José
Castello
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Chove sobre minha
infância
A epígrafe, de Helder Macedo, faz uma promessa que não se
cumpre: “Este livro não é sobre mim, mas a partir de mim”.
Ainda assim, ela aponta a encruzilhada em que se desenrola esse Chove sobre
minha infância, primeiro romance do crítico literário
paranaense Miguel Sanches Neto. Se for um romance - mas não é
um romance -, o livro de Sanches não é bom. Talvez seja melhor
lê-lo, ainda que contra a vontade do autor, como o livro de memórias
que parece ser.
Se for um livro de memórias, ainda assim, Chove sobre minha infância
não chega a ser um bom livro, embora tenha momentos delicados, alternando
com outros, muitos outros, que rondam o banal. Clichês politicamente
corretos, lições de vida que nos fazem corar, segredos de
polichinelo. Mas, mesmo não sendo um bom livro de memórias,
o que se realça, se o lemos assim, é outra coisa: o destemor
de um jovem crítico que agora decide, ele também, se expor
ao julgamento dos que julgou; e, em vez de se amparar no suposto saber
do crítico, em seu porte de árbitro, Sanches surpreende,
oferecendo a seus leitores aquilo que tem de mais frágil, de mais
pessoal. Oferecendo a outra face.
O percurso pessoal de Miguel Sanches Neto, a julgar pelas informações
que aparecem em seu livro (se o tomamos como o livro de memórias
que parece ser), é cheio de provações. Do pai, restou-lhe
o retrato de casamento, o mesmo que está no túmulo. Criado
por um padrasto severo, dividido entre a obrigação de seguir
o papel que a família lhe destina (de trabalhador braçal)
e se entregar aos gozos do espírito (a literatura), Sanches atravessou
pequenos infernos até se tornar o escritor que é.
Fantasias sexuais, enxadas, sacos de cereais, bichos, surras e, sobretudo,
os dois pais, um vivo, outro morto, costuram seu relato. “Pra que nasça
um pai preciso matar o outro?”, ele se pergunta. Para concluir: “Matar
pessoas mortas é sempre muito mais demorado”. Conclusão que
o romance só vem reforçar.
O problema do livro, se
o lemos como as memórias que parecem ser, é que Sanches retrata,
sim, os horrores da vida comum, mas sem conseguir tocar o extraordinário
que sob ela se esconde. Relata sua vida de apanhador no campo de vagens,
a suspeita da mãe de que talvez tenha uma lesão na cabeça
e precise tomar Gardenal, remédio que poderia curar a mania de poesia.
Vai ao bordel, trabalha como vendedor de laranjas, matricula-se na escola
agrícola, apaixona-se pela secretária, compra um exemplar
de O Capital. Pesa 57 ou 58 quilos, mas deve carregar sacos de mais de
60. E quando foge, refugia-se no cemitério, ao lado do túmulo
do pai (pai idealizado que, ao final, graças à intervenção
de uma irmã, descobrirá que foi ladrão e adúltero).
“Meu pai viveu 32 anos, eu já ultrapassei esta idade. Estou no limite”,
diz, justificando o livro que escreveu. “Caso venha a morrer jovem como
meu pai, não transferirei este legado de silêncio a ninguém”.
Ato, sem dúvida, de grande dignidade, ele não basta, contudo,
para salvar o romance – que seria, talvez, melhor sucedido se decidisse
se assumir como aquilo que de fato é: uma catarse. Acontece que
a literatura, mesmo quando tramada sobre dolorosas lembranças pessoais,
não é catarse. Basta pensar num autor como Franz Kafka, cuja
penosa vida pessoal está entranhada em cada linha que escreveu;
suas grandes narrativas, apesar disso, são indiferentes aos apelos
da memória.
Há no livro de Sanches, ainda, uma entrega, uma doação
pessoal que as ressalvas ao romance podem ser tomadas, quase, como ressalvas
ao autor – e não é esse o caso.
Impasse que conduz de volta à pergunta: por que, para fazer sua
estréia na ficção, um crítico literário
foi se esconder sob a memória? É difícil crer que
o crítico sofisticado tenha cedido a tal confusão entre literatura
e experiência. Talvez ainda, vale cogitar, esse retorno ao passado
faça parte de uma estratégia meio suicida de Sanches. Ao
fim do mergulho dramático, o que podemos ver, se agüentamos
ver, é o sangue da crítica que, enfim, jorra (da crítica
que, apesar de exceções como o próprio Sanches, anda
tão gelada, tão opaca). Mas não será atribuir
razões fantasiosas ao que talvez não passe de um caderno
de notas?
Talvez haja ainda uma maneira invertida de ler o livro de Sanches: fingindo
que são falsas as informações que são verdadeiras
e, nesse caso, tomando Miguel Sanches Neto como uma espécie de heterônimo
de Miguel Sanches Neto. Nesse caso, ainda, toda a sinceridade do autor
seria apenas um jogo cruel a que ele submete seu leitor – e a idéia
das memórias perde o sentido. Seria preciso, contudo, conhecer pessoalmente
Sanches e sua vida para, confrontando a vida do autor com o relato do livro,
verificar até que ponto essa hipótese pode funcionar. Também
não é o caso – até porque, para ler um livro, não
deve ser necessário ler, simultaneamente, seu autor. Um livro se
basta.
