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A peleja literária ao som das violas virtuais:
o livro de memórias de Miguel Sanches Neto.

 

Mil poderão cair ao teu lado e dez mil à tua direita; mas 
tu não serás atingido. (Salmo 90)

Cobras & lagartos... 

Nem tanto, nem tanto... 

José Castello

André Seffrin
Beatriz Horta Aleilton Fonseca
Entrevista de Sanches a Márcio Renato dos Santos, com pergunta capciosa do Jornal de Poesia, em post scriptum
A resposta de Miguel Sanches
A resenha de Miguel ao livro de Castello
Soares Feitosa
Manoel Ricardo de Lima
Wilson Martins
Ronaldo Cagiano

O que os leitores estão dizendo

Veja uma notícia do livro de Sanches



 









 

José Castello
jjc@netpar.com.br

Chove sobre minha infância
        A epígrafe, de Helder Macedo, faz uma promessa que não se cumpre: “Este livro não é sobre mim, mas a partir de mim”. Ainda assim, ela aponta a encruzilhada em que se desenrola esse Chove sobre minha infância, primeiro romance do crítico literário paranaense Miguel Sanches Neto. Se for um romance - mas não é um romance -, o livro de Sanches não é bom. Talvez seja melhor lê-lo, ainda que contra a vontade do autor, como o livro de memórias que parece ser.

Se for um livro de memórias, ainda assim, Chove sobre minha infância não chega a ser um bom livro, embora tenha momentos delicados, alternando com outros, muitos outros, que rondam o banal. Clichês politicamente corretos, lições de vida que nos fazem corar, segredos de polichinelo. Mas, mesmo não sendo um bom livro de memórias, o que se realça, se o lemos assim, é outra coisa: o destemor de um jovem crítico que agora decide, ele também, se expor ao julgamento dos que julgou; e, em vez de se amparar no suposto saber do crítico, em seu porte de árbitro, Sanches surpreende, oferecendo a seus leitores aquilo que tem de mais frágil, de mais pessoal. Oferecendo a outra face.

O percurso pessoal de Miguel Sanches Neto, a julgar pelas informações que aparecem em seu livro (se o tomamos como o livro de memórias que parece ser), é cheio de provações. Do pai, restou-lhe o retrato de casamento, o mesmo que está no túmulo. Criado por um padrasto severo, dividido entre a obrigação de seguir o papel que a família lhe destina (de trabalhador braçal) e se entregar aos gozos do espírito (a literatura), Sanches atravessou pequenos infernos até se tornar o escritor que é.

Fantasias sexuais, enxadas, sacos de cereais, bichos, surras e, sobretudo, os dois pais, um vivo, outro morto, costuram seu relato. “Pra que nasça um pai preciso matar o outro?”, ele se pergunta. Para concluir: “Matar pessoas mortas é sempre muito mais demorado”. Conclusão que o romance só vem reforçar.

O problema do livro, se o lemos como as memórias que parecem ser, é que Sanches retrata, sim, os horrores da vida comum, mas sem conseguir tocar o extraordinário que sob ela se esconde. Relata sua vida de apanhador no campo de vagens, a suspeita da mãe de que talvez tenha uma lesão na cabeça e precise tomar Gardenal, remédio que poderia curar a mania de poesia. Vai ao bordel, trabalha como vendedor de laranjas, matricula-se na escola agrícola, apaixona-se pela secretária, compra um exemplar de O Capital. Pesa 57 ou 58 quilos, mas deve carregar sacos de mais de 60.  E quando foge, refugia-se no cemitério, ao lado do túmulo do pai (pai idealizado que, ao final, graças à intervenção de uma irmã, descobrirá que foi ladrão e adúltero). “Meu pai viveu 32 anos, eu já ultrapassei esta idade. Estou no limite”, diz, justificando o livro que escreveu. “Caso venha a morrer jovem como meu pai, não transferirei este legado de silêncio a ninguém”. Ato, sem dúvida, de grande dignidade, ele não basta, contudo, para salvar o romance – que seria, talvez, melhor sucedido se decidisse se assumir como aquilo que de fato é: uma catarse. Acontece que a literatura, mesmo quando tramada sobre dolorosas lembranças pessoais, não é catarse. Basta pensar num autor como Franz Kafka, cuja penosa vida pessoal está entranhada em cada linha que escreveu; suas grandes narrativas, apesar disso, são indiferentes aos apelos da memória.

Há no livro de Sanches, ainda, uma entrega, uma doação pessoal que as ressalvas ao romance podem ser tomadas, quase, como ressalvas ao autor – e não é esse o caso.

Impasse que conduz de volta à pergunta: por que, para fazer sua estréia na ficção, um crítico literário foi se esconder sob a memória? É difícil crer que o crítico sofisticado tenha cedido a tal confusão entre literatura e experiência. Talvez ainda, vale cogitar, esse retorno ao passado faça parte de uma estratégia meio suicida de Sanches. Ao fim do mergulho dramático, o que podemos ver, se agüentamos ver, é o sangue da crítica que, enfim, jorra (da crítica que, apesar de exceções como o próprio Sanches, anda tão gelada, tão opaca). Mas não será atribuir razões fantasiosas ao que talvez não passe de um caderno de notas?

Talvez haja ainda uma maneira invertida de ler o livro de Sanches: fingindo que são falsas as informações que são verdadeiras e, nesse caso, tomando Miguel Sanches Neto como uma espécie de heterônimo de Miguel Sanches Neto. Nesse caso, ainda, toda a sinceridade do autor seria apenas um jogo cruel a que ele submete seu leitor – e a idéia das memórias perde o sentido. Seria preciso, contudo, conhecer pessoalmente Sanches e sua vida para, confrontando a vida do autor com o relato do livro, verificar até que ponto essa hipótese pode funcionar. Também não é o caso – até porque, para ler um livro, não deve ser necessário ler, simultaneamente, seu autor. Um livro se basta.

