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			Eleuda de Carvalho 
 
            
 Cântico para um mundo em 
			dissolução
 
            
			[in Jornal OPOVO, 09.05.2005]
 
            
			
 
 Nascido no Ceará e radicado em Recife, ele é contista, dramaturgo 
			e roteirista de filmes e documentários. Nesta conversa, a literatura 
			dá o mote para sua visão de mundo e a compreensão do Brasil
 
 
 
            Na casa que foi do Barão do Icó, nos 
			ermos dos Inhamuns, em Saboeiro, nasceu Ronaldo Correia de Brito. 
			Corria o ano de 1950. Os primeiros cinco anos ele passou ali, entre 
			os cuidados de pai e mãe e as primeiras descobertas do mundo. E o 
			mundo não tinha tamanho. Quando o menino fez cinco anos, a família 
			mudou-se para uma cidade maior, o Crato. Ali completou a infância, 
			entre histórias contadas por sábias bocas analfabetas e maravilhas 
			insuspeitas que se revelavam a cada novo livro. Um devorador de 
			histórias, o que ele era, é. Até, bem depois, impregnado até o osso, 
			comecar também a escrevê-las.  
            ''Aprendi a ler numa História Sagrada, 
			que é uma seleta da Bíblia. Quando tinha sete anos de idade, meu pai 
			pediu que lesse em voz alta, para toda a família, um trecho da 
			história de José do Egito. Foi a minha diplomação''. Devorou, 
			depois, Machado de Assis e José de Alencar. ''Li e reli tudo. A 
			literatura mais contemporânea não chegava até nós. Li-a bem depois. 
			Fiquei com os clássicos. Com treze anos, deixaram que eu 
			freqüentasse a biblioteca da Faculdade de Filosofia. Nunca esqueço o 
			meu deslumbramento diante de tantos livros. Por um feliz acaso, 
			escolhi a Ilíada e a Odisséia, logo na primeira visita. Foi o começo 
			da minha paixão pelos gregos. Depois vieram os russos, que ainda 
			hoje leio com devoção. E muito cedo tomei gosto por ler peças de 
			teatro: Shakespeare, MoliŠre, Sófocles, Ésquilo...''.  
            Cheirando a leite, com 17 anos, 
			Ronaldo foi embora para Recife. Formou-se médico, casou com uma 
			colega de faculdade, os filhos vieram. Escrevendo, sempre. Contos, 
			roteiros, peças de teatro. Em 1977, ele faz o filme Lua Cambará, com 
			Assis Lima, Horácio Carelli e o músico armorial Antônio José 
			Madureira. Com Madureira e Assis Lima, lança a Trilogia das Festas 
			Brasileiras: O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim 
			- que viraram livros, discos e espetáculos teatrais, ainda hoje 
			encenados. Todos temas nascidos em mescla com a fonte generosa da 
			tradição oral.  
            ''Acredito na supremacia da narrativa. As narrativas só perderão a 
			função quando os homens perderem a fala, a audição e o dom de 
			mentir. Costumo lembrar o quanto eram importantes os velhos 
			narradores que tinham por única função na vida andar pelas casas 
			interioranas, repassando conhecimentos que eles adquiriram e 
			guardaram na memória. Acho que nenhum deles se perguntou algum dia 
			sobre o valor do seu trabalho. Como também acredito que os aedos 
			gregos não se fizeram esta pergunta, enquanto fixavam o idioma, a 
			mitologia e a épica grega'', disse, antes desta conversa de logo 
			mais.  
            Por seus temas, esta permanência visceral à terra e a sua gente 
			ancestral, Ronaldo é enquadrado, muito equivocadamente, nesta 
			moldura estreita de autor regional. Ela não o contém nem o abarca. 
			''Se você elabora uma personagem complexamente neurótica, feminista, 
			com todos os anseios urbanos, e se você senta esta mulher numa 
			cadeira de couro, olhando uma paisagem desolada do sertão, há quem 
			enxergue apenas o cenário, e três ou quatro substantivos locais. 
			Embora essa mulher fale da mesma dor e da mesma solidão de uma negra 
			americana do Harlem''. Apaixonado pelo poeta americano Walt Whitman 
			(''ele é quase Deus para mim''), Ronaldo reina no conto. Agora, o 
			escritor está sendo publicado pela editora CosacNaify, que editou 
			Faca (2003), O Pavão Misterioso (infanto-juvenil, 2004) e agora O 
			Livro dos Homens. Agora, está preparando um romance, o primeiro. Os 
			fundamentos da obra, cravados no Sertão dos Inhamuns. Para onde ele 
			sempre volta - na memória e na imaginação, pra fazer arte. 
 O POVO - Antes de você cair no mundo, recorde a vida, na flor dos 
			anos, em Saboeiro, nos Inhamuns, e depois no Crato, neste Ceará 
			entranhado em sua alma, espinho de cardeiro com o qual você escreve 
			e encarna seus textos.
 