Talvez, podemos ainda imaginar, Sanches tenha se atemorizado no momento
de inverter as máscaras e se ver como ficcionista. Tentou safar-se
disso recuando no tempo, abrigando-se na memória remota, ali onde
a imaginação, de tão exuberante, parece ser coletiva,
e não mais individual. Assim talvez, dividindo o que é seu
com uma espécie de lastro impessoal, pudesse escapar à fúria
de seus pares. Mas ainda essa é só uma possibilidade. Feita
a catarse, que deve ter lhe trazido grandes benefícios pessoais,
espera-se de Sanches Neto, agora, o romance que prometeu. Quanto ao crítico,
não se pode negar, ele sai engrandecido de Chove sobre minha infância,
porque nos mostra que, sob a capa engomada de juiz, também existe
um sujeito frágil.
Para ainda ficar com Kafka: em um de seus relatos inacabados, Esboço
de uma Autobiografia, ele nos diz: “Confissões, com efeito, só
são possíveis antes ou depois do ato. O ato não permite
a existência de mais nada para além de si”.
Melhor aguardar que Sanches, enfim, se esqueça do que viveu e, liberto,
se ponha a escrever.
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ENTREVISTA DE MIGUEL SANCHES
NETO
A MÁRCIO RENATO DOS
SANTOS, E,
NO FINAL, UMA PERGUNTA DE
SOARES FEITOSA
1. Vindo da crítica
e da poesia, o que significou para você o domínio de um código
de expressão tão diferente como o romance?
Nunca tive bem definida a
fronteira entre estas formas literárias, e isto se reflete claramente
em Chove sobre minha infância, que vai da crônica, em alguns
momentos, ao poético e ao conto, para, em conjunto, formar um romance
em blocos. É um livro escrito sem o desejo de pertencer a uma categoria
específica, com suas leis de construção rígidas.
Ao contrário, é obra composta por partes que se somam, mas
que também guardam significação isolada, numa tentativa
de ser, estruturalmente, o menos repetitivo possível. Não
houve também uma intenção de trabalhar sobre um modelo,
eu antes escrevi este livro como se tivesse vivendo um sonho, num transe
narrativo que lhe deu uma configuração um tanto estranha,
que pode fisgar o leitor e levá-lo até o fim numa viagem
rápida, dada a intensidade do que se narra.
2. A impressão que
se tem, realmente, é a de um sonho, pois você não se
prende muito às minúcias realistas, buscando do real os seus
signos.
Esta foi a intenção
desde o início, porque me agradava encenar toda uma vida em poucas
páginas, investindo muito mais na verticalidade do relato do que
em sua horizontalidade, tanto de enredo quanto de língua. E para
conseguir este aprofundamento me vali de situações-símbolos,
cujo significado cria uma abertura metafórica. Quando falo, por
exemplo, das frutas ácidas, estas entram na história muito
mais como metáfora da acidez crítica do narrador do que como
partícipe do mundo das coisas. É assim também com
o aprendizado dolorido das quatro operações matemáticas,
representação da entrada em nossa vida de uma nova família,
que vai se multiplicando. Nunca tive dúvida quanto à preponderância
do simbólico sobre o meramente descritivo, o que aproxima Chove
sobre minha infância da estrutura poética – o epílogo,
por exemplo, nasceu bem antes do livro e no formato de um longo poema,
mas acabou entrando como conclusão do romance. Não obstante esta
presença do poético, não há fechamento de linguagem,
sendo o livro de fácil compreensão, fundado principalmente
na gramática da comoção e na leveza.
3. A literatura moderna tem
medo de comover?
Não só tem
medo de comover, como de ser comovida. A comoção, que sempre
esteve presente nas grandes obras (penso, por exemplo, em Germinal, de
Zola), ficou de quarentena nas últimas décadas, quando imperou
um olhar irônico e desconfiado sobre tudo. A morte do eu na literatura
deu lugar ao culto do simulacro, de tal forma que se tornou constrangedora
a identificação com personagens que, previamente, se assumem
como falsários. Na contramão desta corrente, ousei escrever
um romance que busca, em cada uma de suas páginas, a comoção,
tentando levar o leitor a se identificar com o narrador, que no caso é
a mesma entidade do autor. Sou eu que narro minha história, uma
história sofrida, cheia de verdades cotidianas, apresentada por
um personagem que tem os olhos marejados – daí, inclusive, o sentido
do título do romance.
4. Você não
acha perigosa a proximidade, em Chove sobre minha infância, entre
a ficção e a autobiografia?
Embora nascida de vivências
reais, esta narrativa nem de longe se confunde com o estilo das memórias
ou da autobiografia. Ao narrar em primeira pessoa a sua vida, o autor se
coloca numa posição secundária: é sua história
que se conta por ele, cabendo-lhe o papel de intermediário. Logicamente,
quanto melhor for o autor, melhor serão suas memórias, principalmente
pelo uso estilístico da língua. Outra característica
fundamental para o gênero memória é o primado da verdade.
O ficcionista, mesmo quando se vale de experiências vividas, não
busca a verdade factual, mas a psicológica, seguindo não
o fio linear da vida, mas fundando estruturas sobre o vivido. Portanto,
meu romance é uma construção semântica sobre
fatos vividos por mim. Não contei tudo o que se passou em minha
formação, mas apenas as situações-chave. Eu
exerci sobre minha história uma força de linguagem e de estrutura,
é por isso que ela pertence ao mundo da ficção e não
ao da realidade relembrada.
5. Mas o fato de você
usar os nomes reais das pessoas e de incluir um caderno fotográfico
não significa justamente o contrário?
As fotos fazem parte da própria
semântica do livro, vindo inclusive com frases que não são
meramente identificatórias, mas que se somam ao narrado. O caderno
de fotos foi pensado como um capítulo do romance e não como
ilustração. Já o uso de muitos nomes reais é
também um recurso narrativo que busca desvelar o personagem em sua
integralidade. Se o narrador não tivesse o meu nome, ele seria mais
pobre do ponto de vista do relato. O peso do nome que ele sente ficaria
diminuído no caso de alguma alteração. Eu tentei mudar
os nomes, buscando equivalentes, mas a perda de carga simbólica
foi tão grande que me entreguei à sua forma verdadeira, embora
todas as pessoas sejam tratadas como personagens e não como gente
real. O padrasto que aparece no romance não é a cópia
fiel do meu próprio padrasto, mas uma invenção do
narrador que se sentia oprimido por ele.