Talvez, podemos ainda imaginar, Sanches tenha se atemorizado no momento de inverter as máscaras e se ver como ficcionista. Tentou safar-se disso recuando no tempo, abrigando-se na memória remota, ali onde a imaginação, de tão exuberante, parece ser coletiva, e não mais individual. Assim talvez, dividindo o que é seu com uma espécie de lastro impessoal, pudesse escapar à fúria de seus pares. Mas ainda essa é só uma possibilidade. Feita a catarse, que deve ter lhe trazido grandes benefícios pessoais, espera-se de Sanches Neto, agora, o romance que prometeu. Quanto ao crítico, não se pode negar, ele sai engrandecido de Chove sobre minha infância, porque nos mostra que, sob a capa engomada de juiz, também existe um sujeito frágil.

Para ainda ficar com Kafka: em um de seus relatos inacabados, Esboço de uma Autobiografia, ele nos diz: “Confissões, com efeito, só são possíveis antes ou depois do ato. O ato não permite a existência de mais nada para além de si”. 

Melhor aguardar que Sanches, enfim, se esqueça do que viveu e, liberto, se ponha a escrever.
 

(in Revista Bravo)
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Miguel Sanches Neto
<msanches@pr.gov.br>
ENTREVISTA DE MIGUEL SANCHES NETO 
A MÁRCIO RENATO DOS SANTOS, E,
NO FINAL, UMA PERGUNTA DE SOARES FEITOSA
 

1. Vindo da crítica e da poesia, o que significou para você o domínio de um código de expressão tão diferente como o romance?

Nunca tive bem definida a fronteira entre estas formas literárias, e isto se reflete claramente em Chove sobre minha infância, que vai da crônica, em alguns momentos, ao poético e ao conto, para, em conjunto, formar um romance em blocos. É um livro escrito sem o desejo de pertencer a uma categoria específica, com suas leis de construção rígidas. Ao contrário, é obra composta por partes que se somam, mas que também guardam significação isolada, numa tentativa de ser, estruturalmente, o menos repetitivo possível. Não houve também uma intenção de trabalhar sobre um modelo, eu antes escrevi este livro como se tivesse vivendo um sonho, num transe narrativo que lhe deu uma configuração um tanto estranha, que pode fisgar o leitor e levá-lo até o fim numa viagem rápida, dada a intensidade do que se narra.

2. A impressão que se tem, realmente, é a de um sonho, pois você não se prende muito às minúcias realistas, buscando do real os seus signos.

Esta foi a intenção desde o início, porque me agradava encenar toda uma vida em poucas páginas, investindo muito mais na verticalidade do relato do que em sua horizontalidade, tanto de enredo quanto de língua. E para conseguir este aprofundamento me vali de situações-símbolos, cujo significado cria uma abertura metafórica. Quando falo, por exemplo, das frutas ácidas, estas entram na história muito mais como metáfora da acidez crítica do narrador do que como partícipe do mundo das coisas. É assim também com o aprendizado dolorido das quatro operações matemáticas, representação da entrada em nossa vida de uma nova família, que vai se multiplicando. Nunca tive dúvida quanto à preponderância do simbólico sobre o meramente descritivo, o que aproxima Chove sobre minha infância da estrutura poética – o epílogo, por exemplo, nasceu bem antes do livro e no formato de um longo poema, mas acabou entrando como conclusão do romance. Não obstante esta presença do poético, não há fechamento de linguagem, sendo o livro de fácil compreensão, fundado principalmente na gramática da comoção e na leveza.

3. A literatura moderna tem medo de comover?

Não só tem medo de comover, como de ser comovida. A comoção, que sempre esteve presente nas grandes obras (penso, por exemplo, em Germinal, de Zola), ficou de quarentena nas últimas décadas, quando imperou um olhar irônico e desconfiado sobre tudo. A morte do eu na literatura deu lugar ao culto do simulacro, de tal forma que se tornou constrangedora a identificação com personagens que, previamente, se assumem como falsários. Na contramão desta corrente, ousei escrever um romance que busca, em cada uma de suas páginas, a comoção, tentando levar o leitor a se identificar com o narrador, que no caso é a mesma entidade do autor. Sou eu que narro minha história, uma história sofrida, cheia de verdades cotidianas, apresentada por um personagem que tem os olhos marejados – daí, inclusive, o sentido do título do romance.

4. Você não acha perigosa a proximidade, em Chove sobre minha infância, entre a ficção e a autobiografia? 

Embora nascida de vivências reais, esta narrativa nem de longe se confunde com o estilo das memórias ou da autobiografia. Ao narrar em primeira pessoa a sua vida, o autor se coloca numa posição secundária: é sua história que se conta por ele, cabendo-lhe o papel de intermediário. Logicamente, quanto melhor for o autor, melhor serão suas memórias, principalmente pelo uso estilístico da língua. Outra característica fundamental para o gênero memória é o primado da verdade. O ficcionista, mesmo quando se vale de experiências vividas, não busca a verdade factual, mas a psicológica, seguindo não o fio linear da vida, mas fundando estruturas sobre o vivido. Portanto, meu romance é uma construção semântica sobre fatos vividos por mim. Não contei tudo o que se passou em minha formação, mas apenas as situações-chave. Eu exerci sobre minha história uma força de linguagem e de estrutura, é por isso que ela pertence ao mundo da ficção e não ao da realidade relembrada.

