Eduardo Diatahy B. de Menezes
Das
classificações temáticas da literatura de cordel:
Uma querela inútil
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«...os códigos dominantes (...) e
a linguagem
universal do poder traduzem mal, ou não t
raduzem o cotidiano popular.»
Alfredo BOSI
Prefácio, in Carlos Guilherme Mota:
Ideologia da Cultura Brasileira, p. XV |
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«C’est toujours faire preuve de
colonialisme intellectuel
que de considérer les valeurs privilégiées de sa propre
culture comme des archétypes normatifs pour d’autres
cultures. Ce qui est seul normatif ce sont ces grands
assemblages pluriels des images en constellations,
en essaims, en poèmes ou en mythes.»
Gilbert DURAND
Les Structures Anthropologiques de l’Imaginaire, p. 11. |
1. INTRODUÇÃO
Um confronto crítico amadurecido pode
levar à rejeição da problemática proposta por estudiosos anteriores
e em particular pelos grandes iniciadores das pesquisas sobre nossa
narrativa popular em verso, mas sem que isso implique
necessariamente o não incorporar suas contribuições positivas ou o
não reconhecer seus méritos, que foram muitos.
Assim, sem recusar assumir uma posição
definida, desejaria, entretanto, evitar umas tantas querelas que
alimentam infindavelmente as discussões sobre a Literatura de
Cordel: estaria ela morrendo ou não estaria? qual a sua origem? como
categorizá-la como gênero literário? de que modo classificar os seus
materiais? como julgá-la: seria ela conservadora ou não?, etc....
Procurarei, pois, não me situar
exatamente nesse terreno minado, mas antes, desenvolver um esforço
no sentido de explicitar os pressupostos que subjazem às dimensões
desse espaço discursivo, centrando-me, para tanto, na questão das
classificações temáticas. Recuso-me, portanto, a aceitar o círculo
fechado de tais querelas mais ou menos inúteis e infecundas,
buscando introduzir outra perspectiva analítica que, muito embora
ainda apenas sugestiva, pretendo que assuma feição nitidamente
histórica. Acredito que esse percurso abriria o caminho para uma
hermenêutica inovadora e distante da tradicional reprodução da
mesmice.
2. DAS CLASSIFICAÇÕES
A quase unanimidade dos que se
debruçaram sobre a Literatura de Cordel - ou «Literatura Oral», como
querem Câmara Cascudo e outros folcloristas nas pegadas do estudioso
francês Paul Sébillot - propôs uma classificação por temas do
material que compõe esse gênero de produção da cultura popular
nordestina. Aliás, Leroi-Gourhan já havia advertido para o fato que
«se o documento mui freqüentemente escapa à História, não pode
todavia escapar à classificação.» [ - Cf.:
LEROI-GOURHAN, A.: Évolution et Technique, t. I: L’Homme et la
Matière. Paris: Albin Michel, 1943, p. 18. ]
Uma das raras exceções nesse domínio
foi a de Mário de Andrade que, em seu curto ensaio «O Romanceiro de
Lampeão», limitou-se a constatar, nisso porém simplificando
demasiadamente as coisas:
«O cantador nordestino tem duas formas
principais de poesia cantada: o Desafio e o Romance.» [ - O Baile
das Quatro Artes, 3ª ed. São Paulo: Martins / MEC, 1975, p. 87. ]
Nesse terreno, tudo se passa como se, à
primeira vista, o estudioso quisesse demonstrar a sua competência
rejeitando as tipologias dos demais e construindo a sua própria
classificação mediante alguns arranjos e acréscimos. Além disso, é
de bom tom fazer leve menção a classificações estrangeiras, como a
francesa (littérature de colportage) de Robert Mandrou(*), por
exemplo, ou a extensíssima classificação espanhola (literatura de
cordel e pliegos sueltos) de Julio Caro Baroja(**), as quais,
diga-se de passagem, não nos são de grande valia, pois se reportam a
materiais sob certos aspectos diversos do conjunto da nossa
literatura de cordel. [ (*) - Cf.: De la Culture
Populaire aux XVIIe et XVIIIe Siècles. La Bibliothèque Bleue de
Troyes. Paris: Stock, 1975. —— (**) - Cf.: Ensayo sobre la
Literatura de Cordel. Madrid: Revista de Occidente, 1969. ]
Assim, vamos encontrar classificadores
em Leonardo Mota, Câmara Cascudo (este se ocupa de material mais
vasto e variado que os demais), Manuel Diégues Jr., Alceu Maynard,
M. Cavalcânti Proença, Orígenes Lessa, Roberto C. Benjamin, Carlos
Alberto Azevedo, Hernâni Donato, Raymond Cantel, etc. E ainda posso
destacar dois outros casos curiosos. Um, o de Liedo Maranhão de
Souza(*), que tomou a sábia decisão de dar a palavra, na matéria,
aos poetas e agentes da Literatura de Cordel, produzindo algo que
tem o mérito de apresentar a linguagem e a visão do povo, mas que é
pouco útil como instrumento de análise por sua extensão e
inconsistência lógica (e, talvez, eu dissesse melhor: por sua
redundância). [ (*) - Cf.: Classificação Popular
da Literatura de Cordel. Petrópolis: Vozes, 1976.]