6. Você não
corre com isso o risco de ser autocomplacente?
Chove sobre minha infância
é uma narrativa que vai se construindo pela memória do narrador,
que avalia tudo aquilo pelo qual passa por uma ótica pessoal, centrada
em seus sofrimentos. Estamos diante de um menino de extrema sensibilidade
para o confronto com o mundo e com a morte, que luta desesperadamente contra
a orfandade, não só a real mas principalmente contra a orfandade
cultural – ele vem de uma família de analfabetos, dedicada à
agricultura, e se sente destinado para o mundo dos livros. Esta ausência
do pai, morto na primeira infância, representa a própria ausência
de uma herança cultural. O menino triste vai crescendo como observador
de uma força negativa que o impede de ser ele mesmo. Esta força
se concentrou na figura do padrasto, que nega seu projeto. O padrasto,
portanto, é pintado com tintas fortes até o momento em que
há, depois da consolidação da vocação
do menino, agora um adulto, uma revelação que o concilia
com o mundo do padrasto. O livro não é complacente com o
narrador, porque ele acaba tendo destruído o relato em que se vê
como vítima.
7. A família está
muito presente neste livro. Ela é ao mesmo tempo odiada e amada.
Como você sente este impasse?
É dele que nasce o
drama e a grandeza de minha história. Quer queiramos ou não,
toda relação familiar se dá nesta imprecisa fronteira
do amor e do ódio. Comigo, isto foi intensificado, porque à
família biológica se juntou outra, a da padrasto, que trouxe
valores muitos conflitantes com os nossos. Amar odiando e odiar amando
a família foi e continua sendo um grande material romanesco, porque
nos livra de visões maniqueístas e planificadoras.
8. O que significa para a
sua família este romance?
Como se trata de uma família
praticamente analfabeta, de pouca instrução e muita solidão
de linguagem, acredito que meu romance é um acerto de contas com
este doloroso passado sem discurso. Uma família destinada ao silêncio
e à lavoura súbito encontra em um de seus descendentes o
porta-voz desta solidão que anseia ser linguagem. Embora a primeira
redação deste livro tenha sido muito rápida, tomando-me
pouco mais de um mês, eu costumo dizer que ele demorou cem anos para
ser escrito. Desde minha bisavó, depois minha avó e minha
mãe, todas com grande sensibilidade literária, esta história
veio se escrevendo no código imperfeito dos sentimentos repartidos.
Como fui eu o primeiro a adquirir instrumentos e instrução
literária adequada, a história se concretizou em minhas mãos,
mas veio com uma grande potência atávica.
9. O livro trata de uma trajetória
brasileira de grande força, em que o narrador se constrói
pela linguagem, amadurecendo nela. Foi difícil acompanhar a linguagem
do narrador?
Da criança ingênua
que comete alguns erros de visão e de língua ao adulto que
olha seu passado com olhos úmidos vai realmente uma distância
de linguagem. Este amadurece ao poucos de forma a manter verossimilhança
com o imaginário das várias fases do narrador. Por isso insisto
que não se trata apenas de uma história contada, mas de uma
narrativa construída com a busca minuciosa de uma familiaridade
com a língua. Assim, quando o menino se sente traído por
sua própria inteligência, há dois capítulos
em que a escrita atinge uma situação de violência,
representado por um ritmo alcoolizado, que no fundo é o rito de
passagem para a vida adulta.
10. Como você, que
é crítico, vê este livro no atual momento literário
brasileiro?
Primeiro, trata-se de um
livro à parte, por sua construção e por sua intenção.
Eu quis escrever um romance de formação diferente, contrariando
os simulacros de um pós-modernismo desgastado pelo uso repetitivo
de fórmulas narrativas, recuperando assim um personagem que funciona
como máquina de comover. É um livro para ser amado ou odiado.
Mesmo se valendo muito delas, Chove sobre minha infância não
prioriza a linguagem ou a estrutura como fim último do relato, mas
como elementos de intensificação de uma história triste
e bonita, vivida por gente comum, que um dia se fez autor, sujeito de sua
própria existência. Ou seja, é um livro que tem um
valor para além do literário por concretizar o sonho de três
gerações que viveram à sombra do mundo letrado.
11. Este romance terá
continuidade?
Não sei se é,
propriamente, uma continuidade, mas já estou trabalhando numa nova
obra que vai ser um estudo sobre as mulheres em minha família. Considero-me
um herdeiro da sensibilidade destas mulheres que com fibra se insurgiram,
desde o final do século passado, contra a representação
do poder econômico que se encontrava nos homens. Pretendo trabalhar
os erros e acertos de decisões extremamente corajosas de várias
antepassadas, que construíram a história de minha família
vencendo e sofrendo preconceitos.
12. É ainda a força
centrípeta da família sobre a sua obra?
Sem dúvida. Eu recebi
tantas informações sobre o passado de meus familiares que
me sinto na obrigação de dar uma forma narrativa para tudo
isso.
PS, via email:
Jornal de Poesia:
Professor Miguel Sanches,
o que o senhor tem a comentar sobre a resenha do escritor
José Castelllo sobre o seu livro? Sobretudo depois que o senhor
comentou o Inventário de sombras?
Miguel Sanches:
Prezado Soares, segue meu
artigo sobre um dos livros do Castello. Talvez seja material interessante
para o teu dossiê.