5. Mas o fato de você usar os nomes reais das pessoas e de incluir um caderno fotográfico não significa justamente o contrário?

As fotos fazem parte da própria semântica do livro, vindo inclusive com frases que não são meramente identificatórias, mas que se somam ao narrado. O caderno de fotos foi pensado como um capítulo do romance e não como ilustração. Já o uso de muitos nomes reais é também um recurso narrativo que busca desvelar o personagem em sua integralidade. Se o narrador não tivesse o meu nome, ele seria mais pobre do ponto de vista do relato. O peso do nome que ele sente ficaria diminuído no caso de alguma alteração. Eu tentei mudar os nomes, buscando equivalentes, mas a perda de carga simbólica foi tão grande que me entreguei à sua forma verdadeira, embora todas as pessoas sejam tratadas como personagens e não como gente real. O padrasto que aparece no romance não é a cópia fiel do meu próprio padrasto, mas uma invenção do narrador que se sentia oprimido por ele.

6. Você não corre com isso o risco de ser autocomplacente?

Chove sobre minha infância é uma narrativa que vai se construindo pela memória do narrador, que avalia tudo aquilo pelo qual passa por uma ótica pessoal, centrada em seus sofrimentos. Estamos diante de um menino de extrema sensibilidade para o confronto com o mundo e com a morte, que luta desesperadamente contra a orfandade, não só a real mas principalmente contra a orfandade cultural – ele vem de uma família de analfabetos, dedicada à agricultura, e se sente destinado para o mundo dos livros. Esta ausência do pai, morto na primeira infância, representa a própria ausência de uma herança cultural. O menino triste vai crescendo como observador de uma força negativa que o impede de ser ele mesmo. Esta força se concentrou na figura do padrasto, que nega seu projeto. O padrasto, portanto, é pintado com tintas fortes até o momento em que há, depois da consolidação da vocação do menino, agora um adulto, uma revelação que o concilia com o mundo do padrasto. O livro não é complacente com o narrador, porque ele acaba tendo destruído o relato em que se vê como vítima.

7. A família está muito presente neste livro. Ela é ao mesmo tempo odiada e amada. Como você sente este impasse?

É dele que nasce o drama e a grandeza de minha história. Quer queiramos ou não, toda relação familiar se dá nesta imprecisa fronteira do amor e do ódio. Comigo, isto foi intensificado, porque à família biológica se juntou outra, a da padrasto, que trouxe valores muitos conflitantes com os nossos. Amar odiando e odiar amando a família foi e continua sendo um grande material romanesco, porque nos livra de visões maniqueístas e planificadoras. 

8. O que significa para a sua família este romance?

Como se trata de uma família praticamente analfabeta, de pouca instrução e muita solidão de linguagem, acredito que meu romance é um acerto de contas com este doloroso passado sem discurso. Uma família destinada ao silêncio e à lavoura súbito encontra em um de seus descendentes o porta-voz desta solidão que anseia ser linguagem. Embora a primeira redação deste livro tenha sido muito rápida, tomando-me pouco mais de um mês, eu costumo dizer que ele demorou cem anos para ser escrito. Desde minha bisavó, depois minha avó e minha mãe, todas com grande sensibilidade literária, esta história veio se escrevendo no código imperfeito dos sentimentos repartidos. Como fui eu o primeiro a adquirir instrumentos e instrução literária adequada, a história se concretizou em minhas mãos, mas veio com uma grande potência atávica. 

9. O livro trata de uma trajetória brasileira de grande força, em que o narrador se constrói pela linguagem, amadurecendo nela. Foi difícil acompanhar a linguagem do narrador?

Da criança ingênua que comete alguns erros de visão e de língua ao adulto que olha seu passado com olhos úmidos vai realmente uma distância de linguagem. Este amadurece ao poucos de forma a manter verossimilhança com o imaginário das várias fases do narrador. Por isso insisto que não se trata apenas de uma história contada, mas de uma narrativa construída com a busca minuciosa de uma familiaridade com a língua. Assim, quando o menino se sente traído por sua própria inteligência, há dois capítulos em que a escrita atinge uma situação de violência, representado por um ritmo alcoolizado, que no fundo é o rito de passagem para a vida adulta.

10. Como você, que é crítico, vê este livro no atual momento literário brasileiro?

Primeiro, trata-se de um livro à parte, por sua construção e por sua intenção. Eu quis escrever um romance de formação diferente, contrariando os simulacros de um pós-modernismo desgastado pelo uso repetitivo de fórmulas narrativas, recuperando assim um personagem que funciona como máquina de comover. É um livro para ser amado ou odiado. Mesmo se valendo muito delas, Chove sobre minha infância não prioriza a linguagem ou a estrutura como fim último do relato, mas como elementos de intensificação de uma história triste e bonita, vivida por gente comum, que um dia se fez autor, sujeito de sua própria existência. Ou seja, é um livro que tem um valor para além do literário por concretizar o sonho de três gerações que viveram à sombra do mundo letrado.

11. Este romance terá continuidade?

Não sei se é, propriamente, uma continuidade, mas já estou trabalhando numa nova obra que vai ser um estudo sobre as mulheres em minha família. Considero-me um herdeiro da sensibilidade destas mulheres que com fibra se insurgiram, desde o final do século passado, contra a representação do poder econômico que se encontrava nos homens. Pretendo trabalhar os erros e acertos de decisões extremamente corajosas de várias antepassadas, que construíram a história de minha família vencendo e sofrendo preconceitos. 

12. É ainda a força centrípeta da família sobre a sua obra?