O outro exemplo se encontra em Ariano
Suassuna, que adota dois níveis ou gêneros de discurso, um erudito e
outro popular, propondo assim duas classificações bem diversas, que
reproduzirei a seguir em virtude de sua significação para os meus
objetivos neste ensaio. A primeira delas aparece, numa versão
refundida, na introdução que o escritor fez para a Antologia, tomo
III, volume 2, de Literatura Popular em Verso, da Fundação Casa de
Rui Barbosa: «reformulo a tentativa de classificação dos folhetos
nordestinos da seguinte maneira: 1) Ciclo heróico, trágico e épico;
2) Ciclo do fantástico e do maravilhoso; 3) Ciclo religioso e de
moralidades; 4) Ciclo cômico, satírico e picaresco; 5) Ciclo
histórico e circunstancial; 6) Ciclo de amor e de fidelidade; 7)
Ciclo erótico e obsceno; 8) Ciclo político e social; 9) Ciclo de
pelejas e desafios.»(*) Embora assemelhada às demais classificações
por temas, esta proposta de Suassuna (a "erudita") tem a vantagem de
sintetizar várias outras de uma forma talvez mais refinada, porém
desde logo comete omissões e acrescenta o equívoco de misturar numa
mesma tipologia pelejas e romances, que são produções de gênero bem
diverso. Outras inconsistências mais saltam à vista. Por exemplo, um
folheto sobre "Lampeão no Inferno" poderia, sem incoerência, ser
incluído em qualquer um dos quatro primeiros "ciclos" dessa
classificação. Portanto, aí se coloca de imediato a questão relativa
ao critério de escolha do tema dominante de um folheto dessa
natureza. Evidentemente, a resposta não pode estar sujeita à mera
subjetividade do estudioso. Mas tomemos outro exemplo para ilustrar
o argumento: um folheto como A Visita de Cancão de Fogo ao Inferno,
em que um anti-herói picaresco disputa com Lampeão o poder naquele
reino das sombras, complicaria mais ainda esse procedimento
classificatório por "ciclos" temáticos. [ (*) -
Op. cit., p. 6.]
Vejamos, porém, a segunda classificação
proposta por Suassuna. É apresentada no momento em que ele, usando
de um estratagema, fala por intermédio de João Melchíades, padrinho
da personagem central de seu Romance d'A Pedra do Reino, quando,
aliás, formula também uma tipologia de poetas populares: «O velho
João Melchíades ensinou-nos, ainda, que, entre os romances versados,
havia sete tipos principais: os romances de amor; os de safadeza e
putaria; os cangaceiros e cavalarianos; os de exemplo; os de
espertezas, estradeirices e quengadas; os jornaleiros; e os da
profecia e assombração. (...) Um dos tipos que eu mais apreciava
eram os de safadeza, subdivididos em dois grupos, os de putaria e os
de quengadas e estradeirices.». E quanto à tipologia dos poetas
populares, a personagem de Suassuna declara: «Existe o Poeta de loas
e folhetos, existe o Cantador de repente. Existe o Poeta de estro,
cavalgação e reinaço, que é o capaz de escrever os romances de amor
e putaria. Existe o Poeta de sangue, que escreve os romances
cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de ciência, que escreve
os romances de exemplo. Existe o Poeta de pacto e estrada, que
escreve os romances de esperteza e quengadas. Existe o Poeta de
memória, que escreve os romances jornaleiros e passadistas. E
finalmente, existe o Poeta de planeta, que escreve os romances de
visagens, profecias e assombrações.» [ Cf.: O
Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta -
romance armorial-popular brasileiro. Rio de Janeiro: José Olympio,
1971, pp. 58 e 68, e 183-184, para cada uma das tipologias
mencionadas.]
Parece óbvio que essa duplicidade
sinuosa adotada pelo escritor paraibano constitui um astuto
artifício que lhe permite assumir posições diferentes em face do
mesmo problema. Esse fato, porém, é assaz revelador das ambigüidades
inerentes à consciência infeliz do intelectual (a que se referia
Hegel), e da tensão agonística nas relações entre a cultura
dominante e a cultura subalterna que tento examinar nesta pesquisa.