Abraço do
Miguel |
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MITOLOGIAS
Inventário de sombras,
de José Castello,
pode ser lido como um volume
de contos
Habitante da região limítrofe entre o jornalismo cultural
e a literatura, o que o tornou um dos mais importantes jornalistas do país,
José Castello cria um novo endereço em que podemos visitá-lo:
Inventário de sombras (Record, 1999), livro que deve ser percorrido
como uma galeria de mitos literários que alimentam seu imaginário.
Não procuremos o retrato realista, mas a criação de
uma imagem particular, de uma peça narrativa, em que o que conta
é a capacidade que Castello tem de construir uma miniatura do universo
do escritor retratado e não a fidelidade a este universo.
Não é o jornalista
que fala nestes textos, mas o fabulador, que transforma peculariedades
da vida de grandes escritores em enredos fechados em torno de uma idéia
que antes está em quem os admira.
Reunidos pelo mote das sombras (ou da maldição, como o autor
imaginou no início), encontramos escritores os mais díspares,
e até alguns não-escritores. Entre retratados como Dalton
Trevisan e José Saramago há uma distância maior do
que a que separa Curitiba da ilha de Lanzarote. Não é portanto
uma associação de nomes por um determinado
comportamento estilístico e nem por um critério temático.
Daí o autor incluir João Antônio e José Cardoso
Pires, Clarice Lispector e Adolfo Bioy Casares, claros e obscuros.
O termo sombras, que aparece no título, se refere antes a uma opção
de viver à margem do centro do campo de poder, seja ele político
ou literário, do que propriamente a qualquer espécie de trevas
mefistofélicas. Castello cultua o escritor que não se deixa
cooptar pelos valores imperantes e faz de sua obra uma forma de desobediência. Todos,
mesmo que um deles tenha recebido o prêmio Nobel de literatura, são
seres deslocados, cuja obra se confronta com o estabelecido. Este deslocamento
está cifrado na própria trajetória dos retratados.
Em Saramago, a fuga para uma das Ilhas Canárias, totalmente marcada
pelo deserto de um solo vulcânico. Em Dalton
Trevisan é a província curitibana, terra de colibris, corruíras
nanicas e araras bêbadas. Em Manoel de Barros, o isolamento lingüístico
e a fuga da racionalidade através da vivência plena do universo
pantaneiro. Em Clarice Lispector, a escrita totalmente ligada aos sentidos,
que tenderia para um quê de bruxaria. Em Raduan Nassar,
o isolamento no silêncio da fazenda do interior paulista e a renúncia
à escrita. Em Hilda Hilst, a busca da solidão da Casa do
Sol, no meio agrícola, para viver mais próxima de seus fantasmas.
Para João Antônio o que conta é o submundo carioca,
no qual ele se confraterniza com todas as espécies de merdunchos.
Já Caio Fernando Abreu entroniza a recusa de pertencer a uma sociedade
falocrática, sendo a sua maldição biográfica,
a AIDS, uma forma de realizar, apesar de todo o sofrimento, o seu sonho
de ser um jardineiro - o que o fez personagem dos contos de fadas de Oscar
Wilde. É na loucura e na morte que estão ancoradas as figuras
de Ana Cristina Cesar e de Bispo do Rosário.
Bioy Casares aparece como habitante de um mundo imaginário que,
com o passar dos anos, vai se transformando em algo cada vez mais presente.
Allain Robbe-Grillet, deixando de lado a busca da fama literária,
brinca de Drácula num castelo
reformado por ele e pela mulher. O Cardoso Pires que interessa a Castello
é o que sofreu a experiência da alteridade na ante-sala da
morte, depois de um acidente. Nelson Rodrigues cresce como o anjo vingador
da intelectualidade terceiro-mundista, esbaldando-se em andar na linha
divisória entre a literatura e a paraliteratura.
Mas de todos estes heróis, o mais radical é o jornalista
João Rath, o escritor que poderia ter sido e não foi. Enquanto
Raduan Nassar abandona as letras depois de alguns poucos livros geniais,
Rath as abandona antes mesmo de escrever, preferindo ser o personagem de
um livro nunca escrito. Todos, no entanto, são,
por diversas razões, habitantes da margem. Dentre os inúmeros
escritores que Castello entrevistou, ele escolheu estes por terem eles
assumidos uma condição de personagem, o personagem do Escritor
com maiúscula, reverenciados pelo repórter respeitoso.
Como quem escreve os retratos não é um crítico e nem
um biógrafo, mas um jornalista que, na condição de
dublê de escritor, busca afirmar a sua maneira de se relacionar com
um universo literário, não devemos buscar nos textos as chaves
de acesso às obras dos retratados e nem uma leitura definitiva destes,
mas o próprio impulso narrativo de José Castello, também
ele deslocado geograficamente para a nossa Curitiba. Ele quer se experimentar
na vida alheia, tirando dela lascas para a confecção de uma
persona literária. Este não é um livro cujo significado
está majoritariamente na informação sobre os autores
em discussão. Ou seja, não tem um caráter informativo
(o que não impede que aprendamos, e muito, com ele) e sim psicanalítico,
pois revela o desejo, o ardente desejo, de alguém que quer assumir
sua condição de escritor de ficção, penetrando
assim, de forma definitiva, no universo literário, do qual ele tem
participado como entrevistador.
Ao escrever sobre Clarice, Dalton Trevisan, Raduan Nassar etc., Castello
está escrevendo sobre si mesmo, porque o recorte feito na vida destes
autores é algo eivado da personalidade de um emissor que se espelha
no outro. Esta presença da subjetividade na montagem dos mitos tanto
pode ser vista como algo equivocado (quando tomamos por base
a condição informativa do livro) quanto como algo altamente
positivo (quando entendemos a intenção do jornalista e a
sua busca de uma apropriação narrativa de biografias).
