Elieser César
Semeador de ânsias
Em um dos seus ensaios, o poeta
mexicano Octavio Paz definiu a poesia como “a outra voz”,
ressaltando que “pela boca do poeta fala, não escreve - a outra voz,
que não é a voz do túmulo: é a voz do homem que está dormindo no
fundo de cada homem, tem mil anos e tem a nossa idade e ainda não
nasce; é nosso avô, nosso irmão e nosso bisneto”.
Portanto, a poesia é como um brado do
espírito que se volta para um tempo recôndito, em busca de uma
verdade ancestral, primordial e única e se projeta para o futuro na
tentativa de ordenar o caos que habita o âmago de cada ser humano.
Uma voz que se transmuda em memória e nostalgia, em reflexão
ontológica e indagação existencial, que parece lamentar a infância e
a inocência perdida e também expressar a perplexidade diante da
existência e do imponderável que rege a condição humana.
Roberval Pereyr pertence à linhagem
dos poetas que fazem de seus versos um instrumento de indagação
existencial, ora serena, ora crispada como um grito de desesperança;
por vezes lírica e também embalada por um rasgo de ironia e humor. É
justamente “a outra voz” desse artista nascido em 1953 em Antônio
Cardoso, mas residindo em Feira de Santana desde os 11 anos de
idade, que se oferece ao leitor no livro Amálgama - Nas praias do
avesso e poesia anterior, recém-lançado na Academia de Letras da
Bahia.
Com o selo “As Letras da Bahia”,
publicação da Secretaria da Cultura e Turismo em parceria com a
Fundação Cultural do Estado da Bahia, Amálgama reúne seis livros de
Roberval Pereyr: Nas Praias do Avesso (2004), Saguão dos Mitos
(1998), Concerto de Ilhas (1997), O Súbito Cenário (1996),
Ocidentais (1987) e As Roupas do Nu (1981), coletânea de estréia do
poeta, que já revela uma surpreendente maturidade, enriquecida pela
desconcertante simplicidade de seus versos, que abordam temas
profundas com uma escrita clara e transparente, como alguém que mira
um lago num manhã de sol em busca do que as águas cristalinas
escondem bem no fundo desse rio da alma, deste vasto promontório de
sensações, cuja foz termina por desaguar na criação poética.
Ao lado de Antonio Brasileiro, Juraci
Dórea e outros artistas da terra, Roberval é fundador do Grupo Hera
que, por quase três décadas, congregou poetas radicados em Feira de
Santana, revelando sempre novos talentos. Não tivesse outras
qualidades patentes, a presença de Amálgama já se justificaria por
dar visibilidade à uma obra que vem sendo construída pouco a pouco,
lapidada sem pressa, pela mão de um artista que sabe que a poesia
não é um pão que sai do forno e deve ser logo oferecido para o
repasto dos espíritos irrequietos, mas um laborioso processo de
construção que, ao contrário do alimento mais popular do planeta,
não é feito para empanturrar ninguém, nem deve se deixar macular
pelo bolor do tempo, mas manter seu viço renovado.
VERBAL E FILOSÓFICO - Nos poemas de
Roberval Pereyr, também próximo aos poetas metafísicos, notam-se
influências de Drummond, Pessoa e até Antonio Brasileiro, amigo de
longa data. Porém, são influências meramente pontuais, incidentais,
tributárias da grande tradição poética que se inicia como o primeiro
verso bem realizado de um poeta imemorial, pois o autor de Amálgama
conseguiu um feito que só verdadeiros poetas logram alcançar: sua
marca individual, afeição inconfundível de seus versos. Como bem
salienta Marcos Lucchesi na contracapa do livro: “a conquista de um
rosto; uma obra que reunida e, ao mesmo tempo, em construção, aponta
para um destino literário, um endereço metafísico, um compromisso;
apenas a poesia, mas toda a poesia”.