 Ronaldo Correia de Brito - Quando fui embora do Crato para estudar 
			medicina em Recife, já levava na bagagem o meu projeto de vida. Ao 
			longo dos anos não fiz mais do que dar polimento nele. Nasci numa 
			fazenda por nome de Lajedos, em Saboeiro. Meu pai era de Várzea 
			Alegre e minha mãe, uma professora, do Crato. Eles se casaram e 
			foram habitar esse mundo desterrado. Havia um açude/barragem, 
			construído de blocos de pedra, como as pirâmides, e uma casa 
			alpendrada. A propriedade pertencera ao Visconde do Icó, diziam. 
			Vivi ali apenas cinco anos, mas este tempo marcou de forma 
			irremediável toda a minha vida. Fui iniciado na literatura oral, 
			através dos contadores de história que corriam as fazendas, 
			pernoitando nas casas e retribuindo a hospitalidade com o saber de 
			que eram depositários. Além das histórias tradicionais, eles 
			narravam os mitos locais, a vasta epopéia do sertão dos Inhamuns. Eu 
			era uma criança sensível e deslumbrada. Aprendi a ler com meu pai, 
			numa História Sagrada, uma seleta de textos da Bíblia. Não tinha a 
			menor vocação para vaqueiro, nem administrador de terras. Meus pais 
			reconheceram isto, e nos mudamos para o Crato, uma cidade que 
			lembrava a Rimini de Fellini. Nesta época, éramos apenas quatro 
			irmãos. Depois nasceram mais quatro. Sobre os Inhamuns, penso como 
			Capistrano de Abreu - que nunca se escreveu a história do 
			desbravamento dos sertões. Os historiadores ficaram pelo litoral. 
			Apesar dos romances e ensaios de Nertan Macedo e da poesia de 
			Gerardo Mello Mourão, muito ainda precisa ser feito. Tivemos um 
			ciclo épico e de tragédias nesse vasto sertão cearense. Nada disso 
			foi representado até o esgotamento, como o ciclo do faroeste 
			americano, a conquista do Oeste. Cadê os nossos John Huston, John 
			Ford, Roberto Leone? Glauber e os diretores do ciclo do cangaço 
			fizeram uma leitura sobretudo do social. Os acontecimentos foram bem 
			mais transcendentes. O romance regionalista de 30 foi apenas um 
			ensaio deste período. A nova geração de escritores prefere escrever 
			sobre os dramas urbanos.
 