Estranha observar como, mesmo
pesquisadores supostamente armados de melhor instrumentação teórica
e analítica - e aqui penso, por exemplo, no meu caro colega, Antônio
Augusto Arantes, que, em sua tese de doutorado em antropologia, na
Universidade de Cambridge, Inglaterra, incide nos mesmos equívocos
de outras tentativas semelhantes neste terreno escorregadio(*) - não
conseguem escapar dessa velha armadilha das classificações
temáticas, que vem levando os estudiosos das narrativas populares
para esse beco sem saída, desde o final do século passado.
[ (*) - Cf.: O Trabalho e a Fala (estudo
antropológico sobre os folhetos de Cordel). São Paulo: Kairós /
Funcamp, 1982, pp. 47-52. Consultar também o confuso capítulo em que
o estudioso alemão, Ronald DAUS, desenvolve sua concepção acerca dos
«grandes ciclos temáticos» (comportando cada um deles alguns «ciclos
secundários») da nossa Literatura de Cordel, em seu livro: O Ciclo
Épico dos Cangaceiros na Poesia Popular do Nordeste, col.
“Literatura Popular em Verso - Estudos, nova série, n.º 1”, Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1982, pp. 78-89. Merece
mencionada ainda a tese de Mª José F. LONDRES, que procura renovar
os critérios de classificação inspirando-se em PROPP e nas
categorias formais de gêneros literários, embora resulte num
trabalho parcial ou incompleto: Cordel: do encantamento às histórias
de luta, São Paulo: Duas Cidades, 1983.]
Mais estranham ainda essa insidiosa
persistência classificatória e o seu apego à invencionice dos
"ciclos" temáticos, quando, já em 1928, vinha à luz o estudo
inovador de Vladimir Iakovlevitch Propp - que pertenceu ao grupo dos
formalistas russos -, sobre a análise morfológica dos contos
populares(*). Nessa obra, embora reconhecendo desde o início, como
bom estruturalista, a necessidade de começar o trabalho analítico
por um procedimento classificatório correto dos materiais coletados,
acrescenta um reparo crítico fundamental: [ (*) - Cf.:
Morphologie du Conte, suivi de «Les transformations des contes
merveilleux». Paris: Poétique/Seuil, 1973.]
«Uma classificação exata é um dos
primeiros passos da descrição científica. Da exatidão da
classificação depende a exatidão do estudo ulterior. Todavia, posto
que a classificação tenha o seu lugar na base de todo estudo, ela
própria deve ser o resultado de um exame preliminar aprofundado.
Ora, é justamente o inverso que podemos observar: a maioria dos
pesquisadores começa pela classificação, introduzindo-a de fora no
corpus quando, de fato, deveriam deduzi-la a partir deste.»
[ - Cf.: Op. cit., p. 12. Os
meus comentários, que se seguem a essa citação, estão baseados nas
reflexões de PROPP, na mesma obra, pp. 12-27.]
Logo em seguida, submete as diferentes
propostas de classificação por temas ou assuntos a uma crítica
simultaneamente severa e esclarecedora, onde fica ressaltado, por um
lado, que o princípio de permutabilidade - segundo o qual partes
constitutivas de uma história podem ser transpostas para outras
histórias - constitui uma das características das narrativas
populares; e que, por outro lado, nenhum princípio rigoroso preside
à escolha dos elementos dominantes de uma história que permita a sua
classificação num ciclo temático. Além disso, o assunto ou tema não
constitui uma unidade elementar, mas um complexo; ele não é
constante, mas variável; e tomá-lo como ponto de partida no estudo
das narrativas populares é praticamente impossível. Assim, levando
em conta esses aspectos ou princípios básicos, força é reconhecer
que tais classificações, tão caras à nossa tradição letrada quando
se trata de aplicá-las às manifestações da cultura popular, sempre
alteram a natureza do material estudado.
