É como voltar pra
casa... Nilze Costa e Silva nasceu em Natal, quarta
filha do casal Adauto e Irene, ele, militar. A
primeira casa da família foi na rua Dragão do Mar,
Praia de Iracema. Quando ela estava com 13 anos,
outra mudança, para o Bairro Ellery. De lá, Nilze
saiu para casar. Vieram, então, outros pedaços da
cidade - Barra do Ceará, Parquelândia, Cocó. De
tantos lugares queridos, ficaram lembranças,
retalhos de ruas, brincadeiras de
criança, quintais, o primeiro beijo, banhos de mar,
as intrigantes figuras marginais, a arquitetura, a
escola de farda grená, mais tarde os filhos. Tanta
coisa. Toda uma vida. Desses percursos, a escritora
compôs seu canto de amor, em formato de crônicas,
contos e poesia. O livro Fortaleza Encantada tem
lançamento hoje, às 19 horas, na Livro Técnico do
Dragão do Mar.
As crônicas, diz a
escritora, começaram a ser feitas "há muitos anos...
As pessoas foram me pedindo", recorda. Desde os anos
90, com Cláudio Pereira à frente da Funcet, para um
caderno literário que celebrava o aniversário de
Fortaleza. Umas crônicas também figuraram em outra
revista temática, na gestão de Barros Pinho. Também
foram publicadas no Jornal da Praia, de Zeno Falcão.
Algumas, aqui no O POVO. E Nilze "ia escrevendo".
Agora, estas e outras, inéditas, estão juntas no
livro. Nilze mostra uma foto em preto e branco, um
homem charmoso, bem moreno, de cócoras ao lado dos
cinco filhos, sob o olhar afetuoso de uma muito
bonita moça de cabelos negros: o tenente Adauto,
Irene e os rebentos primeiros (depois viriam mais
sete), numa paisagem que pouco mudou - os casarões
da rua Dragão do Mar (sem o imponente Dragão, é
claro). O livro começa bem aí, nesses primeiros
anos de infância e Fortaleza.
Aonde foi a casa da
família, uma fábrica de gelo. A rua José Avelino é
onde se encontravam os quintais das casas, e as
crianças brincavam, as meninas faziam dramas.
Manjou, pular macaca e jogar bila era na calçada da
Johnson´s, sempre sob os cuidados de dona Irene. Ali
por perto, viviam Maria Cabelão, Zé Tatá e Elvis
Presley, criaturas que serviam à sem-vergonhice dos
homens do lugar. Quando a menina tinha que passar em
frente à casa da Cabelão (que tinha "um cabelo
preto, liso, enorme, dessa altura assim"), dona
Irene dizia: "- Não olha, não olha", e fazia a
menina descer da calçada. Nilze sempre dava um jeito
de brechar. "Quanto mais proibido, mais curiosidade
a gente tem". Ali por perto, também vivia o leso
Irmão, um esmoler, a doida Cotia e a "figura
fantasmagórica do Mister Hull".
Fortaleza se abria aos
poucos para a menina da praia. Praça da Estação, da
Lagoinha, dos Leões. O Passeio Público, a praça do
Ferreira - "ainda peguei o Abrigo Central", recorda.
"Tudo faz parte do meu mundo... Logo que casei, fui
morar na Barra do Ceará, onde se vê o pôr do sol
mais bonito da cidade. Depois, Bairro Ellery,
Parquelândia. E agora estou morando no Parque do
Cocó, com uma janela maravilhosa, a mais linda do
mundo". É pelas trilhas deste pedaço raro da cidade
que ela faz caminhadas, espia as garças brancas, as
árvores centenárias do mangue. Em suas crônicas,
Nilze alia memórias, novas e recentes, e informações
históricas sobre Fortaleza. Mas o que ressalta não
cabe nos livros.
A louca Vassoura, por
exemplo, um dos personagens que marcaram sua
adolescência. Era uma doida, que vivia entre a
Estação e a praça José de Alencar, tacando pedra e
dizendo nomes feios no pessoal que lhe berrava o
apelido detestado. Uma noite de chuva, Nilze
esperava o ônibus e ouviu, vindo sob um pedaço de
plástico, a voz: "Pelo que eu sofri, eu já devia ser
santa". Era a Vassoura, entanguida de frio. Uma
lembrança amena, o Hugão, que morava na rua Tigipió,
a cara tisnada de preto, vestido com suas vestes de
rainha do maracatu Leão Coroado. "Pra mim, um
artista fabuloso, e era meu vizinho! No domingo de
carnaval, ele se arrumava. A gente ficava olhando
até ele dobrar na Capitania dos Portos". Outro
personagem da sua infância foi a parteira, dona
Raimunda, de voz grave, quase de homem. Dona
cegonha...
"Falo de alguns pontos
históricos da cidade", diz. "Mas o monumento
principal é a gente calorosa, bem humorada e poética
de Fortaleza. Já me disseram, mas todo mundo quer
ser poeta em Fortaleza. Respondo: e o que é que tem?
Conheço outras cidades, outros países, mas um povo
com este entusiasmo, com esta alegria de viver... O
cearense sabe driblar as dificuldades, conviver com
os problemas e ser feliz. Não sei se este bom humor
vem do clima, da praia, da nossa história. Mas temos
este jeitinho, esta capacidade de ser flexível, esta
gentileza. Uma cidade que elege um bode como um de
seus heróis! Está lá, empalhado no Museu do Ceará,
isto é mais do que uma estátua!", fala Nilze,
espichando o mote para outra crônica. Ou conto. Ou
novela. Foi com uma que ela estreou em livro.
Abençoada por ninguém menos que Moreira Campos, que
escreveu o prefácio de No fundo do poço - que ganhou
o I Prêmio Estado do Ceará, em 1981.
Nilze faz parte do
grupo Poemas Violados, união de poetas e escritores
que divulgam sua arte em recitais. O grupo, criado
em 2001, costuma apresentar-se no Centro Cultural do
Bom Jardim. Nilze também é fundadora do Nave -
Núcleo de Ação e Valorização da Espécie Humana,
formado em 1998, e integra a Rebra - Rede Brasileira
de Escritoras. Também atuou durante muitos anos nos
movimentos feministas. "Sempre tive um envolvimento
muito grande com as questões sociais, as questões da
mulher", afirma. O livro também traz estas
inquietações da escritora, ao elencar breves
comentários sobre algumas emblemáticas mulheres do
Ceará. A apresentação de Fortaleza Encantada será do
poeta Dimas Macedo, com sons de sax do artista
Temóteo Germano. Sons, palavras e lembranças que
começam e terminam na beira do mar.