integridade e a sua dignidade latentes.
É o escritor do campo literário aquilo
que o seduz e o torna amante de si mesmo e do mundo que o cerca e
com o qual interage de maneira permanentemente comunicativa e
aberta. A literatura e a existência para ele são realidades
indissociáveis, pois compõem a face de uma mesma moeda: a vida em
seu sentido itinerante como reflexo da criatividade e das formas
superiores do pensar e do agir humanos.
Assim sendo, enquanto aguarda a
publicação do seu livro Política e Constituição pela Editora Lúmen
Júris, do Rio de Janeiro, que consolidará, por certo, a sua dimensão
de constitucionalista maduro, Dimas Macedo se prepara para lançar,
depois de amanhã, terça-feira, dia 13, às 19 horas no Centro
Cultural Oboé, com apresentação do poeta Adriano Espínola, o
livro-álbum de sua autoria intitulado A Face do Enigma - José
Alcides Pinto e Sua Escritura Literária, publicação ricamente
ilustrada por grande gravadores cearenses e que é também resultado
de uma edição primorosa do Instituto da Gravura do Ceará - INGRAV,
com projeto gráfico do professor e artista plástico Geraldo Jesuíno
da Costa.
Poeta e crítico literário preocupado
com o estudo da moderna literatura cearense, Dimas Macedo é membro
da Academia Cearense de Letras e integra o conselho editorial e de
várias revistas e suplementos de cultura, no Ceará e em diversos
estados brasileiros.
É de sua autoria A Distância de Todas
as Coisas (1980, 2ª ed. 2001), Lavoura Úmida (1990, 3ª ed. 2002),
Estrela de Pedra (1994) e Liturgia do Caos (1996), todos de poemas.
No campo da crítica ou do ensaio literário. é autor de Leitura e
Conjuntura (1984, 2ª ed. 1995), A Metáfora do Sol (1989), Ossos do
Ofício (1992) e Crítica Imperfeita (2001), sendo A Face do Enigma -
José Alcides Pinto e a Sua Escritura Literária o seu décimo primeiro
livro publicado.
Poemas e textos literários de sua
autoria foram vertidos para o inglês e o espanhol e publicados em
Portugal, Espanha, Inglaterra, Argentina e Estados Unidos. Dimas é
co-autor de Viento Del Nordeste, publicado pela Cátedra de Poética
da Pontifícia Universidade de Salamanca, em 1994, e prefaciador do
livro Withstanding The Four Winds (Londres , Minerva Press, 1997).
Pela conhecida de ensaios críticos do Museu- Arquivo da Poesia
Manuscrita publicou Marxismo e Crítica Literária (2001, já em 2ª
ed.) e pela Editora Oficina publicou, em 1997, o livro Tempo e
Antítese - A Poesia de Pedro Henrique Saraiva Leão, tendo também
organizado para a Coleção Alagadiço Novo da Universidade Federal do
Ceará os livros Ficção Reunida (1994), de autoria de Durval Aires, e
Ensaios e Perfis (2001), de autoria de Joaryvar Macedo.
Diário do Nordeste - Como nasceu A Face do
Enigma ?
Dimas Macedo -A Face do Enigma ainda não é o
livro definitivo que pretendo escrever sobre a vida e a obra do
escritor José Alcides Pinto, um dos nomes que mais influenciaram a
minha formação literária. Mas nele, acredito, estão os elementos
biográficos indispensáveis para qualquer projeto literário nessa
área. A interpretação que fiz da obra literária de José Alcides
Pinto, segundo ele próprio, é aquela que lhe tem mais agradado em
meio a quase uma dezena de livros sobre a sua personalidade
literária.
O livro nasceu de
uma provocação do Cláudio Pereira, que em 1994 me pediu um perfil de
cinco ou seis páginas sobre :Alcides Pinto para o Projeto
Personagens da Cidade da Fundação Cultural de Fortaleza. Aceitei a
encomenda com reservas, disse para o Cláudio Pereira que o meu texto
extrapolaria o reduzido número de páginas que ele me havia reservado
e que eu não aceitaria os recursos gráficos com que os livrinhos
vinham sendo apresentados. Ele, Pereira, aceitou o desafio, mas o
livro terminou não sendo publicado. Munido de uma máquina
fotográfica e de um caderno de anotações, estive, inclusive, no
povoado de São Francisco do Estreito, em Santana do Acaraú - Ceará,
onde José Alcides Pinto nasceu e onde ambientou a sua principal obra
literária, a famosa Trilogia da Maldição (Rio, Editora Topbooks,
1999), composta dos romances O Dragão, Os Verdes Abutres da Colina e
João Pinto de Maria - Biografia de um Louco. A fotografia se mostrou
indispensável para a complementação da minha reportagem e as imagens
plásticas dos ilustradores também.