Sem dúvida. Eu recebi tantas informações sobre o passado de meus familiares que me sinto na obrigação de dar uma forma narrativa para tudo isso. 


PS, via email: 

Jornal de Poesia
Professor Miguel Sanches, o que o senhor tem a comentar sobre a resenha do escritor José Castelllo sobre o seu livro? Sobretudo depois que o senhor comentou o Inventário de sombras?

Miguel Sanches
Prezado Soares, segue meu artigo sobre um dos livros do Castello. Talvez seja material interessante para o teu dossiê. 

                                                   Abraço do
                                                                  Miguel

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Miguel Sanches Neto
<msanches@pr.gov.br>
MITOLOGIAS

Inventário de sombras, 
de José Castello, 
pode ser lido como um volume de contos

 

Habitante da região limítrofe entre o jornalismo cultural e a literatura, o que o tornou um dos mais importantes jornalistas do país, José Castello cria um novo endereço em que podemos visitá-lo: Inventário de sombras (Record, 1999), livro que deve ser percorrido como uma galeria de mitos literários que alimentam seu imaginário. Não procuremos o retrato realista, mas a criação de uma imagem particular, de uma peça narrativa, em que o que conta é a capacidade que Castello tem de construir uma miniatura do universo do escritor retratado e não a fidelidade a este universo. 

Não é o jornalista que fala nestes textos, mas o fabulador, que transforma peculariedades da vida de grandes escritores em enredos fechados em torno de uma idéia que antes está em quem os admira.

Reunidos pelo mote das sombras (ou da maldição, como o autor imaginou no início), encontramos escritores os mais díspares, e até alguns não-escritores. Entre retratados como Dalton Trevisan e José Saramago há uma distância maior do que a que separa Curitiba da ilha de Lanzarote. Não é portanto uma associação de nomes por um determinado comportamento estilístico e nem por um critério temático. Daí o autor incluir João Antônio e José Cardoso Pires, Clarice Lispector e Adolfo Bioy Casares, claros e obscuros. 

O termo sombras, que aparece no título, se refere antes a uma opção de viver à margem do centro do campo de poder, seja ele político ou literário, do que propriamente a qualquer espécie de trevas mefistofélicas. Castello cultua o escritor que não se deixa cooptar pelos valores imperantes e faz de sua obra uma forma de desobediência. Todos, mesmo que um deles tenha recebido o prêmio Nobel de literatura, são seres deslocados, cuja obra se confronta com o estabelecido. Este deslocamento está cifrado na própria trajetória dos retratados. Em Saramago, a fuga para uma das Ilhas Canárias, totalmente marcada pelo deserto de um solo vulcânico. Em Dalton Trevisan é a província curitibana, terra de colibris, corruíras nanicas e araras bêbadas. Em Manoel de Barros, o isolamento lingüístico e a fuga da racionalidade através da vivência plena do universo pantaneiro. Em Clarice Lispector, a escrita totalmente ligada aos sentidos, que tenderia para um quê de bruxaria. Em Raduan Nassar, o isolamento no silêncio da fazenda do interior paulista e a renúncia à escrita. Em Hilda Hilst, a busca da solidão da Casa do Sol, no meio agrícola, para viver mais próxima de seus fantasmas. Para João Antônio o que conta é o submundo carioca, no qual ele se confraterniza com todas as espécies de merdunchos. Já Caio Fernando Abreu entroniza a recusa de pertencer a uma sociedade falocrática, sendo a sua maldição biográfica, a AIDS, uma forma de realizar, apesar de todo o sofrimento, o seu sonho de ser um jardineiro - o que o fez personagem dos contos de fadas de Oscar Wilde. É na loucura e na morte que estão ancoradas as figuras de Ana Cristina Cesar e de Bispo do Rosário. Bioy Casares aparece como habitante de um mundo imaginário que, com o passar dos anos, vai se transformando em algo cada vez mais presente. Allain Robbe-Grillet, deixando de lado a busca da fama literária, brinca de Drácula num castelo reformado por ele e pela mulher. O Cardoso Pires que interessa a Castello é o que sofreu a experiência da alteridade na ante-sala da morte, depois de um acidente. Nelson Rodrigues cresce como o anjo vingador da intelectualidade terceiro-mundista, esbaldando-se em andar na linha divisória entre a literatura e a paraliteratura. Mas de todos estes heróis, o mais radical é o jornalista João Rath, o escritor que poderia ter sido e não foi. Enquanto Raduan Nassar abandona as letras depois de alguns poucos livros geniais, Rath as abandona antes mesmo de escrever, preferindo ser o personagem de um livro nunca escrito. Todos, no entanto, são, por diversas razões, habitantes da margem. Dentre os inúmeros escritores que Castello entrevistou, ele escolheu estes por terem eles assumidos uma condição de personagem, o personagem do Escritor com maiúscula, reverenciados pelo repórter respeitoso.

Como quem escreve os retratos não é um crítico e nem um biógrafo, mas um jornalista que, na condição de dublê de escritor, busca afirmar a sua maneira de se relacionar com um universo literário, não devemos buscar nos textos as chaves de acesso às obras dos retratados e nem uma leitura definitiva destes, mas o próprio impulso narrativo de José Castello, também ele deslocado geograficamente para a nossa Curitiba. Ele quer se experimentar na vida alheia, tirando dela lascas para a confecção de uma persona literária. Este não é um livro cujo significado está majoritariamente na informação sobre os autores em discussão. Ou seja, não tem um caráter informativo (o que não impede que aprendamos, e muito, com ele) e sim psicanalítico, pois revela o desejo, o ardente desejo, de alguém que quer assumir sua condição de escritor de ficção, penetrando assim, de forma definitiva, no universo literário, do qual ele tem participado como entrevistador.