A historiadora francesa, Geneviève
Bollème, que dedicou vários anos de pesquisa ao exame do acervo da
littérature de colportage (literatura popular em livretos, mui
semelhante à nossa sob certos aspectos) - a conhecida Bibliothèque
Bleue de Troyes - , numa de suas obras sobre o assunto, observa que
a classificação por temas, variando segundo os autores, «vai de
treze a vinte e seis gêneros!»; e propõe sua própria tipologia por
ordem de importância das categorias: (I) assuntos religiosos; (II)
histórias romanceadas; (III) "atualidades"; e (IV) facécias. Além
disso, ela sublinha o fato que essa classificação só é válida para o
fundo disponível em meados do século XVIII, e que, analisado esse
material noutros períodos, as variações são evidentes. Conclui
dizendo que tal ordenamento temático foi por ela tentado inúmeras
vezes, porém lhe pareceu necessário a ele renunciar. [ - Cf.: La
Bible Bleue -- anthologie d’une littérature “populaire”. Paris:
Flammarion, 1975, p. 35. É pertinente observar que a autora, em seu
trabalho, faz certa confusão entre tema e gênero. ]
Ora, se — conforme termina afirmando a
historiadora — esse tipo de classificação é praticamente impossível
no caso dessa literatura constituída por um corpus mais ou menos
fixo e cuja produção estancou historicamente há mais de um século,
que dizer então de nossa Literatura de Cordel, que mantém ainda
certo alento e transformação pelo menos nalguns poucos focos
criativos? Além do mais, todas as classificações temáticas tentadas
para a nossa Literatura de Cordel jamais chegaram a abarcar seu
corpus inteiro, mas apenas o acervo que cada autor logrou coletar ou
examinar, não indo em geral além de algumas centenas de folhetos; o
que, reconheçamos, é muito pouco face às exigências da tarefa e
constitui assim muito mais um viés introduzido pelas preferências do
pesquisador. Mesmo se conseguíssemos juntar todas as coleções
disponíveis, o fundo assim constituído não passaria de uma simples
parcela de seu corpus total. Entretanto, não reside nessa
dificuldade a questão fundamental.
Em excelente artigo sobre nossa
Literatura de Cordel, Paul Zumtor, conhecido especialista em poética
medieval, acredita poder reduzir todas as classificações propostas
até o presente a um esquema geral que comporta dois grandes
conjuntos temáticos:
«as diversas classificações que têm sido
propostas, dessa literatura, distinguem nela essencialmente dois
grupos de textos: um, com dominante ética, cujas narrativas têm por
finalidade declarada expor graças e desgraças, méritos ou deméritos,
desta ou daquela personagem típica, ou de uma categoria social, por
vezes de uma região ou de certa cidade; o outro, com dominante
heróica, narra as aventuras de indivíduos históricos ou legendários
(do Presidente Kubitschek ao Boi Misterioso) com cujo destino o
conjunto dos leitores ou ouvintes é virtualmente convidado a
identificar-se.» [ - Cf.: «L’Écriture et la Voix» (d’une
littérature populaire brésilienne), Critique, Paris, t. XXXVI, nº
394, mars 1980: 228-239. [O trecho citado vem à p. 236 ]
Mas, como é fácil de verificar,
trata-se de evidente simplificação - cujas subdivisões apontadas
pelo autor revelam já a sua pouca pertinência - dos variados
caminhos percorridos pelo imaginário popular nessa particular forma
de expressão simbólica, simplificação que não faz avançar em quase
nada o nosso conhecimento da matéria. E tudo retorna ao
questionamento inicial.
Portanto, é chegado o momento de
indagar: que é de fato que caracteriza tais classificações?
Todas elas pretendem propor um esboço
de análise temática da Literatura de Cordel, e supõem, com alguma
"inocência", que os temas identificados se dão por si mesmos. E o
que é mais estranho: todos eles se inserem em "ciclos"! Ora, que
está subentendido na afirmação da existência de "ciclos temáticos"
tais como: maravilhoso, fantástico, heróico, demônio logrado, amor e
fidelidade, etc.? Certamente, eles definem muito menos o conteúdo
dessa literatura popular do que o olhar que sobre ela esparrama o
erudito(*). Por outro lado, quase todas essas classificações
utilizam, explícita ou implicitamente, o conceito de ciclo de uma
maneira que me parece pouco adequada. Na verdade, esse conceito
define melhor uma série de obras, de uma época, de uma ou mais
literaturas, girando em torno de um mesmo tema ou personagem, o que
constitui assim a sua legenda. Além disso, ele tem sido utilizado de
preferência para caracterizar especificamente a novelística medieval
(e mais particularmente ainda as novelas de cavalaria), em seus três
ciclos fundamentais: o bretão ou arturiano, o carolíngio e o
clássico. Usá-lo, porém, para boa parte dos produtos da Literatura
de Cordel é evidentemente uma incongruência, pois assuntos como os
que vêm narrados, por exemplo, em folhetos chamados «de
circunstância, de acontecido ou de época», por definição, não
circunscrevem um tema único ou central. [ (*) -
Cf.: DE CERTEAU, Michel: «La Beauté du Mort» (ensaio escrito com a
colaboração de Dominique Julia e Jacques Revel), in La Culture au
Pluriel, col.”10/18”, Paris: UGE, pp. 74-75, que apresenta agudo
comentário crítico dessa tendência classificadora por tema.]