Já o também poeta e professor Aleilton
Fonseca prefere destacar, na poesia de Roberval, “o profundo
mergulho no sentido do ser verbal e filosófico da condição humana
moderna”; a voz lírica que “tudo amalgama e abarca, propiciando
saberes e epifanias”. Para o escritor Valdomiro Santana, a poesia de
Roberval Pereyr - “um dos maiores entre os muito poucos que, hoje no
Brasil, podem ser chamados de poeta” - “abre uma fenda no guarda-sol
que fabricamos, por baixo do qual traçamos um firmamento e nele
escrevemos nossa tagarelice, nossos clichês, nossas opiniões; depois
rasga esse firmamento para fazer passar um pouco de caos livre e
tempestuoso e enquadrar, numa luz brusca, uma visão que aparece
através da fenda, e assim nos restitui a incomunicável novidade que
não podíamos mais ver”.
Porém é o próprio Roberval que, no seu
livro de ensaio A Unidade Primordial da Lírica Moderna, fornece a
chave para uma melhor compreensão de seus versos, ao afirmar que uma
das marcas da lírica moderna é o desnorteio da linguagem e do
leitor. Poderíamos acrescentar, citando Hugo Friedrich, que a
incompreensibilidade e a fascinação são duas características da
poesia moderna, que quando juntas “podem ser chamadas de
dissonância, pois geram uma tensão que tende mais à inquietude do
que à serenidade”.
É realmente o que faz a poesia
dissonante de Roberval Pereyr, longe de apascentar, inquieta, ao
invés de serenar, assombra e arrebata. Vejamos: No ritual dos
suplícios,/ vão chegando aos campos magros/ da alma/ os iludidos
(“Um e Muitos”); E o deus sou eu pelo avesso/ no centro oco dos
mitos (“Dueto”), Mas tudo só se move até o móvel/ ponto em que o
mistério assalta o mito/ e te ergue das sombras (“Condição”); um
homem, que é, senão/ a sucessão dos fracassos/ entre seu parto e seu
fim? (“Perspectiva”).
As imagens fortes, insólitas,
fantásticas também perpassam a poesia desse autor, doutor em Letras,
professor de Teoria da Literatura, da Universidade Estadual de Feira
de Santana: Venho pelas encostas/ com dez humanidades na capanga/ e
uma dor no dente cariado (“Meditação Com Rasuras”); Sou um cavaleiro
mago/ vagando às margens de um rio (“A Lenda”); Enquanto isso Deus
desfaz o mundo/ no fundo dos olhos da moça morta (“Ao Aedo Sem
Lira); Escavo essas imagens nos confins de um morto (“A Eterna
Peleja”), O tempo é uma louca velha/ delirando por dentro das
memórias (“Órbitas”); O espírito dos campos cabe num xaxim
(“Ecológicas Urbanas Nº 23”); Invento minha flor entre dois porcos/
e amanheço de óculos numa praça/oca (“Enredo”).
FÚRIA E LÍRICA - Mas é nas indagações
filosóficas, nos questionamentos existenciais e na descida da alma
abissal que Roberval Pereyr revela toda a força ontológica de sua
poesia, agora densa e eivada de dúvidas; nunca de certezas; antes de
melancólico ceticismo, em versos que chafurdam nesse rio das almas
perdidas, que nada mais é do que a frágil condição humana.
Mesmo acossado pelas fúrias
interiores, Roberval sabe também ser lírico, terno; suave,
nostálgico - Persigo a lembrança de um rosto/onde eu possa morar
(“Sussurro”); De ilegíveis aedos colho estas heranças (“Poema”);
Alguém me reconhece num retrato de menino./ Não sou eu: é minha
antiga paz (“Desmentido”); Não quero ser simples./ Uma flor não é
simples:/ é uma flor. E não cede (“Nudez”); Tens a idade da flor/
que em tudo cresce./ Teu corpo não se nomeia,/ teu corpo é leve
(“Miragem”); Esculpirei meus sonhos no teu rosto./ E no teu corpo/
eu traçarei de novo o meu destino (“Para Bárbara”); Infância é um
riacho/ azul/ no chão da alma (“Manancial”).
Ao encerrar a leitura de Amálgama (não
seria melhor Almálgama?) ficamos com a impressão de que Roberval
Pereyr escreve não para confortar ou dar respostas, mas para semear
ânsias, até porque, como ele mesmo diz em Retorno (Nas praias do
avesso), “é voraz a noite da memória”.
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