Ao escrever sobre Clarice, Dalton Trevisan, Raduan Nassar etc., Castello está escrevendo sobre si mesmo, porque o recorte feito na vida destes autores é algo eivado da personalidade de um emissor que se espelha no outro. Esta presença da subjetividade na montagem dos mitos tanto pode ser vista como algo equivocado (quando tomamos por base a condição informativa do livro) quanto como algo altamente positivo (quando entendemos a intenção do jornalista e a sua busca de uma apropriação narrativa de biografias).

Castello, em Inventário das sombras, está construindo a sua mitologia particular através da ultrapassagem do jornalismo, se aproximando assim de um conceito borgeano de ficção. Os retratos devem ser lidos como conjunto de contos, artimanha que possibilita a Castello transformar o texto profissional do jornalista, este ser que se anula para dar presença ao outro, em uma obra criativa, centrada em quem a escreve. Borges disse que só conseguiu escrever contos quando fingiu, para si mesmo, que estava escrevendo ensaios. 

Parece que Castello está se valendo do mesmo subterfúgio, finge escrever sobre escritores, quando, na verdade, está é escrevendo sobre si mesmo, sobre sua obra secreta, que não aceita mais ficar na sombra.
 

(in Gazeta do Povo, 18 de outubro de 1999)
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CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA
Miguel Sanches Neto
256 páginas
Formato: 14 x 21 cm
Preço: R$ 26,00
Lançamento: setembro de 2000
ISBN: 85-01-05871-8
Record

CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA é uma narrativa construída sobre a memória do narrador, numa avaliação pessoal de um Brasil esquecido num passado de analfabetismo. Utilizando uma  extremamente bem construída linguagem simbólica, Miguel Sanches Neto vai da crônica, em alguns momentos, ao poético e ao conto, para formar um romance em blocos. 

Embora nascida de vivências reais, a narrativa não se confunde com o estilo das memórias ou da autobiografia. Mesmo quando se vale de experiências reais, o autor não busca a verdade factual, mas a psicológica, fundando estruturas sobre o vivido ao invés de seguir seu fio linear. 
Inicialmente apresentando uma visão ingênua, revoltada e otimista, o narrador vai amadurecendo ao contar sua história, passando do órfão que não compreende bem o seu mundo a um adulto que domina seus símbolos e suas dolorosas verdades. Miguel Sanches Neto constrói uma saga dramática, em que as antíteses sociais têm que conviver entre si. O personagem principal deve receber a herança negada do mundo rural e do analfabetismo para encontrar-se consigo e com sua história – uma necessidade que muitas vezes acaba sendo camuflada num país envergonhado de si mesmo. O leitor vai encontrar neste romance um Brasil que se olha, se mostra e que comove, identificando-se com a história do menino perdido em meio a poderosas forças antagônicas. 

Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, norte do Paraná, em 1965, e passou a infância em Peabiru. Crítico literário (com mais de 400 artigos escritos) e atual diretor-presidente da Imprensa Oficial do Paraná, trabalhou como técnico agrícola, agricultor e professor universitário. Concluiu doutorado em literatura pela Unicamp aos 32 anos. Este é seu primeiro romance.
 

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Aleilton Fonseca
aleilton@itp.com.br
PAÍS OBSCURO, POESIA CRISTALINA


Venho de um país obscuro,
de Miguel Sanches Neto.
Curitiba: Travessa dos Editores, 2000. 
82 páginas.(Tel. 021-41-262-6894)


 O paranaense Miguel Sanches Neto é um dos melhores críticos da atualidade, posição que conquistou com o seu trabalho na Gazeta do Povo, de Curitiba, e na revista Bravo, de São Paulo. Trata-se de um crítico exigente que opina sobre escritores novos e veteranos com acuidade, equilíbrio e excelente senso analítico. Atualmente, é editor da Imprensa Oficial do Paraná, pela qual vem publicando obras de inegável qualidade literária.

 Além de crítico e ensaísta, autor de um livro de ensaios sobre escritores gaúchos, intitulado Entre dois tempos (1999), Miguel Sanches Neto é também poeta. No seu livro mais recente, Venho de um país obscuro, ele funde memória e lirismo em poemas consistentes que tocam a sensibilidade e levam à reflexão sobre a vida e o país. Trata-se de uma poesia que não se contenta com meros fraseados e exercícios formais. Sua matéria é a vida real, a experiência da vida e da aprendizagem, como processo de formação, autoconhecimento e superação dos limites. 

 Em geral, o autor traduz em versos livres, com boas passagens de prosa poética, aspectos marcante de sua trajetória de vida, tendo como pano de fundo a realidade de uma família humilde vivendo em meio às agruras da difícil sobrevivência, num país dominado pelo autoritarismo. O traço biográfico é o húmus de sua poesia, mas sua raiz é o lirismo crítico e doído dos que venceram, mas não escondem suas lutas,  suas dores e suas cicatrizes.

 Nascido em 1965, Miguel cresceu sob os limites e as mordaças do regime militar, do qual a lembrança da escola rígida e repressora ficou como emblema. Sua poesia testemunha o peso do momento sobre a formação e a memória de toda uma geração. Os seus poemas transbordam do campo estritamente literário e se constituem também como depoimento de uma geração que, tendo crescido sob a ditadura, nem por isso deixou de adquirir uma consciência crítica acerca do país que recebeu, com suas tristes heranças. O poeta declara: “Venho de um país obscuro,/ de uma infância repleta de muros” e representa, através de imagens verossímeis, sóbrias, realistas, a verdade de suas vivências, a clareza de seu sentimento diante das lembranças, num discurso ora amargo, ora indignado, que ele exprime “mordendo o próprio dente, / com raiva e ruidosamente”.