Finalmente, atravessa todas essas
classificações certa dose de a-historicidade, já que pressupõem a
Literatura de Cordel como corpus acabado e fixo; portanto, sem uma
seqüência temporal significativa decorrente de mutações
socioculturais abrangentes e de transformações sofridas por seus
grupos criadores e consumidores. É bem verdade que alguns de seus
temas são mais ou menos trans-históricos e, em certos sentidos,
transculturais(*). Mas é igualmente verdadeiro que eles sofreram, no
Nordeste, relevante processo de transformação e adaptação.
[ (*) - Já em sua obra de 1928, Vladimir I. PROPP
propunha esta questão intrigante que, em seguida, ocupou-lhe a
atividade de pesquisa por vários anos, a saber, o problema da
semelhança dos contos populares no mundo todo: «Como explicar -
indagava ele - que a história da rainha-rã na Rússia, na Alemanha,
em França, na Índia, entre os índios da América e na Nova-Zelândia
se assemelhe, visto que nenhum contacto entre esses povos pode ser
historicamente provado?» [op. cit., p. 27]. Foi na tentativa de
fornecer uma resposta a essa questão que ele publicou, quase 20 anos
depois (1946), outra obra capital: Les Racines Historiques du Conte
Merveilleux. Paris: Gallimard, 1983.]
Obviamente, não pretendo concluir estes
comentários sucintos ampliando ainda mais a já longa lista de
classificações propostas. Ao contrário, imagino que uma via de
superação desse impasse seria a formulação, analiticamente mais
consistente e empiricamente mais consentânea, de uma caracterização
de perfil decididamente histórico, que entendesse a noção de «ciclo
temático» noutra perspectiva bem diversa da adotada até agora.
Propor uma classificação ou tipologia é deduzir uma estrutura
conceptual, ordenada segundo certas regras lógicas, de uma
determinada realidade heterogênea. E já que, no caso de que me
ocupo, trata-se de algo que sofreu e sofre ainda um processo de
mutação, sugiro, a título de hipótese, que a Literatura de Cordel
seja apanhada analiticamente por suas etapas históricas mais
relevantes, e caracterizada pelas temáticas predominantes em cada
uma delas. Não, evidentemente, segundo o modelo da literatura
"culta" (classicismo, arcadismo, romantismo, realismo, simbolismo,
etc.), nem pela tradicional listagem de "ciclos" já aqui examinada e
criticada.
Portanto, a partir de uma bem fundada
reconstituição histórica de nossa Literatura de Cordel, seria
possível identificar pelo menos três períodos bem característicos,
embora sem pretender sugerir alguma linearidade temporal na
seqüência desse processo, visto que seus tempos históricos se
acumulam ou se condensam, havendo assim superposição de movimentos.
Apenas a título provisório - pois, conforme assinalei, faz-se
necessário um estudo histórico sistemático, que não realizei nem
pretendo fazê-lo, mas que indico a outros pesquisadores com mais
paciência e argúcia, estudo que ultrapasse os limites de uma
história estritamente interna dessa produção simbólica e
contextualize o seu desdobramento em relação à totalidade da
história sociopolítica do país nesses períodos - menciono o que se
segue como meras indicações para a pesquisa que lhe venha a dar
fundamento e maior significação:
(I) — O primeiro período apresenta-se
com a aparência de uma recusa da história: boa parte dos textos
dessa época concentram-se em torno da velha tradição medieval dos
romances de cavalaria e, de modo mais específico, gravitam à volta
da figura de Carlos Magno e de seus Pares. Graciliano Ramos
testemunha esse interesse de nossas populações rurais de forma
incisiva:
«Quando o nosso matuto tem um filho
opilado e raquítico, manda domesticá-lo a palmatória e a murro. O
animal aprende cartilha e fica sendo consultor lá no sítio. Torna-se
mandrião, fala difícil, lê o Lunário Perpétuo e o Carlos Magno, à
noite, na esteira, para a família reunida em torno da candeia.» [
- Cf.: Caetés. São Paulo: Martins, 7ª ed., 1965, p. 140. Seria
interessante assinalar o fato de que Graciliano RAMOS menciona em
seu comentário duas das obras principais daquilo que constituía o
acervo do que se poderia chamar a ‘Biblioteca do Sertão’. Câmara
CASCUDO rastreou esse acervo com muita argúcia e minúcia
bibliográfica de que dou aqui apenas o resumo: «Há uma série de
livros indispensáveis para o cantador. Os mais letrados já
denominaram esse conjunto de conhecimentos de “ciência popular”.
(...) Que livros serão esses? Têm os livros básicos, infalíveis e
inamovíveis, e os velhos romances portugueses, outrora parafraseados
e sempre lidos nos sertões. As principais fontes da erudição da
cantoria são: O Lunário Perpétuo, (...). Missão Abreviada (...).