A Face do Enigma
não é um livro singular. Ele é plúrimo e plástico como a obra
literária de Alcides. É composto de textos, mas é complementado
também por uma iconografia selecionada e por xilogravuras de grandes
gravadores cearenses, tais como Aberlado Brandão, Augusto Amaral,
Eduardo Eloy, Francisco de Almeida, Hélio Rola, Hílton Queiroz,
Nauer Spínola, Nilvan Auade, Roberto Galvão, Sebastião de Paula,
Sérgio Lima e Silvano Tomaz, e que se completam com uma gravura de
Audífax Rios.
- Dentre os percursos de José Alcides Pinto,
qual o mais desafiador: a biografia ou a obra? Os dois ?
Dimas Macedo -Os dois, indiscutivelmente. Não
é fácil decifrar José Alcides Pinto ou a sua obra de poeta ou
ficcionista. O mito que ele construiu em torno de si mesmo e da sua
escritura literária é desafiador. É encoberto de máscaras e
vernizes. Manipula malabarismos os mais variados. Ilude. Arquiteta
estéticas que o embelezam e deixam o leitor aturdido. José Alcides
Pinto é um mágico na arte do despiste. Aceita o qualificativo de
maldito, mas é, no fundo, um místico torturado e um cristão selvagem
ainda em estado primitivo. Ele faz da sua obra um palco de encenação
da sua vida e da sua vida ele faz uma paródia da própria criação.
Aliás, a criação e o juízo, a alegoria do gênese e do apocalipse
estão inteirinhas, por exemplo, em Os Verdes Abutres da Colinas,
romance cujo cenário é justamente o povoado de São Francisco do
Estreito, lugarejo que ele incorporou, definitivamente, aos
escaninhos da literatura brasileira.
- O que mais o fascinou na biografia de
José Alcides Pinto?
Dimas Macedo - Tudo, na vida e na obra
de Alcides Pinto, acontece de forma quase imprevisível. Ele é um ser
humano mágico e estranho. Porém humano, perdidamente humano,
demasiadamente humano e hiperbólico. Sabe tirar das coisas diminutas
e do seu restrito universo pessoal, os matizes essenciais de sua
obra. Fascinou-me em sua biografia quase tudo o que descobri nas
minhas pesquisas, mas tocou-me fundamentalmente o seu completo
despojamento e o seu indiscutível poder de renúncia. Chamou-me
também a atenção a sua abertura para a liberdade e para a graça, que
é, a meu juízo, o significado maior de toda a sua existência e de
toda a escritura que arquitetou. A sua mitologia literária é talvez
a coisa mais fascinante de toda a sua ficção.
- Por que o universo criador de José Alcides
Pinto constitui uma ´mitologia literária´?
Dimas Macedo - José Alcides Pinto costuma ser
visto pelo público como um poeta maldito. É o poeta maldito ou o
grande maldito da literatura cearense. E a sua obra de ficcionista,
não conta? Pois é justamente a sua ficção aquilo que mais me
interessa, em primeiro lugar. É nela que ele modela as suas
personagens mitológicas - o avarento João Pinto de Maria, o louco
Chico Frota, o garanhão luso Antonio José Nunes, (personagens de sua
trilogia da maldição: ´O Dragão´; ´Os Verdes Abutres da Colina´; e
´João Pinto de Maria -A biografia de um louco´) os quais ele reveste
com os modelos com que foram feitos os mitos de todos os tempos. É
como se ele, José Alcides Pinto, escrevesse pensando em seus
familiares e conterrâneos do Estreito, porém olhando para os efeitos
especiais e de movimentação de imagens e sentidos que os manuais de
criação artística nos ensinam. Ele, no entanto, é construtor da sua
forma e do destino de todas as suas personagens. José Alcides está
em quase todos e possivelmente entre todos os personagens que cria e
manipula. Ele ouve as suas vozes e as proclama para os leitores.