 O autor paranaense traduz em poesia uma experiência de vida semelhante a de tantos brasileiros como ele. Vidas que, à margem das considerações sociológicas e históricas em geral, transitam de sua condição empírica desconsiderada para uma representação que a resgata da obscuridade. O locus experiencial do sujeito lírico é um país obscuro, ausente dos compêndios, mas de uma gritante realidade à flor da vida. Um país que grita no presente, com suas tensões sociais, e que não se pode calar. Por isso, o poeta diz:  “O que fui em menino/ é hoje um baú lacrado / que, alheio à minha história, / tenho como inquilino.// Em vão tentam arrombá-lo / as raízes da memória”. 

 Num momento em que muito da poesia publicada não passa de exercícios imagéticos e formais desconectados das realidades vividas individual ou coletivamente, Miguel Sanches Neto revigora a poética das vivências que Drummond consagrou em Boitempo I e Boitempo II. Uma poesia quase depoimento, que tem a marca da experiência, das coisas e situações vividas. E Miguel faz isso muito bem, sem cair em confessionalismos ingênuos ou saudades fingidas. Seu forte é a sobriedade das imagens, que fluem com ritmo e cadência, o que dá qualidade lírica às passagens de prosa. Sua obra é uma contribuição relevante, pela linguagem simples e vigorosa e pela temática pessoal que ressoa no coletivo. Este poeta faz parte de uma geração que vem conquistando, com justiça, lugar e voz no panorama literário contemporâneo.

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Aleiton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP) e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana - Bahia, e co-editor da revista Iararana

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Email do escritor Miguel Sanches Neto












Beatriz Horta
Crítico literário escreve memórias sobre sua dura infância no Paraná
[O Globo, 16.9.2000]
Chove sobre minha infância, 
de Miguel Sanches Neto. 
Editora Record, 
256 páginas. R$ 26 

O aviso está em São Mateus, primeiro dos quatro evangelistas: "São muitos os chamados, mas poucos os escolhidos" (20;16). Na literatura ocorre algo parecido e, com caridosa cautela, pode-se afirmar que essa primeira memória romanceada de Miguel Sanches Neto fez com que ele fosse chamado, mas não escolhido. 

Formação não lhe falta: nascido no norte do Paraná há 35 anos, é crítico literário, além de professor e doutor em literatura pela Unicamp. Atualmente, é diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado, portanto versado também nas letras burocráticas, como dizia Graciliano Ramos. Mas a literatura escolhe seus preferidos aleatoriamente, até em áreas díspares como a medicina: eis Guimarães Rosa, o médico de Cordisburgo, e Pedro Nava, tão bom pneumologista quanto grande memorialista. Mais recentemente o cancerologista Drauzio Varella escreveu uma obra-prima para adultos ( "Estação Carandiru" ) e agora premiou não só adultos, mas jovens e crianças com "Nas ruas do Brás"( Companhia das Letrinhas, coleção Memória e História). 

Apesar de uma obra ser voltada para o público infanto-juvenil e outra ter um espectro de leitores bem mais amplo, é possível comparar os dois livros em inúmeros pontos, entre eles a vida dura e pobre na infância: uma, no interior do Paraná, outra, no Brás, bairro de imigrantes da São Paulo do início do século. Mas enquanto para Drauzio Varella um livro é coisa simples, basta combinar uma palavra com outra e mais outra ("Minha mãe e meu pai tinham a mesma idade: 32 anos, na época. Eu tinha quatro anos, e gostava de pegar na mão dela para ver o contraste com a minha, queimada de sol..."), em Miguel Sanches o relato beira o piegas ("O que é a chuva, senão nossos olhos turvados de lágrimas?") e o autor apresenta um estilo heterogêneo. Ora fala a primeira pessoa, ora fala o Outro ("Quem será este interlocutor que o menino procurava?"). 

A vida do menino Miguel segue, dos 3 aos 17 anos, sem que muita coisa aconteça, numa câmera lenta que lembra o velho Cinema Novo em que o filme podia ser ruim, mas tinha mensagem. O livro desfia uma série de fatos cronologicamente: aos 4 anos, Miguelzinho perde o pai num acidente de carro, o que o deixa mais ensimesmado ainda. Pobre, a mãe passa a costurar para as putas, enquanto o filho só quer ler, perda de tempo que jamais lhe traria o mais importante na roça: dinheiro. Acaba fazendo o curso de Letras e largando a vida do campo. 

O texto cresce quando retrata os costumes regionais: "Saíam da colônia antes do sol nascer, depois da viúva ter acendido o fogo e preparado as marmitas, enroladas em um guardanapo alvo, feito de pano de saco de açúcar. Chegavam já noite e minha avó ainda tinha que cuidar da janta e fazer os serviços da casa. Nesse período, cada um deles só possuía duas mudas de roupas. Assim, usavam uma durante toda a semana e trocavam no domingo, único dia em que não iam para a roça -- era quando a viúva descia ao rio para lavar a roupa da semana, que só seria trocada no domingo seguinte". 