Castello, em Inventário das sombras, está construindo a sua
mitologia particular através da ultrapassagem do jornalismo, se
aproximando assim de um conceito borgeano de ficção. Os retratos
devem ser lidos como conjunto de contos, artimanha que possibilita a Castello
transformar o texto profissional do jornalista, este ser que se anula para
dar presença ao outro, em uma obra criativa, centrada em quem a escreve. Borges
disse que só conseguiu escrever contos quando fingiu, para si mesmo,
que estava escrevendo ensaios.
Parece que Castello está se valendo do mesmo subterfúgio,
finge escrever sobre escritores, quando, na verdade, está é
escrevendo sobre si mesmo, sobre sua obra secreta, que não aceita
mais ficar na sombra.
(in Gazeta
do Povo, 18 de outubro de 1999)
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CHOVE
SOBRE MINHA INFÂNCIA
Miguel Sanches Neto
256 páginas
Formato: 14 x 21 cm
Preço: R$ 26,00
Lançamento: setembro
de 2000
ISBN: 85-01-05871-8
Record
CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA
é uma narrativa construída sobre a memória do narrador,
numa avaliação pessoal de um Brasil esquecido num passado
de analfabetismo. Utilizando uma extremamente bem construída
linguagem simbólica, Miguel Sanches Neto vai da crônica, em
alguns momentos, ao poético e ao conto, para formar um romance em
blocos.
Embora nascida de vivências
reais, a narrativa não se confunde com o estilo das memórias
ou da autobiografia. Mesmo quando se vale de experiências reais,
o autor não busca a verdade factual, mas a psicológica, fundando
estruturas sobre o vivido ao invés de seguir seu fio linear.
Inicialmente apresentando
uma visão ingênua, revoltada e otimista, o narrador vai amadurecendo
ao contar sua história, passando do órfão que não
compreende bem o seu mundo a um adulto que domina seus símbolos
e suas dolorosas verdades. Miguel Sanches Neto constrói uma saga
dramática, em que as antíteses sociais têm que conviver
entre si. O personagem principal deve receber a herança negada do
mundo rural e do analfabetismo para encontrar-se consigo e com sua história
– uma necessidade que muitas vezes acaba sendo camuflada num país
envergonhado de si mesmo. O leitor vai encontrar neste romance um Brasil
que se olha, se mostra e que comove, identificando-se com a história
do menino perdido em meio a poderosas forças antagônicas.
Miguel Sanches Neto nasceu
em Bela Vista do Paraíso, norte do Paraná, em 1965, e passou
a infância em Peabiru. Crítico literário (com mais
de 400 artigos escritos) e atual diretor-presidente da Imprensa Oficial
do Paraná, trabalhou como técnico agrícola, agricultor
e professor universitário. Concluiu doutorado em literatura pela
Unicamp aos 32 anos. Este é seu primeiro romance.
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Aleilton
Fonseca
aleilton@itp.com.br |
PAÍS OBSCURO,
POESIA CRISTALINA
Venho
de um país obscuro,
de Miguel Sanches Neto.
Curitiba: Travessa dos Editores,
2000.
82 páginas.(Tel.
021-41-262-6894)
O paranaense Miguel
Sanches Neto é um dos melhores críticos da atualidade, posição
que conquistou com o seu trabalho na Gazeta do Povo, de Curitiba, e na
revista Bravo, de São Paulo. Trata-se de um crítico exigente
que opina sobre escritores novos e veteranos com acuidade, equilíbrio
e excelente senso analítico. Atualmente, é editor da Imprensa
Oficial do Paraná, pela qual vem publicando obras de inegável
qualidade literária.
Além de crítico
e ensaísta, autor de um livro de ensaios sobre escritores gaúchos,
intitulado Entre dois tempos (1999), Miguel Sanches Neto é também
poeta. No seu livro mais recente, Venho de um país obscuro, ele
funde memória e lirismo em poemas consistentes que tocam a sensibilidade
e levam à reflexão sobre a vida e o país. Trata-se
de uma poesia que não se contenta com meros fraseados e exercícios
formais. Sua matéria é a vida real, a experiência da
vida e da aprendizagem, como processo de formação, autoconhecimento
e superação dos limites.
Em geral, o autor traduz
em versos livres, com boas passagens de prosa poética, aspectos
marcante de sua trajetória de vida, tendo como pano de fundo a realidade
de uma família humilde vivendo em meio às agruras da difícil
sobrevivência, num país dominado pelo autoritarismo. O traço
biográfico é o húmus de sua poesia, mas sua raiz é
o lirismo crítico e doído dos que venceram, mas não
escondem suas lutas, suas dores e suas cicatrizes.
Nascido em 1965, Miguel
cresceu sob os limites e as mordaças do regime militar, do qual
a lembrança da escola rígida e repressora ficou como emblema.
Sua poesia testemunha o peso do momento sobre a formação
e a memória de toda uma geração. Os seus poemas transbordam
do campo estritamente literário e se constituem também como
depoimento de uma geração que, tendo crescido sob a ditadura,
nem por isso deixou de adquirir uma consciência crítica acerca
do país que recebeu, com suas tristes heranças. O poeta declara:
“Venho de um país obscuro,/ de uma infância repleta de muros”
e representa, através de imagens verossímeis, sóbrias,
realistas, a verdade de suas vivências, a clareza de seu sentimento
diante das lembranças, num discurso ora amargo, ora indignado, que
ele exprime “mordendo o próprio dente, / com raiva e ruidosamente”.
