Eleuda de Carvalho
Entrevista com Ariano Suassuna
Ariano Suassuna completa, hoje, 70
anos. Apaixonado pela cultura brasileira, sua trajetória de
Cavaleiro Andante em luta contra os moinhos da massificação deu
margem a muita incompreensão, por um lado, mas também a um número
crescente de admiradores ao mestre. Artista de muitos instrumentos,
Ariano é mais conhecido como dramaturgo, sendo O Auto da Compadecida
uma das peças mais encenadas no país. Sua obra poética, injustamente
esparsa, merece ser editada com as belas iluminuras que ele criou.
Na música, lançou o Movimento Armorial, agora retomado com o
Conjunto Romançal de Câmara. No âmbito das artes gráficas, Ariano
tem predileção pela xilogravura, uma das mais belas expressões da
nossa arte popular, que ele também experimenta. O romance histórico
latino-americano, da linhagem do fantástico-maravilhoso, é
representado muito bem no Brasil com o seu Romance da Pedra do
Reino.
Desde 1995, Ariano é o secretário da
Cultura de Pernambuco, e como tal tem feito uma revolução estética
que, ele queira ou não, inspira movimentos como os do pessoal do
Mangue-Beat. Há dez dias Ariano Suassuna esteve em Fortaleza, a
convite do editor do jornal literário O Pão, Virgílio Maia, para nos
deliciar com uma aula-espetáculo, na qual ele expôs com alegria de
palhaço e precisão de professor suas idéias sobre arte e cultura.
Numa manhã luminosa, na casa armorial de Virgílio e Côca, com fundo
musical de passarinhos, conversei com Ariano Suassuna (ou ele
conversou comigo). Parte está logo aí, pra você. E pra você, Ariano,
hoje e sempre, parabéns!
Vida & Arte - Ariano, sua marca pessoal
é a defesa radical da cultura popular. Você encara esta guerra, como
você diz, contra a massificação, iniciada com o Movimento Armorial
nos anos 70, como sua missão mais importante?
Ariano Suassuna - Eu falo mais na
popular porque ela é mais marginalizada, mas o meu interesse é pela
cultura brasileira em geral, erudita ou popular. O Movimento
Armorial é uma tentativa da criação de uma arte erudita brasileira,
baseada nas raízes populares da nossa cultura, isto é a essência.
Falo muito, com muita insistência, da arte popular, porque ela é
mais esquecida. Acho que um dos meus papéis no Brasil como
secretário de Cultura é lembrar isso.
V&A - Mário de Andrade, um dos
revolucionários da Semana de Arte Moderna, tinha este cuidado em
enaltecer a cultura brasileira em geral, e a popular, em particular.
Por conta disso, fez várias viagens ao Nordeste e Norte, compilando
manifestações culturais. Posso comparar este Mário amante da nossa
cultura com a sua paixão por nossa arte?
Ariano - Pode. Há uma semelhança muito
grande no tipo de trabalho - digamos assim, público - que ele fazia
e que eu faço. Agora, há uma diferença fundamental. É que ele tem,
não sei se por causa da época, uma visão pessimista do homem
brasileiro e da própria cultura brasileira. Vamos escolher um
personagem picaresco da minha obra... Você pega o João Grilo e
compara com Macunaíma. Em Macunaíma o povo brasileiro é olhado de
uma maneira triste, e toda a visão é de pessimismo. Eu sempre me
zanguei muito quando dizem que João Grilo é um anti-herói. É nada!
Ele é um herói, um camarada que vence os poderosos. Repare uma
coisa: no Auto da Compadecida, o padeiro representa a burguesia
urbana; o major Antônio Moraes representa os proprietários rurais; o
sacristão, o padre e o bispo, o clero. Então você tem ali o clero, a
nobreza e a burguesia e ele, João Grilo, é o representante do povo.
E ele vence esse pessoal todo, e como se não bastasse inda vence o
diabo. Se ele não é um herói, eu não sei quem é herói, não.
V&A - Quanto à sua assumida aversão ao
rock. Não será porque esta manifestação cultural dos anos 60 já
pegou você esteticamente formado?
Ariano - Todo mundo me chama de
radical, e eu acho que sou mesmo. Mas eu comecei a me opor ao
próprio Alceu (Valença), de quem eu gosto muito, pessoalmente, mas
de quem discordei desde o começo. Eu não quero estas misturas, não.
