Miguel Sanches Neto
A repetição de si mesmo
in Gazeta de Curitiba
21.12.98
Manoel de Barros e Rubem Fonseca escrevem
livros
que são um retorno do mesmo
No início da
carreira, o escritor plagia outros autores; no fim,
a si mesmo - segundo a opinião de Carlos Drummond de Andrade, que
cometeu estes pecados de juventude e de velhice. Já com uma obra
estabelecida, com um contrato de leitura certo, o autor consagrado
passa a revisitar a sua obra, cristalizando técnicas, procedimentos
e idéias. O sentido de livros nascidos desta clicheria reside na
reafirmação de um universo, muitas vezes em sua saturação.
Prisioneiro de sua própria obra, ao criador resta apenas copiá-la,
transformando-se em uma espécie de discípulo de si mesmo,
que perpetua um estilo e um olhar sobre o mundo sem conseguir
deslocá-los. Este período de consagração do mesmo é o início do
processo de canonização, quando o movimento de progressão é
substituído pelo de retorno. Não se quer mais criar novos universos,
mas reafirmar conceitos. Trata-se, portanto, de um momento de
paralisação, de inércia.
Mero pastiche
de si mesmo, o Manoel de Barros de Retrato do artista quando coisa
(Record, 1998) não consegue se distinguir das centenas de copistas
que têm desvalorizado o seu estilo no mercado das artes. O poeta,
mitificado por uma certa corrente da literatura brasileira, hoje é
um dependente de sua própria imagem. Do poeta de outras obras
restaram apenas a casca, o bagaço, os equívocos, não existindo um
único poema interessante no livro, que não passa de um amontado de
frases retiradas de outros momentos de sua produção, numa espécie de
antologia do lugar comum de sua poética. Isso revela que Manoel de
Barros está deslumbrado com Manoel de Barros, não conseguindo romper
com uma imagem que o seu público fez dele.
Devido a esta
mecanização dos procedimentos poéticos, reduzidos ao que existe de
mais superficial, o que é apresentado como uma poesia irracional,
como desregramento dos sentidos, revela-se uma atitude cerebral,
pensada, da arte poética. Através do império solene do previsível,
Manoel de Barros retira o elemento inconsciente, lúdico e adoecedor
de seus poemas, ficando com distorções padronizadas e repetidas de
meia dúzia de verdades
questionáveis. Como ele se deixa conduzir por um modelo, a
referência ao irracionalismo soa como mentira. Não existe nada mais
racional do que esta artimanha de usar programaticamente a
deformação lingüística. Não há, portanto, uma adequação entre o
conteúdo dos poemas, um conteúdo tatibitabe, e a realização poética.
Numa das peças do livro, o poeta faz pequenas variações de uma
construção, grafadas em itálico: Uma rã me pedra; Um passarinho me
árvore; Os jardins se borboletam; Folhas secas me outonam. Dá para
perceber a monotonia de uma poética que não consegue fugir de
construções frasais pretensamente inovadoras, mas que, pela
reincidência, se revelam esquemáticas. Como se não bastasse este
comportamento primário do poeta, ele ainda acrescenta a cada um
destes versos parênteses explicativos, que desarmam a construção
que, por si só, já é extremamente simples, mais ainda, simplória:
"Um passarinho me árvore. (O passarinho me transgrediu para árvore.
Deixou-me aos ventos e às chuvas. Ele me bosteia de dia e me
desperta nas manhãs.)" [p.13].
Esta poesia
explicativa mostra que o irracionalismo do poeta é
fruto de uma postura racional, sendo, na verdade, um truque de
construção imposto por um estilo do qual ele não consegue se livrar.
Não há uma entrega poética ao diferente, ao distante, ao outro, o
poeta só navega em torno de si, na segurança das águas conhecidas e
rasas.
Tradicionalmente, Manoel de Barros se impôs por propor um texto que
assumia a contribuição milionária de todos os erros. O seu verbo
deformante entrou na poesia brasileira, marcada pelo cerebralismo
cabralino e vanguardeiro, como uma voz dissonante. Era a apoteose
dos seres deformados, das idéias tronchas e das filosofias tortas.
Foi por romper com a visão asséptica, formalmente equilibrada, que
ele conquistou uma posição central na lírica brasileira. E esse seu
papel histórico não pode ser ignorado. Só que tudo isso, que tinha
uma grande significação em dado momento de nossa evolução cultural,
acabou esvaziado de sentido. O poeta não percebeu que sua poesia,
nos últimos dez anos, foi perdendo a cada
livro a atualidade. O advento do erro, da deformação, que lhe deu
notoriedade, acabou transformado num curinga poético, que lhe brinda
com poemas, mas lhe nega a poesia. Em um de seus versos, ele
confessa que usa deformante para voz (p. 23), ou seja, que a
deformação é produzida por um aparelho, por algo externo, sendo
apenas uma postura diante do real, e não uma experiência vivida.