 OP - Recife: você com 17 anos, vindo do interior. O que o encantou 
			logo de cara? Como foram seus primeiros tempos lá? Do que mais 
			sentia falta?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Recife foi um alumbramento, como a visão 
			de uma mulher nua tomando banho no poema de Manoel Bandeira. Cheguei 
			em 1969, tempo brabo da ditadura militar. A cidade ainda possuía 
			quase toda a sua arquitetura colonial. Era muito bonita. Ainda é 
			hoje, apesar de tão maltratada. Cheia de pontes, desenhada pelo rio 
			Capibaribe, com uma infinidade de igrejas, parecia um outro mundo. 
			Fui morar num apartamento pequeno, com mais seis colegas, todos 
			cearenses. Nós, do sul do Ceará, sempre preferimos migrar para 
			Recife, ao invés de Fortaleza. Temos ligações históricas com 
			Pernambuco. Eu me senti feliz nesse primeiro ano, apesar do 
			nervosismo do vestibular. Sentia falta apenas do humor cearense, da 
			cordialidade sertaneja.
 
 OP - Quando você partiu, levou o quê na mala? Quero dizer, no 
			começo, talvez sair do Ceará tenha sido um alívio, como é um alívio 
			para todo jovem sair de casa e encarar o mundo. Depois é que a gente 
			faz as pazes...
 
 Ronaldo Correia de Brito - Existia um sentimento de que Recife era a 
			capital do sul do Ceará, desde a Confederação do Equador e a 
			Revolução de 1817, quando tentamos ser independentes do resto do 
			país. Acho que este sentimento foi acentuado pela perseguição que o 
			clero e a sociedade de Fortaleza fizeram ao Padre Cícero. Nosso 
			Padrinho viajava a Roma pelo porto de Recife. Lembre-se, Eleuda, de 
			que a guerra de 14, para nós, não foi a guerra européia. Mas a que 
			nós fizemos lá no sul do Ceará. Nossos romeiros tomaram Fortaleza e 
			depuseram o governador Franco Rabelo. De forma que Recife parecia 
			uma extensão do Cariri. Eu nunca perdi o meu apreço pelo Ceará, nem 
			me desfiz dos meus vínculos. Minha mulher e meus filhos, todos 
			pernambucanos, protestam contra esse apego, porque, afinal, moro em 
			Recife há 36 anos.
 
 OP - Sua relação com a narrativa veio da infância. Mas e o teatro, o 
			cinema, a música? Em Recife, 1970, nascia o Movimento Armorial. Você 
			participou?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Quando entrei na Faculdade de Medicina, 
			em 1970, fui morar na Casa do Estudante Universitário. Dividia 
			quarto com Assis Lima, um cearense do Crato, meu parceiro desde o 
			científico, e com o poeta armorial Ângelo Monteiro. Nessa época, 
			comecei a freqüentar o DEC, Departamento de Extensão Cultural da 
			Universidade Federal, dirigido por Ariano Suassuna. Foi um tempo de 
			aprendizado. O DEC era um mundo à parte na escura repressão. Muita 
			gente famosa circulava por lá: Francisco Brennand, Gilvan Samico, o 
			poeta César Leal, os músicos do Quinteto Armorial, entre eles os 
			meus futuros parceiros Antônio Madureira e Antônio Nóbrega, Marcus 
			Accioly, Cussy de Almeida, em suma, era um mundo de resistência, o 
			celeiro armorial. Eu era um fedelho, só fazia olhar e ouvir. Ariano 
			lia trechos do Romance d'A Pedra do Reino, e nós escutávamos 
			deslumbrados. Eu começava a rabiscar os meus primeiros escritos, mas 
			supondo que seria como Tomazzo de Lampedusa, morreria com os meus 
			papéis inéditos. Eu freqüentava tudo o que se fazia em arte, em 
			Recife. Orientava-me pelo conselho de um amigo: a todos conhecer e a 
			nenhum pertencer. Era uma cabeça bem aberta. Via os concertos do 
			Quinteto Armorial e os shows de Caetano; as apresentações do Boi do 
			Capitão Antônio Pereira e a peça Hair; lia Cervantes e Cortázar, 
			MoliŠre e Fernando Arrabal; escutava Villa-Lobos e Bob Dylan. A 
			primeira encenação de um texto meu só aconteceria em 1983, depois de 
			muita maturação. Tinha a medicina, uma profissão que ocupa todo o 
			nosso tempo, jornadas de trabalho semanal de pelo menos 60 horas. 
			Apesar dessa escassez, em 1977, teve o filme Lua Cambará.
 