Agora, reconheço uma coisa em Alceu e em Elba (Ramalho), pessoas que
são anteriores ao Movimento Mangue. É que eles, mais do que o
pessoal do Mangue, exercitaram uma transformação. Eles conseguiram,
de certa maneira, até certo ponto, uma incorporação, ao invés de se
curvarem diante do rock. Eu não incorporaria e vou até mais longe.
Eu despertei as iras do pessoal do Rio de Janeiro porque não aceito
isso nem em Tom Jobim, apesar de que o ingrediente americano que ele
colocou na música dele era melhor do que o rock. A minha posição
causa muito equívoco, eu não sei se sou eu que disse o verso torto,
ou se é o ouvido dos outros que está entortando. Quererem que eu dê
ao Movimento Mangue a mesma importância que eu dou a Villa-Lobos,
desculpe, mas eu não dou. Não dou, não dou, morro negando.
V&A - Um dia desses, vi uma reportagem
na tevê com um cantador de folhetos que estava escrevendo seus
versos via Internet. O cordel pode mudar sua essência, ao sair da
praça e entrar numa teia virtual?
Ariano - Pra surpresa de muita gente,
quem apoiou esta coisa foi eu, fui eu que financiei. O pessoal ficou
todo de queixo caído, eles não entendem. Não tenho nada contra isso
não, desde que isso não seja uma deformação nossa, tá entendendo? É
João José da Silva, não é ele? Ele me procurou, na Secretaria. Não
editava desde a década de 60, ele é editor e é poeta. E as capas, as
gravuras dos folhetos quem faz são as filhas dele, e os filhos.
Aliás, é o ponto menos bom do trabalho dele. Ele não lança mão dos
melhores gravadores do Nordeste, fica em família, o que é uma coisa
simpática. Mas é muito bom poeta e era um editor muito importante,
no Recife. Foi me pedir ajuda e disse isso: ``-Olhe, eu descobri que
com computador sai muito mais barato e eu vou poder voltar a
editar''. Eu tinha conseguido um dinheiro do Ministério da Cultura
pra dar um prêmio, dividido em duas categorias, consagração de obra
e estímulo à criação, pra arte erudita e arte popular, no mesmo
valor. E era um prêmio bom, pra nossa média de dinheiro. Com o
dinheiro do prêmio, ele comprou o computador e já está digitando,
ele mesmo. Ele tem 300 e tantos folhetos pra editar, já fez os
primeiros 25, me levou lá de presente. Isto aí é o que eu chamo
colocar a tecnologia a serviço da cultura brasileira.
V&A - Ano passado, você, em entrevista
à revista Veja, disse um negócio que eu decorei: ``Podem me chamar
de romântico. Arte para mim não é produto de mercado. Arte, para
mim, é missão, vocação e festa''. Percebi o significado desta
declaração de princípios durante sua aula-espetáculo, onde estes
três ingredientes estão mesclados...
Ariano - Uma coisa que me tocou muito
foi esta observação. Eu não tinha observado que havia uma unidade
entre a aula-espetáculo e isto que você leu na revista Veja, que
gostou, esta história da missão, da vocação e da festa. Não tinha
notado, mas você disse isto e eu me sinto muito honrado, muito
satisfeito, porque eu vi que realmente tem um pouco de festa, me
divirto na aula-espetáculo junto com o povo. Consigo às vezes
divertir o público também, tem um pouco de espetáculo e nisso vai a
minha festa, e tem também a missão, porque eu estava ali em missão.
Estou ali executando um programa do qual pode ser até que ninguém
tenha me encarregado, mas eu mesmo me encarreguei de fazer uma
defesa da cultura brasileira. Fiquei muito contente de você ter
descoberto isto, eu próprio não tinha percebido.
V&A - Dentre sua obra literária
variada, no teatro, na poesia, na prosa, tenho especial predileção
pelo Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta.
No livro, há o projeto de uma trilogia, a se continuar em O Rei
Degolado e na História de Sinésio, o Alumioso. Lendo os dois volumes
que você publicou, me parece que no primeiro estão contidos os
três...
Ariano - Se dissessem a mim: ``-Toda a
sua obra vai ser destruída, você só tem o direito de fazer escapar
uma'', eu faria escapar A Pedra do Reino, porque foi onde eu me
expressei de maneira menos incompleta. De tudo que escrevi, A Pedra
do Reino é o que mais expressa o meu universo interior.
|