José Lins do Rêgo é um dos autores citados por Miguel e pode-se imaginar que, daqui para a frente, o autor seguirá o interessante caminho da literatura regional. O gênero já desponta em palavras e termos sulistas, tão distantes pelas fronteiras da língua que nem constam do Aurélio, como: embandeirar café; tomar banho no Tiradentes (chuveiro de corda); cilindrar o pão; jogar bola de capotão; as tigüeras, as buças, as vassoura de guanxuma. Seus diálogos são ágeis, curtos, nelsonrodrigueanos, coloridos com certa filosofia de botequim ("Viver não tem sido buscar o meu destino, mas lutar contra uma destinação"). No último capítulo, o autor indaga: "E se o leitor estiver se perguntando pra que ele escreveu tudo isso? Já tem aqui a resposta: pra contentar uma mãe". 

BEATRIZ HORTA é jornalista e tradutora

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Manoel Ricardo de Lima

A passagem da chuva

Manoel Ricardo de Lima
Articulista do Vida & Arte,
de O Povo

 As invenções e memórias do escritor paranaense Miguel Sanches Neto são percorridas pelo articulista Manoel Ricardo de Lima. No livro ``Chove Sobre Minha Infância'', destrinçado abaixo, Miguel Sanches reconstrói a travessia da existência sob pretexto da ficção
 
 Há uma linha tênue, deslocada, que divide a composição de um romance de memórias entre o que pode ser ficção, o que pode ser relato, o que faz sentido de uma e de outro, o que pode ser as duas coisas e mais, outra ainda, um desvelar sincero de percurso com a linguagem: invenção. Em um pequeno texto sobre o assunto, Roberto Schwarz defende a tese que a literatura madura de uma nação se dá muito e quase sempre através da memória. O que nos posiciona algum ou vários pontos de interrogação. Em um outro texto, de Augusto Fischer, está afirmado: ``o melhor do romance brasileiro foi concebido e escrito sob a forma de memória'', e põe lá o Cubas e o Aires de Machado de Assis, o São Bernardo de Graciliano e até as veredas de Guimarães Rosa e Riobaldo. O que nos traz mais questões ainda, e isso é bom.

Imagine então tentando recuperar os arremedos da infância, todos os seus princípios de uma formação recheada em relevos-atalhos-percalços-raiva, uma alegria triste, oceanos inteiros para nadar, uma tentativa de tomar voz, fazer falar um eu que não é mais meramente lírico ou o sujeito central de um universo de vida, mas um eu que se espalha para uma trajetória de formação também de um lugar, uma região, uma esplanada geográfica, histórica, sensorial e, com algum cuidado meu, sentimental também. Este é mais ou menos o deambular criado por Miguel Sanches Neto em seu primeiro romance, Chove Sobre Minha Infância (Record), lançado nestes fins do ano 2000.

Já no primeiro parágrafo, o narrador, que é o próprio Miguel disfarçado de si mesmo, diz mais ou menos qual a direção que o leitor deve tomar, o que já nos será uma espécie de definição do tom do livro, entre afirmativas e negativas, entre a ida de um narrador adulto que se encontra com um personagem de sua infância (Fischer esqueceu O Ateneu, de Pompéia), que é ele próprio, e faz percurso, vindo, até ver-se adulto, novamente. Diz Miguel: ``Chovia demais naquela manhã, uma chuva calma que molhava o piso vermelhão da varanda da casa onde morávamos, naquela época já de aluguel. Uma casa velha de madeira, a varanda circundada pela mureta de alvenaria. A chuva alagando território onde aquele que fui brincava de escorregar no piso. Depois, eu ia continuar preferindo estas brincadeiras em pisos molhados aos rios e às piscinas, sendo esta, inclusive, uma das razões de nunca ter aprendido a nadar''.
 

O livro se passa, em mais tempo, na mínima Peabiru, pequena cidade ao norte do Paraná, uma região, à época, pobre e de complicadores internos enormes para uma vida que se refugiava em livros e na inaptidão ao trabalho agrícola. É sabido que toda uma dimensão de terra desse estado era praticamente inóspita até pouco tempo, que muito de colonização destes lugares se deu das décadas de 40 e 50 para cá. Encontramos isso nos livros de Wilson Bueno, também paranaense, para dar exemplo, e agora neste, de Miguel. 

Duas coisas, posso correr este risco de apenas duas, me fazem crer e pensar este livro de Miguel: uma, a primeira delas, a beleza das frases, dos parágrafos, das imagens construídas por um narrador que se apresenta, se expõe, se dedica a estar na vida inserindo sua própria constituição como autor, como um escritor-crítico, do que pode ser isto, em um país de iletrados e de pauta ainda enormemente oral (que bem pode ser a Peabiruzinha do pequeno Miguel como este país de dimensões quase cosmicômicas que é o nosso).

Um mesmo Miguel que agora exercita o que tanto tem dito: pensar um país que traz ainda em si todas as suas inúmeras neuroses de sobrevivência. Talvez como dissesse um outro conterrâneo de Miguel: ``Num país pobre movido a carro de boi, é preciso por o carro na frente dos bois''. 

A outra, a segunda, o trabalho com o limiar entre ficção e relato, a construção de uma narrativa de memórias, quase um diário de bordo de uma vida inteira, algo como diria Bandeira, ``uma vida inteira que poderia ter sido e não foi'' (?), sabe-se lá. Ao final da narrativa, num retorno, uma visita a Peabiru, entra num bar, pede algo para beber, alguém pergunta: ``Onde o senhor mora?'', e responde: ``Numa cidade chamada memória''. E de volta recebe um ``Não sei onde fica''. Miguel, a meu ver, reconstrói travessia, ou em uma outra impressão, uma passagem através da chuva: existir. 
 

SERVIÇO
Chove Sobre Minha Infância - Romance de Miguel Sanches Neto. Ed. Record, 376 páginas, R$ 20,00.