 OP - Voltemos aos tempos de estudante. Como era a boemia, as farras, 
			desses verdes anos? Você se engajou em algum grupo de esquerda, à 
			época?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Toda a universidade vivia tempos negros 
			de repressão. Medicina não fugia à regra, embora aparentemente nada 
			acontecesse. Nosso professor de anatomia, Bianor da Hora, a qualquer 
			bagunça da turma ameaçava chamar o Quarto Exército. Eu sofri muito, 
			porque era tímido, pobre, e além de estudar os dois expedientes, 
			ainda trabalhava o terceiro, à noite. Meus pais tinham uma família 
			grande, oito filhos. Já no primeiro ano eu dispensei a mesada e 
			passei a me custear. Uma doideira, isto. Não sei como escapei. Mas 
			tinha muita diversão, sim. Porque nós éramos jovens, libertários, 
			cheios de engenho e arte. Eu sempre acompanhei os movimentos 
			estudantis, mas nunca me engajei em nenhum partido, em nenhuma 
			ideologia extremista, graças a Deus. Eu saíra do Crato determinado a 
			estudar, me formar, trabalhar, ganhar dinheiro para ajudar a 
			família. Era uma meta traçada por mim e meu pai, sem direito a 
			extravios. A idéia de família, a responsabilidade com os irmãos e os 
			pais, é muito estruturadora no sertão. Meus amigos que entraram para 
			a luta armada se deram mal, alguns foram exilados, outros presos. 
			Cândido Pinto, aquele célebre estudante da UNE, que levou o tiro na 
			coluna e ficou paraplégico para o resto da vida, eu o conheci bem, e 
			sei que preço alto ele pagou. Eu era um estudante de esquerda, mas 
			sabendo até onde podia ir.
 
 OP - Teve o assassinato daquele jovem padre Henrique, ligado a D. 
			Hélder Câmara (Patativa do Assaré contou a história num folheto, a 
			pedido do próprio D. Hélder). Detalhe um pouco mais esta época de 
			exceção.
 
 Ronaldo Correia de Brito - Havia medo, muito medo. Recife sempre se 
			caracterizou pelas revoluções libertárias e pagou caro por isto, a 
			ponto de perder a maior parte do seu território. Aqui, havia as 
			Ligas Camponesas, a luta no campo. A repressão foi muito forte. E 
			nós sofremos muito com a censura, com a perda da liberdade de 
			expressão. Mas havia resistência, de todas as formas. Acho que ainda 
			hoje Recife paga por 64.
 
 OP - Falemos de afetos. Da sua família pernambucana.
 
 Ronaldo Correia de Brito - Sou casado com Avelina, há trinta anos. 
			Ela nasceu em Arcoverde, a entrada do sertão de Pernambuco. Tem uma 
			história parecida com a minha, veio morar em Recife para estudar. 
			Também fez medicina e foi com ela que tomei gosto pela profissão. Eu 
			era um tipo rebelde, quase revoltado. O poder do feminino me 
			acalmou, como naquela carta do Tarô de Marselha, em que uma mulher 
			sem qualquer esforço doma um leão, apenas com a energia sutil. 
			Avelina é uma mulher culta, concentrada, que gosta de estudar 
			profundamente a medicina que faz, e não apenas a medicina, tudo o 
			que diz respeito à arte da cura, no sentido mais amplo. Um achado. 
			Temos três filhos, dois homens e uma mulher. Um advogado, uma quase 
			médica, e um vestibulando de direito. É uma família estudiosa, que 
			aprecia música, cinema, que gosta de ler. O mais novo toca guitarra. 
			Todos curtem rock. É ótimo porque me atualizo no repertório. Aqui em 
			casa as escolhas são bem livres. Mas não fugimos ao padrão de uma 
			família nordestina, lutamos pelos filhos, desejamos que eles sejam 
			felizes e bem sucedidos, e há muita alegria na nossa convivência.
 