Assim, os erros que pervertem a linguagem são intelectualmente
criados ou frutos de um hábito poético cristalizado.
Tudo em Retrato
do artista quando coisa tem cara conhecida.
São os mesmos elementos de outros livros: as lagartixas, os
melões-de-são-caetano, o homem lata, os achados do chão, a poesia
sobre poesia (até quando, meu Deus!), a transformação de
substantivos em verbos... Como se não bastassem as repetições destes
tópicos, temos ainda a questão do ritmo poético. Não há a menor
variação do começo ao fim do livro. Os poemas são pequenas frases de
efeito - aforismos flácidos, agregados em torno de um núcleo
nebuloso. Esta desarticulação cansa em sua poesia, principalmente
porque ela se tornou a única forma de andamento dos poemas, o que
produz uma leitura aos trancos. Uma frase, ponto final. Outra frase,
novo ponto final - do começo ao fim do livro.
Livro que,
diga-se a verdade, é de uma monotonia insuportável. De sua poesia,
que sempre me agradou (ver, de minha autoria, Achados do chão,
Editora UEPG, 1997) restaram apenas os cacoetes. Através desta
coletânea, fica claro que o poeta perdeu a irracionalidade que o
distinguia. Como tudo é previsível e mecânico, a insensatez não
passa de uma técnica. O próprio poeta contraria um dos dez
mandamentos poéticos que reuniu na última página do livro.
Segundo este mandamento, "não é por fazimentos cerebrais que se
chega ao milagre estético senão por um instinto lingüístico" (p.81).
Ele não só perdeu este instinto como abraçou cegamente os fazimentos
cerebrais.
Rubem Fonseca,
com A confraria dos espadas (Cia. das Letras, 1998) também pode ser
definido como um plagiário de si mesmo. Não existe novidade nestes
seus contos que aparecem apenas para frisar um estilo e uma técnica
narrativa já consagrados. Estamos também diante de uma obra que
antologia uma forma de narrar. Ou seja, ela não se sustenta por si
só, mas por referendar toda uma trajetória literária.
Rubem Fonseca
também não consegue se distanciar do que foi Rubem Fonseca. Este
aprisionamento faz com que os seus contos sejam bons, embora não
tragam nenhuma grande diferença daquilo que os seus próprios
plagiadores fazem. Rubem Fonseca, inadvertidamente, está escrevendo
à maneira de Rubem Fonseca, para desprestígio deste.
As cenas de
sexo, num conto filosófico como "À maneira de
Godard", não conseguem atingir a força do erotismo, figurando como
uma mera discussão, romanticamente afetada, de problemas de
relacionamento. Já "Livre-arbítrio" e "O vendedor de seguros" são
contos absolutamente previsíveis, em que o assassino se revela no
início da história, tirando qualquer possibilidade de surpresa.
"AA", que trata de um campeonato de lançamento de anões (???), é um
relato enigmático e evasivo - frustrante, portanto. Existe surpresa,
embora relativa, em "Anjos das Marquises", conto que mostra um país
onde não há espaço para os puros de coração. Excelente mesmo só "A
festa", um estudo da insensibilidade e do relacionamento superficial
da classe elevada.
No conto que dá
título ao livro aparece com mais saliência a
filosofia erótico/hedonista do autor e a tendência dissertativa,
presente em todas as demais histórias. Os personagens não vivem
apenas, eles pensam e refletem sobre a existência. Numa sociedade
secreta (A confraria dos espadas), um grupo de homens desenvolve o
orgasmo múltiplo sem ejaculação, buscando uma forma mais requintada
de sexo, que os distanciasse dos animais, meros procriadores. Embora
esta técnica se transforme em uma prisão, ela revela que, para Rubem
Fonseca, adiar o orgasmo rápido é evitar o sem sentido da vida,
através da tentativa de interromper o nascimento e a morte. Neste
seu universo corrompido, aos seres resta apenas o encontro entre
dois corpos, prolongado ao máximo. O conto/poema "Um dia na vida de
dois pactários", extensão do relato anterior, é uma defesa do
encontro sexual como "um pacto de incêndio, contra esse
espaço de rotina cinzenta entre o nascimento e a morte que chamam de
vida" (p.132). Assim, o personagem que busca um sentido para a vida
na ação social e que encontra a morte impiedosa ("Anjos da
Marquise") é um alerta: só devemos buscar o sexo, sendo as demais
possibilidades de ação meras ilusões.
Apesar da
estandardização de um estilo, A confraria dos espadas ainda dá bons
momentos de leitura, qualidade que não é encontrada no último livro
de Manoel de Barros.
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