Dimas Macedo
A ficção de Nilze Costa e Silva
A participação da mulher na literatura cearense tem
se concretizado, basicamente, através da prosa de ficção.
Mesmo em que pesem os esforços de Úrsula Garcia, Serafina Pontes e
Ana Batista Nogueira, no século passado, e de Dolores Furtado, Júlia
Galeno, Angélica Coelho, Ana Frota Mendes e Risette Cabral
Fernandes, neste século, todas poetisas, o certo é que o destaque
literário feminino cearense fica mesmo é com a ficção de Emília
Freitas, Francisca Clotilde, RacheI de Queiroz, Heloneida Studart e
Hilda Gouveia de Oliveira, todas, hoje, com trânsito livre na
literatura nacional.
Isto sem mencionarmos outras tantas talentosas
mulheres que, aqui ficando, alcançaram relativa projeção na vida
literária da província, como é o caso de Lúcia Fernandes Martins,
Margarida Sabóia de Carvalho e Yolanda Gadelha Teófilo, contistas as
duas primeiras e romancista a última.
Com os ventos renovadores dos anos setenta, duas
novas poetisas cearenses investem forte na literatura: Marly
Vasconcelos e Yeda Estergilda. A elas vieram se juntar
posteriormente Regine Limaverde, com destaque em nível regional, e
Rosa Batista de Lima, situada no plano nacional, sagrando-se assim
como a primeira poetisa cearense com maiores aspirações.
Contrapondo-se a estas quatro poetisas, de quem é contemporânea de
geração, Joyce Cavalcanti parece provar que é realmente a ficção e
não a poesia o gênero que na verdade há de marcar a presença da
mulher na literatura cearense. Egressa do congestionado Grupo
Siriará de literatura e hoje uma das dirigentes da União Brasileira
de Escritores, em São Paulo, Joyce é autora de dois interessantes
romances: De Dentro Para Fora (1978) e Costeia de Eva (1980), e de
um volume de aliciantes contos eróticos intitulado Livre & Objeto
(1980)
E se Joyce Cavalcanti é o destaque da novíssima prosa de ficção
cearense, a nível nacional, no plano regional este mesmo destaque
fica com Nilze Costa e Silva. Não pelo fato de a sua criação
literária estar acima da produção dos seus companheiros ou
companheiras de geração, mas pela singularidade de ser a única
escritora cearense da novíssima geração que vem se dedicando, com
obstinação e cautela, à escrita ficcionista.
Aliás, o gênero ficção, na novíssima literatura cearense, possui na
verdade um número reduzidíssimo de cultores, isto se levarmos em
conta, principalmente, o dilatado contingente de candidatos ao
título de poeta que por aqui tem se manifestado. Além de Nilze Costa
e Silva, somente quatro outros ficcionistas nos legou a literatura
cearense nos anos setenta. São eles: Gilmar de Carvalho, Airton
Monte, Nilto Maciel e Carlos Emílio Corrêa Lima, todos reveladores
de inegável aptidão para o manuseio da prosa de ficção.
A estréia de Nilze Costa e Silva, salvo melhor juízo, deu-se através
de Viagem (Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1981). Um
livro metade contos, metade crônicas, cuja primeira impressão nos
parece revelar a pressa da autora em aparecer em público, talvez
ainda estimulada pelo quarto lugar que amealhou no Concurso de
Contos Livreiro Edésio, do ano anterior, com três páginas de uma
ficção quase crônica, quase memória e quase emoção, intitulada
"Julgamento". E diga-se que Nilze já vinha vitoriosa de outro
concurso regional de contos, onde havia sido contemplada com um
segundo lugar, conquistado também com uma curtíssima ficção.
No Fundo do Poço (1982) é o seu segundo livro publicado, com o qual
ganhou o Prêmio Estado do Ceará, de 1981, na categoria ficção. Uma
novela para alguns, para outros um romance. Para mim uma longa
ficção com tendência a depoimento ou reminiscência, como me parece
ser a sua ficção.
Com No Fundo do Poço, Nilze Costa e Silva consolida sua presença
entre os novíssimos ficcionistas cearenses. Eleva, com esse livro, o
seu padrão ficcional, distanciando-se, bastante, do seu livro
anterior. E parece mesmo que nos convence que a longa ficção é a sua
melhor forma de realização.
Prova disso é o que nos vem testemunhar a edição da sua segunda
novela e, por conseguinte, seu terceiro livro publicado, intitulado
O Velho (1983) e aparecido já em fins de 1983, com o qual Nilze
busca questionar ao mesmo tempo que denunciar o desprezo pela
velhice, numa estória que, apesar de decisiva e contundente, não
encobre em suas matrizes formais o deliberado propósito da autora em
insistir na atualização da chamada narrativa linear, sem demérito,
contudo, para a verticalidade da sua construção textual.
Do livro, em primeiro lugar, emerge a denúncia, a densidade
conteudística, a capacidade de improvisação e de multiplicação do
fluxo narrativo, a preocupação da autora com a tarefa de fossilizar
o humano e, acima de tudo, uma natural aptidão da romancista para
trabalhar a longa escritura ficcionista.
O Velho, em verdade, testemunha um lento, porém decisivo processo de
crescimento na ficção de Nilze Costa e Silva. Transmite-nos a
sensação de que a escritora alargou a sua compreensão do fenômeno
literário e redimensionou as suas idéias e a sua visão do mundo e,
especialmente, do humano, o que, aliás, já havia tentado sem grandes
resultados na sua novela No Fundo do Poço que, por ser
deliberadamente linear e de enredo exclusivamente tradicional, não
deixou que esses elementos em seu entretexto aflorassem de maneira
mais espontânea.
Agora, para minha surpresa, Nilze dá-me a ler os originais de um
novo livro de contos, contos que ela intitulou Dilúvio (1987) e que
me pede emita uma opinião que eu não sei como começar. Preferia que
o livro fosse uma longa ficção, pois de há muito estou convencido
que é a longa ficção a grande realização de Nilze Costa e Silva.
Entretanto, não resta dúvida que com este livro Nilze Costa e Silva
nos comunica o prosseguimento de um trabalho em escala ascensional.
Uma coletânea de contos visivelmente melhor construída que a sua
obra de estréia. Porém Dilúvio não é um livro composto totalmente de
contos. Tal como Viagem, muitas crônicas aqui apresentam-se
rotuladas como curta ficção. Mas não o são. Os dois gêneros aqui se
reservam. Existem também depoimentos, reflexões, porém, acima de
todos os textos, e em meio a eles, uma particular maneira de encarar
a ficção sob os mais variados aspectos.
É, contudo, Dilúvio uma proposta literária cuja leitura eu
recomendaria como apreciável momento de criação, como mensagem de
uma escritora de talento que possui a necessária consciência da sua
arte, do seu engajamento e, acima de tudo, de sua militância
cultural, e de cujo processo criativo devemos estar sempre obrigados
a esperar o melhor.
DE LEITURA E CONJUNTURA/1984
DN Cultura, Fortaleza, 29/01/1984.
Leia Nilze Costa e Silva |