O autor paranaense
traduz em poesia uma experiência de vida semelhante a de tantos brasileiros
como ele. Vidas que, à margem das considerações sociológicas
e históricas em geral, transitam de sua condição empírica
desconsiderada para uma representação que a resgata da obscuridade.
O locus experiencial do sujeito lírico é um país obscuro,
ausente dos compêndios, mas de uma gritante realidade à flor
da vida. Um país que grita no presente, com suas tensões
sociais, e que não se pode calar. Por isso, o poeta diz: “O
que fui em menino/ é hoje um baú lacrado / que, alheio à
minha história, / tenho como inquilino.// Em vão tentam arrombá-lo
/ as raízes da memória”.
Num momento em que
muito da poesia publicada não passa de exercícios imagéticos
e formais desconectados das realidades vividas individual ou coletivamente,
Miguel Sanches Neto revigora a poética das vivências que Drummond
consagrou em Boitempo I e Boitempo II. Uma poesia quase depoimento, que
tem a marca da experiência, das coisas e situações
vividas. E Miguel faz isso muito bem, sem cair em confessionalismos ingênuos
ou saudades fingidas. Seu forte é a sobriedade das imagens, que
fluem com ritmo e cadência, o que dá qualidade lírica
às passagens de prosa. Sua obra é uma contribuição
relevante, pela linguagem simples e vigorosa e pela temática pessoal
que ressoa no coletivo. Este poeta faz parte de uma geração
que vem conquistando, com justiça, lugar e voz no panorama literário
contemporâneo.
____________________________
Aleiton Fonseca é
escritor, Doutor em Letras (USP) e professor da Universidade Estadual de
Feira de Santana - Bahia, e co-editor da revista Iararana |
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Beatriz
Horta
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Crítico literário
escreve memórias sobre sua dura infância no Paraná
[O Globo, 16.9.2000]
Chove sobre minha infância,
de Miguel Sanches Neto.
Editora Record,
256 páginas. R$ 26
O aviso está em São
Mateus, primeiro dos quatro evangelistas: "São muitos os chamados,
mas poucos os escolhidos" (20;16). Na literatura ocorre algo parecido e,
com caridosa cautela, pode-se afirmar que essa primeira memória
romanceada de Miguel Sanches Neto fez com que ele fosse chamado, mas não
escolhido.
Formação não
lhe falta: nascido no norte do Paraná há 35 anos, é
crítico literário, além de professor e doutor em literatura
pela Unicamp. Atualmente, é diretor-presidente da Imprensa Oficial
do Estado, portanto versado também nas letras burocráticas,
como dizia Graciliano Ramos. Mas a literatura escolhe seus preferidos aleatoriamente,
até em áreas díspares como a medicina: eis Guimarães
Rosa, o médico de Cordisburgo, e Pedro Nava, tão bom pneumologista
quanto grande memorialista. Mais recentemente o cancerologista Drauzio
Varella escreveu uma obra-prima para adultos ( "Estação Carandiru"
) e agora premiou não só adultos, mas jovens e crianças
com "Nas ruas do Brás"( Companhia das Letrinhas, coleção
Memória e História).
Apesar de uma obra ser voltada
para o público infanto-juvenil e outra ter um espectro de leitores
bem mais amplo, é possível comparar os dois livros em inúmeros
pontos, entre eles a vida dura e pobre na infância: uma, no interior
do Paraná, outra, no Brás, bairro de imigrantes da São
Paulo do início do século. Mas enquanto para Drauzio Varella
um livro é coisa simples, basta combinar uma palavra com outra e
mais outra ("Minha mãe e meu pai tinham a mesma idade: 32 anos,
na época. Eu tinha quatro anos, e gostava de pegar na mão
dela para ver o contraste com a minha, queimada de sol..."), em Miguel
Sanches o relato beira o piegas ("O que é a chuva, senão
nossos olhos turvados de lágrimas?") e o autor apresenta um estilo
heterogêneo. Ora fala a primeira pessoa, ora fala o Outro ("Quem
será este interlocutor que o menino procurava?").
A vida do menino Miguel segue,
dos 3 aos 17 anos, sem que muita coisa aconteça, numa câmera
lenta que lembra o velho Cinema Novo em que o filme podia ser ruim, mas
tinha mensagem. O livro desfia uma série de fatos cronologicamente:
aos 4 anos, Miguelzinho perde o pai num acidente de carro, o que o deixa
mais ensimesmado ainda. Pobre, a mãe passa a costurar para as putas,
enquanto o filho só quer ler, perda de tempo que jamais lhe traria
o mais importante na roça: dinheiro. Acaba fazendo o curso de Letras
e largando a vida do campo.
O texto cresce quando retrata
os costumes regionais: "Saíam da colônia antes do sol nascer,
depois da viúva ter acendido o fogo e preparado as marmitas, enroladas
em um guardanapo alvo, feito de pano de saco de açúcar. Chegavam
já noite e minha avó ainda tinha que cuidar da janta e fazer
os serviços da casa. Nesse período, cada um deles só
possuía duas mudas de roupas. Assim, usavam uma durante toda a semana
e trocavam no domingo, único dia em que não iam para a roça
-- era quando a viúva descia ao rio para lavar a roupa da semana,
que só seria trocada no domingo seguinte".
José Lins do Rêgo
é um dos autores citados por Miguel e pode-se imaginar que, daqui
para a frente, o autor seguirá o interessante caminho da literatura
regional. O gênero já desponta em palavras e termos sulistas,
tão distantes pelas fronteiras da língua que nem constam
do Aurélio, como: embandeirar café; tomar banho no Tiradentes
(chuveiro de corda); cilindrar o pão; jogar bola de capotão;
as tigüeras, as buças, as vassoura de guanxuma. Seus diálogos
são ágeis, curtos, nelsonrodrigueanos, coloridos com certa
filosofia de botequim ("Viver não tem sido buscar o meu destino,
mas lutar contra uma destinação"). No último capítulo,
o autor indaga: "E se o leitor estiver se perguntando pra que ele escreveu
tudo isso? Já tem aqui a resposta: pra contentar uma mãe".