 OP - Você é um homem intrinsecamente amoroso, mas um escritor 
			anti-lírico. Seus contos tratam de sentimentos além da pele, mais 
			fundos, densos. Como se enraizados no chão cristalino da caatinga. 
			Quando o inverno vem, tudo é flor.
 
 Ronaldo Correia de Brito - Acho que existe lirismo em ''Da morte de 
			Francisco Vieira'', um dos contos do Livro dos Homens, o preferido 
			pelo meu editor, Rodrigo Lacerda. Eu gostaria de falar do meu 
			encontro com a CosacNaify. A editora vem apostando nessa coleção que 
			publica autores de vários estados do Brasil, muitos desconhecidos do 
			grande público, como eu. É uma aposta de Augusto Massi no fôlego da 
			literatura brasileira. Rodrigo Lacerda trabalhou junto comigo nos 
			três livros que editei. Um verdadeiro acompanhamento editorial, indo 
			às minúcias das minúcias, com um cuidado e uma gentileza que muito 
			nos honra como autores. Além de editores, Rodrigo é romancista e 
			Augusto poeta. Já pensou quanta honra?
 
 OP - Seus contos, tanto em Faca quanto no recente O Livro dos 
			Homens, trazem o Sertão naquilo que ele tem de universal: o ser 
			humano e seus paradoxos. Você constrói sobre o atemporal, aquilo que 
			não passa, nem passará.
 
 Ronaldo Correia de Brito - Escrevo a partir de uma memória 
			inventada. Como Salústio, afirmo que essas coisas não aconteceram 
			nunca, mas nunca deixaram de existir. Portanto, o meu sertão é a 
			paisagem através da qual eu interpreto o mundo, o de hoje, o 
			globalizado, o que rompeu com as tradições. Interessa-me a 
			decadência, a dissolução. Meus personagens migram, sofrem o embate 
			com as outras culturas. Tenho sido vítima de preconceitos pela 
			escolha dessa paisagem. Depois do romance de 30, criou-se uma 
			cartilha única para a leitura do que escrevemos, mesmo passados 
			tantos anos. Uma verdadeira condenação para os artistas posteriores 
			a esse ciclo regionalista, que não abriram mão da sua geografia como 
			cenário. Se você elabora uma personagem complexamente neurótica, 
			feminista, com todos os anseios urbanos, e se você senta esta mulher 
			numa cadeira de couro, olhando uma paisagem desolada do sertão, há 
			quem enxergue apenas o cenário, e três ou quatro substantivos 
			locais. Embora essa mulher fale da mesma dor e da mesma solidão de 
			uma negra americana do Harlem.
 
 OP - Qual foi o primeiro texto que você escreveu? Era um conto, um 
			poema, uma peça de teatro?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Era um conto misturado com poesia, 
			vergonhosamente influenciado por Lorca.
 
 OP - Marco Lucchesi escreveu, nas orelhas do Livro dos Homens, sobre 
			seu texto como assentado numa paisagem bíblica onde não cabe Deus. 
			Uma mística seca. Em Faca, temos também este sentimento, de fúria e 
			fé. Você acredita em quê?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Eu sou um cara religioso, embora não 
			freqüente nenhuma igreja. Costumo rezar, como os antigos hebreus, 
			como Jó, aos impropérios, brigando com Deus. O mundo sertanejo 
			lembra o da Bíblia, sim, sendo que Deus foi desterrado dele.
 