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Espaço aos leitores
 Subject: 
            Re: Jornal de Poesia - disseram
       Date: 
            Thu, 14 Sep 2000 14:17:42 -0300
      From: 
            Iosito Aguiar <iosito@netpar.com.br>
        To: 
            "SF - Soares Feitosa, Jornal de Poesia" <jpoesia@secrel.com.br>
 References: 
            1
 

    Ói, meu Coroné, bom tá não é? Agora ach'que o Zé Castello bem que merecia uma análise mais aprofundada, que explicasse o porque de tanta agressividade com Don Migué. Veje, Don Migué sabe o que é escrever e escreve bem. A razão dessa crítica um tanto ácida e amarga deve de ser outra, não o estilo e a capacidade narrativa de Don Migué. Sou amigo dos dois e lhe juro que não entendi nada. Só sei (me foi contado por amigos) que a Luciana Villas-Boas, editora da Record, disse que esse livro está entre os melhores lançamentos da empresa. E aí? Luciana não é nenhuma ingênua para fazer afirmações gratuitas. E apois, cabe ao sinhô acompanhar de perto os acontecimentos e botar tudo no JP. Vale apenas, afinal, tamos mermo percisados duns embates intelectuais. Fraternalmente - IOSITO.
 

Soares Feitosa

Um critério jurídico,
a suspeição do magistrado
 
 
  

[Do lat. tard. suspectione.]
S. f. 
 1.  Desconfiança, dúvida, suspeita. 
 2.  Jur.  Situação, expressa em lei, que impede os juízes, representantes do Ministério Público, advogados, serventuários ou qualquer outro auxiliar da Justiça de, em certos casos, funcionarem no processo em que ela ocorra, em face da dúvida de que não possam exercer suas funções com a imparcialidade ou independência que lhes competem. 

[Cf., nesta acepç., exceção (7).] 
(Aurélio eletrônico)


 

       Preferi, para não complicar muito, citar o dicionário em vez de um código de leis. Sim, a suspeição existe e é bom que exista mesmo. Ela se dá em dois planos:

             a) no plano do cupinchato,
             b) no plano da malquerença.

       Não me atreveria a analisar um trabalho de um amigo que não fosse para, publicamente lhe rasgar todos os elogios, embora que, em particular, se o grau de intimidade assim o permitisse, lhe dissesse: fulanim, teu trabalhim tá um joça, por isto, isso e aquilo outro. Da mesma forma. não me meterei a analisar o trabalho dalgum inimigo (que nem os tenho) que não fosse para lhe descer o sarrafo, embora, em particular, entre os cupinchas, viesse a dizer: desci o malho, mas o safado é bom escritor!

       De sorte que escrevo sem problemas sobre meus amigos porque eles são todos ótimos, excelentes, superlativos. E não escrevo absolutamente nada sobre meus inimigos porque... não os tenho, mas se vier a tê-los, faço votos que não, jamais escreverei.

       Estas considerações me vêm a propósito da resenha generosíssima do crítico (quase sempre carrasco!) Miguel Sanches Neto sobre um livro do senhor José Castello. De ovo e galinha, quem nasceu primeiro foi a resenha de Sanches, Gazeta do Povo, 18.7.1999, respondida de forma nada generosa em setembro de 2000, edição nº    , da Revista Bravo. 

       Entendo que o escritor Castello dever-se-ia ter posto em suspeição. Depois da resenha de Sanches, esse senhor perdeu, smj, a isenção intelectual para... revidar. Revidar o quê? De que jeito, se de Sanches só elogios, como haveria Castello de lhe cuspir o prato? Então, melhor que houvera calado por calado. Ou, silencioso de público, tivesse dito ao Sanches que estava sem tempo, essas coisas.

       Particularmente estou impedido de escrever sobre os dois. Sobre o Sanches porque um dia, nem sei por que, esse senhor se dignou de me mandar um email com linha e meia sobre um poeminha do filho de véia minha mãe:
  

"MIGUEL SANCHES NETO <msanches@pr.gov.br>

Poema Habitação

Prezado Soares Feitosa 

Belo poema. Os temas da habitação e do envolvimento erótico receberam um interessante contorno poético. E você escreve sem pagar aluguel aos que se julgam donos das habitações literárias. E isso é bonito, é necessário. 

             Forte abraço do 

             Miguel Sanches"

.
        Já havia escrito tantas e tantas vezes para esse tal Sanches que acho, ele, com pena e, talvez para se ver livre, me mandou essas riquíssimas 3 linhas que guardo e alardeio como relíquia. Portanto, até aqui, Sanches, do meu partido, ainda que de acanhada meia-linha, está entre os maiores e melhores escritores de todos os tempos.

        Ao outro nada devo a não ser nunca se ter incomodado com o fato de eu lhe ter aberto página franca no Jornal de Poesia, no que aliás não lhe fiz nenhum favor, mercê dos méritos que tem como crítico e entrvistador. 

       Sequer cartão de natal. Mísero email que seja, nunca! Livro, poemas, convites, o diabo a 14, já me cansei de lhos mandar. Por isto, suspeito por enjeição, torço-lhe "honestamente" a caveira. Dane-se o Castello! Não, não! Muitos anos ao Castello, quem sabe, um dia amigo seja!

       Como vêem os leitores: suspeitíssimo eu sou! 

       De que suspeitaríamos a má-resposta de Castello?

       Se eu li os livros deles? 

       Nem pensar. Primeiro, que nunca me mandaram livro algum; segundo, que não estou doido para gastar meu rico dinheirinho à toa. 

       Não, não; o do Sanches eu vou comprar agora mesmo na livraria da internet.

                                                           Soares Feitosa, suspeito.

 
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