História do Imperador Carlos Magno, e dos Doze Pares de França,
(...). Dicionário da Fábula e Manual Enciclopédico, (...). Donzela
Teodora, (...). Princesa Magalona, (...). Imperatriz Porcina, (...).
Roberto do Diabo, (...). Miseno, ou Feliz Independente do Mundo e da
Fortuna, (...).» [Cf.: Vaqueiros e Cantadores. Folclore poético de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Porto Alegre:
Globo, 1939, pp. 91-95.]
Mas, voltando à caracterização do
período, é mister assinalar que os folhetos de então incluíam também
outros temas da velha novelística e sobretudo algo inteiramente novo
e nascido aqui como foi a legenda do boi indomável e misterioso, bem
como de seu respectivo opositor, nesse combate, que foi o vaqueiro
destemido, com seu valoroso cavalo. Assim, por um lado, suas
personagens tendiam a ser trans-históricas e arquetípicas, com forte
dose de maravilhoso e de fantástico, e, por outro lado, o conjunto
dessas narrativas parecia desempenhar uma função catártica de levar
poetas e leitores-ouvintes a não se defrontarem com sua real
situação proveniente do legado colonial e escravista.
Esse termo recusa da história, no
entanto, exige um esclarecimento adicional que evite mal-entendidos.
Não se pretende afirmar com ele que o poeta popular desse período -
e o seu público, obviamente - alheava-se num longínquo passado
porque fosse indiferente à trama histórica de seu tempo, mas sim,
que ele se recusa a contar uma história de que está nitidamente
excluído, preferindo assim reproduzir uma tradição popular de que
simbolicamente participa ou de que é solidário por se sentir
identificado com alguns de seus protagonistas, ainda que no plano da
fantasia ou de sua mito-lógica. Recusa, no caso, significa portanto
o simétrico da excludência. É óbvio, pois, que essa poesia popular
também narrou alguns fatos e acontecimentos de seu tempo. Mas a
predominância e a persistência da temática carolíngia, do universo
da aventura cavalheiresca e do combate heróico constituem um fato,
conforme observa lucidamente Walnice Galvão(*), que «é compreensível
e aceitável por ser o único modelo histórico de que dispõe a plebe
rural, que não tem história, para mais ou menos objetivar o seu
destino. Aí, História e estória se confundem para o sujeito em busca
de uma concepção de si mesmo e de sua vida.» [ (*)
- Cf.: As Formas do Falso. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 57. Mas
é preciso salientar que Walnice N. GALVÃO sublinha explicitamente o
fato que essa tradição popular possui caráter diverso daquela
“medievalização” do sertão que constitui moeda corrente na tradição
letrada brasileira: na historiografia, na crônica, nos memoriais,
nos estudos folclóricos e na ficção. Nessa perspectiva, ver a obra
de Silvano PELOSO: Medievo nel Sertão. Tradizione medievale europea
e archetipi della litteratura populare del Nordeste del Brasile.
Napoli: Liguori Editore, 1984. A esse mesmo propósito, creio que
seria oportuno lembrar uma observação de Richard M. MORSE. Relata
ele que, tendo sido convidado a revisar um trabalho de pesquisa por
questionário realizado no Brasil por um grande centro acadêmico
norte-americano, deparou-se com uma questão que pedia para
identificar o presidente do país, a que uma velha camponesa
analfabeta respondeu “Pedro Álvares Cabral”. Entre outras reflexões
críticas ao espanto daqueles pesquisadores que, no entanto, eram
incapazes de escrever corretamente o nome do presidente do Brasil
neste momento, MORSE destaca o fato de Cabral ser uma personagem de
grande significação simbólica, e comenta: «A persistência de seu
nome na imaginação popular durante cinco séculos me sugeria menos
uma “falta de informação” que um maduro sentido da história (...).
No Brasil, onde os reclamos do passado são tão insistentemente
visíveis, onde a Chanson de Roland ainda é recitada em versões
locais pelos sertões, o nome de “Cabral” parece muito mais
expressivo que o de um anônimo tecnocrata militar que por
casualidade está biologicamente vivo.» [cf.: El Espejo de Próspero.
Un estudio de la dialéctica del Nuevo Mundo. México: Siglo Veintiuno,
1982, p. 188 - grifado por mim]. Faço um reparo ao evidente engano
do historiador norte-americano: não se trata por certo da Chanson de
Roland, mas da história de Carlos Magno. O deslize factual não
retira, porém, o valor de seu argumento.]
