Ronaldo Cagiano
Um encontro de contas em memórias
precoces
I
2.12.2000
Debruçando-se sobre seu passado, o
poeta, crítico, ensaísta e atual diretor da Imprensa Oficial do
Paraná, Miguel Sanches Neto, estréia na prosa com um romance
autobiográfico - Chove Sobre Minha Infância. Esse livro remonta às
experiências dolorosas de sua infância/adolescência, projetadas num
relato candente, superando o estigma sentimentalóide dos livros de
memória para se fixar como expressão sincera e catártica de um
período conturbado de sua vida. As imagens da chuva que aprisionavam
o menino em casa, mais que recurso lúdico e metafórico, é
representação parabólica de sua interlocução com o mundo exterior,
como tentativa de escapar à solidão e ao vazio de uma infância com
sua insularidade e sua falta de recursos. Com tal carga mítica, a
narrativa flui num crescendo, captando nas fotografias do
inconsciente e da memória ancestral uma geografia muito particular,
onde está presente, desde tenra idade, a resistência do protagonista
a um modelo de vida em tudo desigual às suas convicções e que vai
provocar-lhe um permanente desejo de desafio, transgressão e
autonomia.
Nessa obra Miguel Sanches Neto
rastreia o seu passado vivido no interior do Paraná, delimitando uma
trajetória de angústias e pesadelos, explicitando uma permanente
antítese: a vida que queriam lhe impingir e o seu desejo real.
Nascido em Bela Vista do Paraíso, em 1965, ainda menino, aos três
anos, perde o pai num trágico acidente, situação que representa um
divisor de águas em sua vida, quando se muda com a família para
Peabiru, onde ele foi enterrado. É o início de sua via crucis, de
uma fase de desafios, quando a figura do padrasto (um homem
exigente, cujos valores ortodoxos e anacrônicos vão construindo uma
barreira intransponível entre eles) deflagra uma convivência hostil.
Mas um convicto Miguel resiste por meio de sua atávica consciência
insurrecional e crítica a esse espectro tão antagônico e
psicologicamente negativo em sua vida.
Vão-se os anos e consolida-se o
seu desejo de romper amarras e desatar algemas. Enviado a um Colégio
Agrícola, rejeita a nova condição e atalha-se pelas leituras,
descobrindo autores que serão motivação e influência e que vão
consolidar sua consciência crítica. Viajando nos livros (de Augusto
dos Anjos a Marx, passando por Kafka e Eduardo Galeano), o mundo
novo funda seu contraponto, quando começa a empreender sua
silenciosa rebeldia contra o tirano familiar e postiço. "Leio para
tentar descobrir um lugar nisso tudo, nesse troço estranho que
chamam de vida", revela. Aos poucos vai arrostando a ditadura
doméstica e ganha corpo sua intenção de mudar a situação, para não
anuir ao desejo do padrasto que o desejava sucessor nos negócios, na
vida rural, nas trivialidades interioranas. Miguel decide estudar
literatura e faz dela mais que conseqüência de uma vocação, mas sua
verdadeira, apaixonante e necessária viagem - uma viagem muito mais
psicanalítica do que literária - ao mundo dos livros, como
instrumento de conhecimento e também de exorcismo de suas tensões.
Na maioria dos casos, as
autobiografias reduzem-se a um amontoado de informações
desnecessárias, confissões tautológicas e outros excessos memoriais.
No caso de Chove Sobre Minha Infância, o autor, embora sem
preocupações literárias, parte para um enfoque mais dinâmico,
decompondo suas vivências sem afetação, numa crônica de vida. E ao
escrever sobre esse tempo, não se furta a uma análise crítica,
sociológica e psicológica das contingências geográficas,
estruturais, temporais e culturais que permearam sua vida.
É sobre o burlar esses
condicionamentos e procurar um destino diverso daquele imposto por
valores medíocres e alienantes que nos fala o autor. Ele mesmo deixa
claro sua disposição de enfrentar os antagonismos, num dos momentos
reflexivos dessas memórias precoces: "Viver não tem sido buscar o
meu destino, mas lutar contra uma destinação." Ou quando, num rasgo
roseano, tenta esquecer o pai morto e deificado: "Matar pessoas
mortas é muito mais demorado." E num dos pontos altos do livro ("O
herdeiro de ruínas"), ao reproduzir uma carta de sua irmã, que vem
recolocar certas verdades e desmitificar a imagem heróica do pai, o
autor vai desconstruindo seu discurso radical contra o padrasto,
numa espécie de apaziguamento com o passado, revendo seus juízos de
valor e melhor compreendendo relações tão difusas e estigmatizantes.
Chove Sobre Minha Infância tem sua
beleza plástica, sua poesia doída, sua densidade literária, apesar
do tom confessional. Ele trata da infância, da vida e da morte, das
frustrações e das perdas, principalmente das perdas de referencial
num mundo que lhe parecia em permanente decomposição. Miguel Sanches
Neto é aqui um saudosista, um conservador, não no sentido ideológico
e reacionário, mas como representação do indivíduo que busca no
passado e na família seu liame verdadeiro e suas simbioses, ainda
que isso lhe custe tocar em certas feridas, na busca do elo perdido.
Por isso a literatura é o seu instrumento de depuração, por meio da
qual fala seu passado, gritam suas dores e ganham voz e vez alguns
entes sem discurso. Um livro que também responde a uma pergunta
crucial, que lhe desferiu certa vez um parente, a par do sentido de
se gastar a vida com a literatura. O sentido está nessa obra
pungente, um encontro de contas com a vida.
O que se pode dizer desse livro é
que se trata de uma leitura muito preci(o)sa, visceral e
potencialmente demolidora, para reconstruir sobre os escombros de um
passado as bases ideológicas e conceituais de uma vida mergulhada no
instigante universo da literatura. Com dureza, mas mitigado pelo
estilo cristalino e poético do autor, suas confissões são permeadas
da paixão literária, pelo prazer da leitura, pela empatia com o
mundo da criação.
(CHOVE SOBRE MINHA INFÂNCIA, de Miguel Sanchez Neto.
Imprensa Oficial do Panamá, 254 págs., R$ 26,00)
Leia a obra de Miguel Sanches Neto
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