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Eleuda de Carvalho


 


Beleza dissonante

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil
(Fortaleza, Ceará, 01 Outubro de 2005)




A poeta e artista plástica Helena Armond se inspirou nas latomias da igreja católica para erguer, com tijolos sutis, uma capela ao efêmero, ao que é essencialmente humano. Cantochão (Escrituras) é um longo poema que se esgalha em pequenos cantos e espirais de beleza fraturada

 

Dizem que ela não gosta de aparecer. Nada de fotos, badalações, luzes da ribalta. Helena Armond escreve e cria - esculturas, tinta sobre tela - e depois compartilha o feito. Feito este novo livro, Cantochão, lançamento da Escrituras. Zelo por dentro e por fora. Do conteúdo poético ao papel reciclado que acolhe palavras de sentidos remexidos, a capa em tecido grosso, cru, centrado em vermelho-sangue, com cercadura em volutas de monogramas.

Helena Armond nasceu em Muzambinho, nas Minas Gerais, e só saberemos isto da autora. Sem quando e sem agora. Helena anda entre versos, trafega entre rimas esparsas e um sentimento do mundo. Começou a publicar em 1983, o livro Linhas, segmentos e pontos... de vista. Em 98, com o livro Pedra d'ara, ganhou o prêmio de poesia da Associação Paulista de Críticos de Arte.

Cantochão, a palavra. O mesmo que canto gregoriano, a melopéia encantatória da igreja católica do Ocidente, com suas vozes indistintas, solenes e cavas, que buscam elevar ao Divino a pobre humanidade malassombrada. Do cantochão original, Helena capturou o encadear dos versos, que se emendam, mínimos, se imbricam, mesclam-se. Mas o que ela se propôs foi pegar a palavra pelo rabo, reparti-la em duas: a poeta volta-se ao pó do chão, que sustenta o homem de pé e depois o acolhe, na igualdade irmã e horizontal.

Mas é inegável, em seu poema, a memória das torres e naves que se alteiam em cada colina de cada cidade mineira. ''No ofício de contar'', começa Helena, ''com medo, sem covardia/ confesso sujeita a culpas'', ''entre nuvens de incenso/ hóstia sagrada/ e som de um pequeno sino''. O cântico de Helena Armond esgarça o véu entre Cristo, Buda, Krishna. Ela se irmana, sem que precise dizer de maneira explícita, às profetisas da Grande Deusa: ''mantenho o fogo e espírito/ cabelos compridos meu véu''. E, adiante, selvática: ''cantos do chão ressoam/ quando sem freios nos dentes/ solto os meus cavalos''. É a indomável, ''só o horizonte me via''.

Uma Eva precursora, Lilith, mulher-diaba: ''olhos de lince/ traçando perspectivas/ via figuras menores/ meu eu em primeiro plano'', confessa. Abre seus abismos de segredos: ''longo tempo intuitiva'', ''canto raso canto solo'', ''mais que o pudor a beleza''. Helena desconhece vírgulas, desdenha pontos. A poesia vai no ritmo de sua respiração. E, em sendo assim, o texto é um e outro, a depender do fôlego de quem lê. ''(Os 4444 quilômetros de São Paulo a São Paulo)/ couberam num verso meu'', diz adiante, inventando novas cercas para a distância. Parêntesis. ''Dissonância não me espanta'', atalha a moça, desenovelando seu ''cantochão das carpideiras''.

Arrancada de seu chão, a mulher-planta: ''quando mineral sou de Minas/ e se vegetal/ beladona''. Venenosa. ''Traguei o que não se traga''. E a palavra ''desencanto'' boiando entre duas páginas. Mudança de rumo: ''sempre canto um canto uno''. E na unidade, a fratura, o canto insano e insultos, o trânsito, a rua, o abandono, o que se vê por aí - matéria bruta da vida e do poema. Helena convoca os elementos em fúria, mínima e perigosa: ''sou um cisco/ me agarro num selo''. E sapeca a pergunta que navega entre a beira rasa e o profundo: ''E... acha mesmo que Deus existe?'', e ela mesma dá a resposta, ''eu tive um pai/ que teve um pai/ que teve um pai/ que teve um pai/ quer mais?''.

Evoca Bilac e suas estrelas, ora direis, invoca Tupã, celebra os Reis Magos, para findar em ''um canto passarinheiro/ em regência São Francisco'', arrodeado de aves no paraíso. Sutil, a condição de ser uma mulher: ''sou mãe e filha das cismas... crio novelos de ondes''. Para quem trafega entre a palavra e a tela, ode ao pintor dos amarelos e dos girassóis: ''só Van Gogh pinta o vento'', diz, arrematando, ''e desvenda pensamentos/ das pessoas que retrata''. E funde, em alquimias, as águas telúricas e o ardor da cachaça.

Um quê de surrealismo - porque a vida mesma é tão surreal, não é verdade?, feito este menino morto numa guerra santa, entre campos de morangos e patas de elefantes. E, para o anjo, um buquê de prímulas, papoulas, açucenas, begônias, lírios, rosas, as flores sem nome que medram nos matos. ''Recolho diálogos/ entre objetos''. ''Sei-me melancolia/ semente flor fruto e linfa/ na beira de fundo poço''. E solta sobre a página encantos de hai-kais: ''d'água da calha/ o sabiá se banha/ brilhos na grama''.

No poema, cabem a cidade grande e a aldeia, e suas corriqueiras paisagens. Galinhas rodando coradas no espeto e a ''garota em natural atitude de puta''. Em Cantochão, a liberdade da fala: ''não sou poeta/ escrevo textos com certo ritmo'', e ''talvez me falte o siso'', crê. Helena Armond não corre o ''incomensurável risco/ de confundir a paz com tédio''. Nem o leitor.


SERVIÇO
Cantochão - Helena Armond (poesia). Edição Escrituras, 82 páginas, capa em tecido, miolo em papel reciclado. R$ 30. Informações: www.escrituras.com.br

 



Helena Armond
Leia a obra de Helena Armond

 

 

 


 

04/10/2005