(II) — O segundo período é o da clara
aceitação da história, ou talvez, mais precisamente, o da
incorporação nela do herói popular nordestino, tipicamente rural,
embora já se inicie desde então um processo de urbanização de temas
e personagens. Nesse período, predominam os textos em que vários
grandes poetas populares - a partir de seu peculiar ângulo de visão
e segundo o princípio da verossimilhança de que já falava
Aristóteles em sua Poética - narram a história que se desenrola sob
o seu olhar atento, mediante a gesta dos cangaceiros famosos, as
histórias de «valentes» que enfrentam e derrotam simbolicamente os
potentados rurais (os "coronéis"), ou o desempenho e as vicissitudes
de líderes religiosos(*). Não obstante, apesar de ser essa a
produção predominante nesse período, é evidente que outros temas
menores ou circunstanciais ocupavam o interesse dos poetas, do mesmo
modo que os folhetos de maior popularidade do período anterior
continuavam a ser reimpressos abundantemente. [
(*) - Sobre esse período e a sua produção principal, o melhor
trabalho ainda é a tese de uma colega morta prematuramente - Ruth
Brito Lemos TERRA: Memória de Lutas - Literatura de Folhetos no
Nordeste (1893-1930). São Paulo: Global, 1983 -, que, além disso,
teve a lucidez de não ceder à mania das classificações temáticas e
encarou a problemática dessa literatura numa perspectiva
deliberadamente histórica, posto que parcial. Em trabalho anterior,
ela havia explorado no estudo dos folhetos de Cordel as
possibilidades metodológicas da análise estrutural proposta por
Valdimir I. PROPP para o conto maravilhoso [cf.: TERRA, Ruth B. L. e
ALMEIDA, M. B. de: «A análise morfológica da literatura popular em
verso - uma hipótese de trabalho», Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros (USP), São Paulo, n.º 16, 1975] ]
(III) — Por fim, o período mais
recente, que parece caracterizar-se pelo predomínio de folhetos que
contam a história acontecimental do presente, revelando vários
sintomas de ruptura da unidade e da identificação de suas velhas
matrizes sociais criadoras, bem como de sua crescente "folclorização".
Com efeito, as transformações socioeconômicas das últimas décadas
modificaram intensamente certos aspectos do meio onde se gerava e de
onde emergia essa produção simbólica, reduzindo seu relativo
isolamento cultural e ampliando a sua inserção em novos códigos e
relações sociais mais típicos da modernização atingida pelos setores
dominantes da sociedade nacional.
3. OBSERVAÇÕES FINAIS
Uma pesquisa, repito, que se orientasse
nessa direção e fundamentasse uma caracterização de corte histórico
desse gênero de produção poética, — caracterização que poderia
resultar diferente da que apresentei aqui, assim como poderia dar
maior precisão aos marcos de sua periodização — teria pois a
vantagem de evitar o caráter punctual das inúmeras tipologias
tentadas até hoje(*) e de propiciar uma compreensão mais ampla desse
processo criativo mediante sua articulação com as condições
concretas da sociedade inclusiva, sem negar as especificidades de
tais práticas significantes como produto do imaginário do povo. Mas
enfim, a razão talvez esteja do lado do poeta pernambucano, Marcus
Accioly, na apresentação do Álbum de Xilogravuras de Amaro
Francisco, editado pela Secretaria de Educação e Cultura do Estado
de Pernambuco, quando declara: [ (*) - Vale
assinalar, de passagem, a posição ideológica e discriminadora dos
que utilizam esse procedimento, visto que em geral as produções da
“grande literatura” não são submetidas a esse mesmo tratamento
classificatório por temas ]
«Mas sua história-estória o povo não
escreve: faz, conta. Faz e conta, faz-de-conta, faz e canta.»
Que fique claro, pois, desde logo, o
sentido de minha posição no caso em tela: não atribuo nenhum valor
de verdade definitiva a esses três períodos acima qualificados.
Apenas formulo uma hipótese de trabalho, de que a posterior
investigação comprovará a fecundidade e o alcance. E, como toda
hipótese que tenciona orientar o trabalho científico deve
submeter-se a contraprovas, forneço de saída pelo menos um exemplo
que aponta talvez na direção oposta àquela com que caracterizei a
primeira das três fases mencionadas. Com efeito, na «Memória» por
Antônio Áttico de Souza Leite, publicada pela primeira vez em 1875
no Rio de Janeiro e reimpressa em Juiz de Fora, em 1898, e
posteriormente reproduzida na Revista ao Instituto Arqueológico e
Geográfico de Pernambuco(*), o autor dá notícia de um folheto
impresso, de cunho sebastianista, que, em 1836, circulava no alto
sertão pernambucano de Serra Talhada. A esse mesmo folheto, seguindo
a mesma fonte, Ariano Suassuna faz referência em seu Romance d'A
Pedra do Reino. Todavia, é provável que ele tenha sido produzido e
publicado em Portugal. [ (*) - Cf.: «Memória sobre
A Pedra Bonita ou Reino Encantado, na Comarca de Villa Bella,
Província de Pernambuco», Revista do Instituto Archeologico e
Geographico de Pernambuco, Recife, Tomo. XI, 1903-1904, pp. 216-248.