BEATRIZ HORTA é jornalista
e tradutora |
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Email do escritor Miguel
Sanches Neto
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Manoel
Ricardo de Lima
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A passagem da chuva
Manoel Ricardo
de Lima
Articulista
do Vida & Arte,
de O
Povo
As invenções
e memórias do escritor paranaense Miguel Sanches Neto são
percorridas pelo articulista Manoel Ricardo de Lima. No livro ``Chove Sobre
Minha Infância'', destrinçado abaixo, Miguel Sanches reconstrói
a travessia da existência sob pretexto da ficção
Há uma
linha tênue, deslocada, que divide a composição de
um romance de memórias entre o que pode ser ficção,
o que pode ser relato, o que faz sentido de uma e de outro, o que pode
ser as duas coisas e mais, outra ainda, um desvelar sincero de percurso
com a linguagem: invenção. Em um pequeno texto sobre o assunto,
Roberto Schwarz defende a tese que a literatura madura de uma nação
se dá muito e quase sempre através da memória. O que
nos posiciona algum ou vários pontos de interrogação.
Em um outro texto, de Augusto Fischer, está afirmado: ``o melhor
do romance brasileiro foi concebido e escrito sob a forma de memória'',
e põe lá o Cubas e o Aires de Machado de Assis, o São
Bernardo de Graciliano e até as veredas de Guimarães
Rosa e Riobaldo. O que nos traz mais questões ainda, e isso é
bom.
Imagine então tentando recuperar
os arremedos da infância, todos os seus princípios de uma
formação recheada em relevos-atalhos-percalços-raiva,
uma alegria triste, oceanos inteiros para nadar, uma tentativa de tomar
voz, fazer falar um eu que não é mais meramente lírico
ou o sujeito central de um universo de vida, mas um eu que se espalha para
uma trajetória de formação também de um lugar,
uma região, uma esplanada geográfica, histórica, sensorial
e, com algum cuidado meu, sentimental também. Este é mais
ou menos o deambular criado por Miguel Sanches Neto em seu primeiro romance,
Chove Sobre Minha Infância (Record), lançado
nestes fins do ano 2000.
Já no primeiro parágrafo,
o narrador, que é o próprio Miguel disfarçado de si
mesmo, diz mais ou menos qual a direção que o leitor deve
tomar, o que já nos será uma espécie de definição
do tom do livro, entre afirmativas e negativas, entre a ida de um narrador
adulto que se encontra com um personagem de sua infância (Fischer
esqueceu O Ateneu, de Pompéia), que é ele próprio,
e faz percurso, vindo, até ver-se adulto, novamente. Diz Miguel:
``Chovia demais naquela manhã, uma chuva calma que molhava o piso
vermelhão da varanda da casa onde morávamos, naquela época
já de aluguel. Uma casa velha de madeira, a varanda circundada pela
mureta de alvenaria. A chuva alagando território onde aquele que
fui brincava de escorregar no piso. Depois, eu ia continuar preferindo
estas brincadeiras em pisos molhados aos rios e às piscinas, sendo
esta, inclusive, uma das razões de nunca ter aprendido a nadar''.
O livro se passa, em
mais tempo, na mínima Peabiru, pequena cidade ao norte do Paraná,
uma região, à época, pobre e de complicadores internos
enormes para uma vida que se refugiava em livros e na inaptidão
ao trabalho agrícola. É sabido que toda uma dimensão
de terra desse estado era praticamente inóspita até pouco
tempo, que muito de colonização destes lugares se deu das
décadas de 40 e 50 para cá. Encontramos isso nos livros de
Wilson Bueno, também paranaense, para dar exemplo, e agora neste,
de Miguel.
Duas coisas, posso correr este risco
de apenas duas, me fazem crer e pensar este livro de Miguel: uma, a primeira
delas, a beleza das frases, dos parágrafos, das imagens construídas
por um narrador que se apresenta, se expõe, se dedica a estar na
vida inserindo sua própria constituição como autor,
como um escritor-crítico, do que pode ser isto, em um país
de iletrados e de pauta ainda enormemente oral (que bem pode ser a Peabiruzinha
do pequeno Miguel como este país de dimensões quase cosmicômicas
que é o nosso).
Um mesmo Miguel que agora exercita
o que tanto tem dito: pensar um país que traz ainda em si todas
as suas inúmeras neuroses de sobrevivência. Talvez como dissesse
um outro conterrâneo de Miguel: ``Num país pobre movido a
carro de boi, é preciso por o carro na frente dos bois''.
A outra, a segunda, o trabalho com
o limiar entre ficção e relato, a construção
de uma narrativa de memórias, quase um diário de bordo de
uma vida inteira, algo como diria Bandeira, ``uma vida inteira que poderia
ter sido e não foi'' (?), sabe-se lá. Ao final da narrativa,
num retorno, uma visita a Peabiru, entra num bar, pede algo para beber,
alguém pergunta: ``Onde o senhor mora?'', e responde: ``Numa cidade
chamada memória''. E de volta recebe um ``Não sei onde fica''.
Miguel, a meu ver, reconstrói travessia, ou em uma outra impressão,
uma passagem através da chuva: existir.