Veste suas máscaras e se deita com eles na varanda. Vasculha suas
sepulturas. E mais: na sua peça de teatro intitulada Equinócio,
propõe a todas as pessoas uma convivência pacífica e benéfica com o
demônio.
Em A Face do
Enigma, dissertando sobre essas criaturas estranhas que povoam os
romances de José Alcides Pinto, afirmo que o traço genealógico e a
antropologia germinal e atávica, no caso específico da sua escritura
literária, constituem os elementos distintivos mais curiosos da sua
engenharia ficcional. E acrescento: ´Rosa Cornélio de Jesus, a
matriarca, Maria Patrocínio de Jesus e Manoel Alexandre Pinto, os
avós paternos, Maria José Frota (Donana Cajazeiras) e Francisco das
Chagas Frota (Chico Frota), os avós maternos, ao lado de Maria do
Carmo Pinto (Loló) e José Alexandre Pinto (André) são todos,
indistintamente, personagens da sua mitologia literária´.
- José Alcides Pinto é autor de uma obra
plural e polifônica. Essa diversidade criativa se dá de forma mais
acentuada na ficção ou na poesia ?
Dimas Macedo - Em ambas. A polifonia, tal como
teorizada por Mikhail Bakhtin, é uma das maiores categorias que o
investigador pode utilizar para compreender a obra de um gênio. A
pluralidade de vozes é intensa em Alcides Pinto, principalmente na
sua ficção: a de Cristo, a do demo, a dos loucos e visionários, as
dos seus ancestrais mitológicos. Não existe em sua escritura um
único eu interior que verbera. Existe um teatro de transgressores e
devassos, que pecam para se fazerem arautos da concupiscência, mas
que se unem em busca da graça e do perdão. A voz de Deus, em
Alcides, no entanto, é a maior de todas as sinfonias polifônicas. E
é o sentido de Deus e a sua incessante busca aquilo que ele apreende
e nos ensina.
- Que traços aproximam a prosa e a poesia de
José Alcides Pinto? O que afasta uma da outra?
Dimas Macedo - A poesia de José Alcides Pinto
reina em sua prosa de maneira quase soberana. É difícil separar uma
coisa da outra. A sua prosa é uma antropologia germinal e visceral
de si mesma. E a sua poesia é um diálogo com os grandes sentidos do
mundo e com a condição humana como um todo. O império da carne e os
apelos velados da pulsão sexual reprimida. O impacto da sensualidade
sobre o destino do homem. A punição e o juízo final. A busca
permanente da liberdade e a pesquisa incessante das formas. Eis
alguns traços que aproximam a prosa e a poesia de José Alcides
Pinto. As formas e o viés estético como culminância da obra
literária.
- Qual o principal legado de José Alcides
Pinto para a literatura brasileira?
Dimas Macedo -Pedro Henrique Saraiva Leão, que
introduziu, com José Alcides Pinto, o concretismo no Ceará, costuma
dizer que José Alcides é o nosso García Márquez. E é. Mas o que ele
é mesmo é o José Alcides Pinto brasileiro. Um escritor uno e
inviolável dentro de si mesmo, como ele próprio se proclama. O
fantástico, tal como trabalhado em seus grandes romances, é um
legado imenso para a literatura brasileira. Mas o viés
autobiográfico e memorialístico, revestido de máscaras estéticas e
de despistes, é um grande legado também.
- Por fim, o que gostaria de acrescentar sobre
A Face do Enigma?
Dimas Macedo - A Face do Enigma é um livro
plástico, antes de ser uma escritura literária. Tudo nele é
sincrônico e se completa. O texto, as fotos, as xilogravuras e o
cordel que é ponto de partida das ilustrações se integram. Sempre
sonhei fazer um livro desse jeito e outros virão, no futuro,
costurando esses elementos. A estética de hoje é fundamentalmente
isso: imagens, sentidos, perspectivas cênicas, linguagem literária
condensada e pouco discurso no velório, pois o passado está morto e
a pós-modernidade é o futuro que já aconteceu.
SERVIÇO: O livro ´A face do enigma´, de Dimas Macedo,
será lançado no próximo dia 10, terça-feira, às 19h, no Espaço
Cultural Oboé, à rua Maria Tomásia, 531.
Carlos Augusto Viana - Editor
Leia José Alcides Pinto
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