Eduardo Diatahy B. de Menezes
Morre
Calasans, a memória viva da história de Canudos
Quando a nossa existência individual
se prolonga, seguimos pela vida a acumular perdas de relações amigas
que se vão. Foi assim, agora, com este velho amigo, mestre e
companheiro na mesma paixão pela história do Sertão e a de Canudos
em especial. Às 22h00 do dia
28
de maio, em sua residência em Salvador, faleceu José Calasans
Brandão da Silva (1915-2001), com 86 anos incompletos e 55 anos de “canudologia”:
perdemos a memória viva da história de Canudos, de sua guerra, de
sua gente e de seu líder, de sua utopia sertaneja e cristã.
Estudioso que alimentou a chama sagrada da busca pela veracidade de
uma história de oprimidos tão vilipendiada pelos discursos sapientes
e por uma historiografia tradicionalista. Seu empenho decidido deu
alento a inúmeras gerações de pesquisadores que, felizmente, têm
enriquecido os rumos que ele trilhou, ampliou e iluminou.
Cineasta e pesquisador baiano, que
dirigiu Paixão e Guerra no Sertão de Canudos e que
mantém na Internet uma das páginas mais ricas de documentação sobre
Canudos, Antônio Olavo foi quem me deu a notícia por essa via. Curta
nota de solidariedade. No meu espanto, escrevi-lhe pedindo
pormenores. No dia seguinte, ele dizia que Calasans vinha mal há
tempo, lembrava o derrame que tivera há uns 8 ou 9 anos e as crises
de depressão que o acompanharam desde então, mal penoso quando vem
na juventude e tanto mais duro ainda na vetusta idade. (Sobre isso,
recordo que de duas vezes em que ele se comprometeu a participar
como conferencista em seminários sobre Canudos, promovidos aqui na
Universidade Federal do Ceará, em 1993 e 1997, por ocasião dos
centenários da fundação e da destruição de Belo Monte, ele não
compareceu por acometido dessas crises). A família instalara uma UTI
dentro de casa para cuidar dele a toda hora. Na noite do dia 28,
adormecera definitivamente.
No dia 31 de maio, foi lançado em
Salvador um livro dedicado a Calasans, Os Intelectuais e Canudos,
organizado por Manoel Neto e Roberto Dantas, e que lhe foi entregue
dois dias antes de sua morte. Sua filha Madalena, psicóloga que mora
no Rio, estava presente e comentou: «foi a última grande emoção que
ele teve em vida».
Imediatamente, enviei a notícia para
vários colegas, dentre os quais Eduardo Hoornaert, Ralph Della Cava
e Idelette Muzart. Esta, professora da Universidade de Paris X –
Nanterre, coordena uma lista de discussão sobre Brasil-França na
Internet, espalhou a notícia aos quatro ventos e lembrou um fato
curioso que mostra bem o espírito brincalhão de mestre Calasans: em
janeiro de 1986, quando participávamos do Encontro de Laranjeiras –
próxima de Aracaju, esta cidade é promotora desse evento que
congrega estudiosos da cultura popular – cujo homenageado daquele
ano era justamente o professor Calasans. No discurso de abertura, o
Prefeito da cidade dirigiu-se a ele com expressões como «o grande
setuagenário!», «o ilustre setuagenário», «o nosso setuagenário»,
etc. Calasans, sentado na primeira fila do auditório, ao lado de
Idelette, comentou para ela em voz bem clara: «Se este homem ainda
insistir em me chamar de velho, eu vou xingar a mãe dele!». Por
certo as risadas da primeira fila encurtaram a oratória prefeitoral.
Participei desse Encontro, que durou
3 ou 4 dias. A manhã do sábado foi livre. Calasans me convidou a
acompanhá-lo numa caminhada pelo Mercado Central. Ele era sergipano
e nascera em Aracaju, no dia 14 de Julho, data nacional da França,
em que esta comemora sua Revolução. Mas Calasans, com seu
temperamento afetuoso e convivial, nada tinha de revolucionário, mas
antes de missionário das coisas de nossa história. A despeito do
volume de trabalhos que publicara, Calasans era sobretudo um homem
de fala rica e sábia, arrimado em prodigiosa memória. Recordo ainda
de nossa longa conversação em que discutíamos sobre vários temas em
torno de Sílvio Romero, de sua polêmica com Teófilo Braga, etc. Mas
recordo, sobretudo, que Calasans em meio aos corredores do mercado,
parava a toda hora para trocar conversa animada com a gente do povo
e, em várias barracas, ia comprando uns martelinhos de madeira bem
torneados – semelhantes a esses que usa um Juiz – e em seguida os
enfiava no enorme bolso de seu paletó. Intrigado, indaguei-lhe sobre
o significado daquilo. E ele de pronto explicou: «Esses martelinhos
só existem aqui em Aracaju. Nos sábados, reúno em minha casa, em
Salvador, a turma do Instituto Histórico para tomar cerveja e comer
caranguejo. Vou fazer esse regalo aos colegas!».