SERVIÇO
Chove Sobre Minha Infância
- Romance de Miguel Sanches Neto. Ed. Record, 376 páginas, R$ 20,00. |
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Email do escritor Miguel
Sanches Neto
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Espaço aos
leitores
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Subject:
Re: Jornal de Poesia - disseram
Date:
Thu, 14 Sep 2000 14:17:42 -0300
From:
Iosito Aguiar <iosito@netpar.com.br>
To:
"SF - Soares Feitosa, Jornal de Poesia" <jpoesia@secrel.com.br>
References:
1
Ói,
meu Coroné, bom tá não é? Agora ach'que o Zé
Castello bem que merecia uma análise mais aprofundada, que explicasse
o porque de tanta agressividade com Don Migué. Veje, Don Migué
sabe o que é escrever e escreve bem. A razão dessa crítica
um tanto ácida e amarga deve de ser outra, não o estilo e
a capacidade narrativa de Don Migué. Sou amigo dos dois e lhe juro
que não entendi nada. Só sei (me foi contado por amigos)
que a Luciana Villas-Boas, editora da Record, disse que esse livro está
entre os melhores lançamentos da empresa. E aí? Luciana não
é nenhuma ingênua para fazer afirmações gratuitas.
E apois, cabe ao sinhô acompanhar de perto os acontecimentos e botar
tudo no JP. Vale apenas, afinal, tamos mermo percisados duns embates intelectuais.
Fraternalmente - IOSITO.
|
Soares Feitosa
Um critério jurídico,
a suspeição
do magistrado
[Do lat. tard. suspectione.]
S. f.
1. Desconfiança,
dúvida, suspeita.
2. Jur.
Situação, expressa em lei, que impede os juízes, representantes
do Ministério Público, advogados, serventuários ou
qualquer outro auxiliar da Justiça de, em certos casos, funcionarem
no processo em que ela ocorra, em face da dúvida de que não
possam exercer suas funções com a imparcialidade ou independência
que lhes competem.
[Cf., nesta acepç.,
exceção (7).]
(Aurélio eletrônico) |
Preferi, para não complicar muito, citar o dicionário em
vez de um código de leis. Sim, a suspeição existe
e é bom que exista mesmo. Ela se dá em dois planos:
a) no plano do cupinchato,
b) no plano da malquerença.
Não me atreveria a analisar um trabalho de um amigo que não
fosse para, publicamente lhe rasgar todos os elogios, embora que, em particular,
se o grau de intimidade assim o permitisse, lhe dissesse: fulanim, teu
trabalhim tá um joça, por isto, isso e aquilo outro. Da mesma
forma. não me meterei a analisar o trabalho dalgum inimigo (que
nem os tenho) que não fosse para lhe descer o sarrafo, embora, em
particular, entre os cupinchas, viesse a dizer: desci o malho, mas o safado
é bom escritor!
De sorte que escrevo sem problemas sobre meus amigos porque eles são
todos ótimos, excelentes, superlativos. E não escrevo absolutamente
nada sobre meus inimigos porque... não os tenho, mas se vier a tê-los,
faço votos que não, jamais escreverei.
Estas considerações me vêm a propósito da resenha
generosíssima do crítico (quase sempre carrasco!) Miguel
Sanches Neto sobre um livro do senhor José Castello. De ovo e galinha,
quem nasceu primeiro foi a resenha de Sanches, Gazeta do Povo, 18.7.1999,
respondida de forma nada generosa em setembro de 2000, edição
nº , da Revista Bravo.
Entendo que o escritor Castello dever-se-ia ter posto em suspeição.
Depois da resenha de Sanches, esse senhor perdeu, smj, a isenção
intelectual para... revidar. Revidar o quê? De que jeito, se de Sanches
só elogios, como haveria Castello de lhe cuspir o prato? Então,
melhor que houvera calado por calado. Ou, silencioso de público,
tivesse dito ao Sanches que estava sem tempo, essas coisas.
Particularmente estou impedido de escrever sobre os dois. Sobre o Sanches
porque um dia, nem sei por que, esse senhor se dignou de me mandar um email
com linha e meia sobre um poeminha do filho de véia minha mãe:
"MIGUEL SANCHES NETO <msanches@pr.gov.br>
Poema Habitação
Prezado Soares Feitosa
Belo poema. Os temas da habitação
e do envolvimento erótico receberam um interessante contorno poético.
E você escreve sem pagar aluguel aos que se julgam donos das habitações
literárias. E isso é bonito, é necessário.
Forte abraço do
Miguel Sanches" |
.
Já havia escrito tantas e tantas vezes para esse tal Sanches que
acho, ele, com pena e, talvez para se ver livre, me mandou essas riquíssimas
3 linhas que guardo e alardeio como relíquia. Portanto, até
aqui, Sanches, do meu partido, ainda que de acanhada meia-linha, está
entre os maiores e melhores escritores de todos os tempos.
Ao outro nada devo a não ser nunca se ter incomodado com o fato
de eu lhe ter aberto página franca no Jornal
de Poesia, no que aliás não lhe fiz nenhum favor, mercê
dos méritos que tem como crítico e entrvistador.
Sequer cartão de natal. Mísero email que seja, nunca! Livro,
poemas, convites, o diabo a 14, já me cansei de lhos mandar. Por
isto, suspeito por enjeição, torço-lhe "honestamente"
a caveira. Dane-se o Castello! Não, não! Muitos anos ao Castello,
quem sabe, um dia amigo seja!
Como vêem os leitores: suspeitíssimo eu sou!
De que suspeitaríamos a má-resposta de Castello?
Se eu li os livros deles?
Nem pensar. Primeiro, que nunca me mandaram livro algum; segundo, que não
estou doido para gastar meu rico dinheirinho à toa.
Não, não; o do Sanches eu vou comprar agora mesmo na livraria
da internet.
Soares Feitosa, suspeito. |
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Email do escritor Miguel
Sanches Neto
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