Dimas Macedo
Ficção e memória
Muito difícil, às vezes, repassar ao
leitor os diversos sentidos de uma obra de arte literária. As suas
entrelinhas, os seus recortes estruturais e semânticos e as suas
armadilhas estilísticas escondem ao ato de recepção da escrita e da
sua estética prazerosa muito mais do que aquilo que a crítica
literária revela.
Vale ao leitor o desafio de mergulhar
no labirinto do texto e aí encontrar as suas fontes de prazer e
entretenimento. A narrativa não é tudo o que podemos encontrar na
abordagem do romance moderno, pois a linguagem, às vezes de forma
indispensável (e induvidosa), é a sua essência e o sentido daquilo
que podemos entender como conteúdo do texto.
Quando, no entanto, encontramos em um
único romance o domínio de uma linguagem concisa e elegante e
estruturalmente muito convincente, conjugada com a retomada da
narrativa e com o poder de imaginação do autor, podemos dizer que
estamos diante de um escritor que sabe o seu lugar na corte dos
iniciados, na difícil arte da construção da longa ficção.
Mano Melo, com o seu provocante Viagens e Amores de Scaramouche
Araújo (Rio, Editora Fivestar, 2005), convence-nos que veio para
confirmar a sua vocação de romancista. Reconhecido como poeta, ator
e declamador dos poemas que escreve ou que partilha a autoria com
grandes nomes da literatura, esse cearense expatriado e agora
recolhido ao calor humano da cearensidade, consolida-se como
escritor de estatura maior.
É arrojado o projeto editorial do seu
livro. Sinfônico e indiscutivelmente muito bem finalizado. Prova de
que é sempre possível inovar neste campo, e de que o mercado
editorial no Brasil continua um desafio e um território ainda a ser
explorado.
Na construção da sua narrativa, parte
o autor de um argumento que ultrapassa até a projeção do enredo.
Conta-nos a história de um cearense que, ao final de inúmeras
andanças a marinhagens, fatura uma grana inesperada e volta ao Ceará
em regime de licença poética e de restauração de parte da sua
memória afetiva, viajando (e velejando) por diversos lugares do
sertão e do litoral, até encontrar, numa praia de Icapuí, o condutor
da sua narrativa.
Scaramouche Araújo é uma espécie de
alter ego do autor. Não é o personagem principal do romance, mas, no
caso, o pretenso autor do manuscrito que o engenho e o argumento do
romancista vai arquitetando. E por aí a narrativa começa a se
movimentar, contando-nos as aventuras de Scaramouche, as suas
conquistas amorosas e a sua experiência de vida alternativa.
Dá-nos assim Mano Melo o retrato de
uma geração, que adota a liberdade, a transgressão dos prazeres e o
movimento da vida como resposta de suas ações e realizações.
Índia, Goa, Bombaim, Nepal, Paquistão,
Afeganistão, Turquia, Grécia, o espaço geográfico do Mediterrâneo, a
Europa Continental, especialmente Amsterdam, Sofia, Alemanha,
Londres, Lisboa e Paris, e bem assim o Rio de Janeiro, são lugares
privilegiados do globo por onde Scaramouche/Mano Melo passa com a
sua troupe e a sua objetiva literária e cinematográfica, dando-nos
lições de como a imaginação pode transformar a ação romanesca e
elevá-la à categoria da verossimilhança.
O romance, no entanto, não é apenas
isto. Existe técnica de sobreposição do palimpsesto. Alguns grandes
artistas, dos mais diversos domínio da criação, são acolhidos no
texto, divisando-se também no entrecho uma transposição de
personalidade, a de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa.
Na página 176 do romance fica evidente que na pele do autor
infiltra-se uma certa possessão histérica de referido heterônimo. É
Mano Melo, e não Scaramouche Araújo, quem diz: “minha alma um
espelho refletindo a alma do poeta e suas multiplicidades, alma
múltipla que quer ser tudo e todos em um”.
Intertextualidades, sobreposição de
planos narrativos, verossimilhança, técnica de fragmento e de
memória que afirmam e confirmam o exercício sereno da longa ficção.
E que honram, é claro, a literatura do Brasil, na era do predomínio
da forma e da imagem como elementos de montagem da narrativa, das
artes visuais e da literatura.
Jornal O Povo,
Fortaleza, 15/10/2005.
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