 OP - Entre o exaustivo ofício da medicina, qual o tempo da 
			literatura?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Faço muitas coisas ao mesmo tempo, e não 
			saberia viver de outra maneira. Já não trabalho em consultório e a 
			cada dia reduzo as minhas atividades como médico clássico, aquele 
			que vive correndo de um lugar para outro, dando plantões, estressado 
			e mal pago. De um modo geral, tenho a idéia para um conto ou novela, 
			e fico ruminando durante muito tempo. Um dia, sento e escrevo. O 
			conto ''Qohélet'', do Livro dos Homens, ficou comigo uns vinte anos. 
			Quando li o Eclesiastes transcriado por Haroldo de Campos, foi como 
			uma centelha. Tive a sensação de que os textos bíblicos possuíam 
			aquele ritmo, aquela respiração cheia de pausas. Aí foi ligeiro. O 
			conto fluiu numa boa. ''Brincar com veneno'', o quarto conto do 
			livro, deu um trabalho que quase desisto. É um conto todo armado 
			como uma partida de xadrez. Nada pode revelar o final, mas ao mesmo 
			tempo todo o conto deve ser escrito revelando o final. É um 
			paradoxo. Segundo Ricardo Piglia, todo conto anuncia o seu desfecho 
			já nas primeiras frases. E eu sei que é verdadeiramente assim.
 
 OP - E quanto ao romance que você está escrevendo. Como é que veio a 
			idéia? Primeiro vem uma imagem, um personagem, um nome, uma 
			paisagem, algo estranho, um pesadelo, um incômodo, um engasgo. O 
			quê?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Estou escrevendo um romance ambientado 
			aonde? Adivinhe? No sertão cearense. Só que para lá convergem 
			pessoas de todo o mundo. Trato das questões do nosso tempo, os 
			conflitos de cultura, as migrações, a dissolução da família 
			tradicional. Jogo na mesa os conflitos insolúveis entre cidade e 
			campo. Não posso revelar mais. É segredo de estado.
 
 OP - E o teatro, outros planos, sonhos, desejos. O que é que deixa 
			você totalmente feliz?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Se você fala de felicidade como um 
			sentimento de plenitude, sinto-me assim lá na serra de Taquaritinga, 
			onde possuo um pequeno sítio. E isto acontece porque não preciso 
			fazer nenhum esforço de convivência, esforço de nada. Estou ali, no 
			silêncio absoluto, olhando a imensidão de terras sem gente, sozinho 
			comigo e Avelina. Lemos, escutamos música, caminhamos, escutamos o 
			silêncio, que é o mais caro dos bens. Tenho escrito pouco para o 
			teatro, porque precisei cuidar de publicar meus textos, o que 
			significa reescrevê-los. No ano passado encenamos o Baile do Menino 
			Deus, no formato de uma cantata natalina, na praça do Marco Zero, no 
			bairro do Recife. Foi uma bela montagem. No último dia tivemos um 
			público de vinte mil pessoas, que não quis ir embora quando o 
			espetáculo acabou. Eu subi ao palco, para os agradecimentos. Quando 
			vi o rosto daquela gente, pessoas de todas as idades, cantando e 
			dançando um Baile que está em cartaz há 21 anos, eu me senti feliz. 
			Curioso, eu lembrei a minha trajetória do Crato para Recife e achei 
			que tinha valido a pena.
 
 OP - Qual é o canto predileto de sua casa? A melhor diversão? E a 
			paisagem que mais toca você?
 
 Ronaldo Correia de Brito - Nós possuímos um escritório em casa, um 
			lugar de trabalho. Lá estão os livros, a janela que abre para o 
			quintal com bananeiras e coqueiros. Eu só consigo trabalhar na 
			frente de um computador. Não sei escrever à mão, faltam idéias. 
			Temos o pedaço de serra no interior, mas lá eu não trabalho, só 
			leio, penso, contemplo, respiro. Sempre gostei de ouvir música. 
			Tenho preferido os compositores do barroco. Mas escuto rádio e 
			discos no carro. Sim, minha memória olfativa é tirânica. Os cheiros 
			me transportam para os lugares, verdadeiras viagens no tempo.
 
 
 
 
			
  Leia a obra de 
			Ronaldo Correia de Brito
 
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