]
Como quer que seja, em sua clássica
História da Literatura Brasileira, cuja primeira edição (1888) já é
velha de mais de um século, o agudo observador de nossa produção
cultural erudita e popular, que foi Sílvio Romero, sublinhava a
questão intrigante disso que chamei recusa da história por parte das
camadas populares em suas criações simbólicas. A despeito de sua
particular inclinação de folclorista, declarava o crítico sergipano:
«Um fato digno de estudo observamos sempre nas investigações a que
procedemos no terreno do folclore nacional: a falta de criações
relativas aos acontecimentos de nossa história e de nossa política.»
Contudo, após reconhecer que essa ausência não era completa e depois
de comentar alguns poucos exemplos, ele continuava em suas
observações, que transcrevo extensamente por seu valor analítico e
antecipador: «Os sertanejos, em cujos centros floresce o banditismo,
conhecem-lhe os tipos principais, que se distinguem por suas
façanhas. (...) Temos por assentado, pois, que nem as cenas do
povoamento primitivo do país nos séculos XVI e XVII, nem as façanhas
dos bandeirantes, nem as guerras dos holandeses e franceses, nem as
dos espanhóis no Sul, nem as lutas dos Mascates e Emboabas, nem as
cenas da mineração, nem mesmo a Independência, nem as guerras da
Cisplatina, do Prata e do Paraguai - determinaram a produção de
ciclos poéticos às nossas musas populares. (...) As guerras dos
Mascates, dos Emboabas, dos Palmares, nada inspiraram que se tivesse
conservado na tradição.» Assim, face a esse elenco de fatos e
personagens da nossa história oficial, «das grandes massas incultas
vinha o silêncio, a indiferença. (...) Já se vê, portanto, que não
foram só os nossos grandes tipos da história da colônia que nada, ou
quase nada, inspiraram às musas populares. Os homens e os feitos da
fase imperial e dos dias da República acham-se em idênticas
circunstâncias.» Finalmente, ele propõe a pergunta e esboça a seguir
sua resposta explicativa: «Qual a razão dessa pobreza, desse quase
mutismo da inspiração anônima do povo brasileiro, pelo que toca à
sua história política? A resposta não é difícil. Desde os primeiros
tempos da constituição de nossas populações, estas se viram sempre
segregadas em grupos, esparsas e separadas entre si. Circunstância
era esta já por si suficiente para dificultar a formação de uma
forte consciência coletiva, um vivaz sentimento de nacionalidade.
Não foi só isto: uma administração compressora e rapace habituou o
nosso povo, desde suas origens, a considerar com maus olhos a
governança e tudo que com ela se relaciona. Os chamados aspectos
políticos não podiam escapar a esse desprestígio, a essa falta de
simpatia. (...) Arredadas de toda e qualquer coparticipação na
gerência de seus destinos, habituaram-se a ver os negócios nacionais
manipulados na Capital pelo grupo a isto afeito desde os primórdios.
(...) Nos altos sertões, as gentes pastoris, na grande liberdade do
seu viver, ao contacto direto da natureza, nos largos descampados,
circulados pela belíssima perspectiva das serranias longínquas, são
as únicas que ainda descantam as façanhas dos seus heróis. Estes
são, porém, os bandidos famosos por seus feitos de valentia, ou os
bois, célebres por sua destreza.» [ - Cf.:
História da Literatura Brasileira, 4ª ed., Tomo Primeiro. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1949, pp. 152-162. O texto de onde retirei a
citação não pertence à edição original, foi ajuntado muito
posteriormente. ]
Esse fato que Sílvio Romero constatou e
analisou com lucidez em seu tempo, mas pretendeu generalizar
excessivamente para o período posterior, não parece ter mantido
então esse mesmo perfil. Na verdade, nossa Literatura de Cordel,
conforme assinalei antes, entra no período seguinte numa fase de
franca aceitação da história. [ - Ver a esse
respeito a recente publicação: O Cordel, Testemunha da História do
Brasil, col. «Literatura Popular em Verso - Antologia / Nova Série,
n.º 2». Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987. Ou mesmo
um livro mais antigo, organizado por Pedro CALMON: A História do
Brasil na Poesia do Povo. Rio de Janeiro: A Noite, s/d.(1949; de que
o autor deu uma 2ª edição aumentada: Rio de Janeiro: Edições Bloch,
1973). ]
Fortaleza, 10 de outubro de 1994
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