Era esse o homem que conheci, bom
amigo e desprendido, que distribuía generosamente seus conhecimentos
com todos. E eu poderia narrar inúmeros fatos pitorescos de
manifestações semelhantes do seu gênio bem humorado. Mas prefiro
registrar que participavam também do Encontro dois outros velhos
amigos que já se foram: Cândido Procópio Ferreira de Camargo e
Thales de Azevedo.
Todavia, conheci Calasans num outro
grande evento, um debate memorável para os estudiosos da história de
nossos movimentos populares. Refiro-me à Reunião da SBPC, em Recife,
no ano de 1974, na mesa-redonda sobre Canudos e temas correlatos, de
que participaram vários amigos: José Calasans, Thales de Azevedo,
Duglas Teixeira Monteiro, Walnice Galvão e Ralph Della Cava. Destes
amigos e companheiros de jornada, só os dois últimos permanecem
vivos, pesquisando e publicando. Por coincidência, acaba de sair, em
maio, um ensaio de Walnice Nogueira Galvão, com dedicatória
justamente a José Calasans: O Império do Belo Monte – vida e
morte de Canudos, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo,
2001.
Do mesmo modo que Idelette Muzart,
Eduardo Hoornaert me respondeu de imediato com este comentário:
«Lamento com você a morte do mestre Calasans. Eu o chamo de ‘o
Tucídides de Canudos’, pois como Tucídides superou Heródoto em
separar o rigorosamente histórico (baseado em depoimentos e
'história oral' avant la lettre) do mítico e lendário,
Calasans começou a trabalhar Canudos além do 'mitológico' de
Euclydes da Cunha. Isso até agora não está claro entre os estudiosos
de Canudos e da história do Brasil em geral.»
Calasans fizera seu curso secundário
no Ateneu Sergipense. Bacharel em 1937, pela Faculdade de Direito da
Bahia, volta à sua cidade, ensina no Colégio Estadual de Sergipe e
torna-se catedrático da Escola Normal Rui Barbosa. Fixa, a partir de
1947, residência definitiva em Salvador. Ensina na Universidade
Católica e na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia. Pelo
velho regime, em 1951, faz concurso de Livre-Docência de História do
Brasil nessa Faculdade, onde defende a tese: O Ciclo do Bom Jesus
Conselheiro. Conquista depois, nessa mesma Faculdade, a cátedra
de História Moderna e Contemporânea mediante concurso em que é
aprovado na defesa da tese Os Vintistas e a Regeneração Econômica
de Portugal, em 1959. Chefiou por muito tempo o Departamento de
História dessa Faculdade, de que foi Diretor nos anos de 1974 e
1975; e, de 1980 a 1984, ocupou o cargo de Vice-Reitor da UFBA. Foi
membro atuante do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e da
Academia de Letras da Bahia, e dirigiu, até recentemente, o Museu
Eugênio Teixeira Leal – Memorial do Banco Econômico.
Como iniciara desde jovem suas
pesquisas folclóricas e históricas sobre o tema de sua predileção,
ao casar pilheriou com o nome de sua mulher, Lúcia Maciel, dizendo
ao sogro: «Até que enfim vou ter alguém na família com o
sobrenome do Conselheiro.» Em perfeita harmonia com esse
espírito brincalhão, Calasans era um pesquisador sério e inovador.
Com efeito, bem antes de se tornar um procedimento sistemático da
historiografia moderna, ele superou a versão oficial e tradicional
sobre Canudos, não só vasculhando ampla documentação nos arquivos da
Bahia, Sergipe, Pernambuco e Ceará, bem como nas trilhas e povoados
dos sertões que percorreu longamente, mas sobretudo reconstituindo a
sua história oral, colhida de remanescentes e combatentes do
Arraial do Belo Monte. Dava maior valor a esses testemunhos vivos e
zombava de dados pretensamente rigorosos: «Estatísticas de guerra –
dizia ele – são iguais a estatísticas de comício.» Eu próprio
troçava com ele, dizendo que na confraria dos estudiosos de Canudos:
da Bahia para o Sul, eles são euclydianos; da Bahia para o Norte,
somos conselheiristas. E ele sempre sublinhava que Euclydes da
Cunha, em sua obra-prima, trancara Canudos numa gaiola de ouro.
Calasans era um investigador
infatigável. E foi divulgando os resultados de seu labor em artigos
e ensaios, que espalhou por inúmeros periódicos no Brasil e no
exterior. Desde os anos 50, saiam seus primeiros livros e opúsculos
sobre essa temática: em 1950, o mencionado O Ciclo Folclórico do
Bom Jesus Conselheiro – contribuição ao estudo da Campanha de
Canudos (Salvador: Tipografia Beneditina); em 1952, A Guerra
de Canudos na Poesia Popular (Salvador: Centro de Estudos
Baianos) – sobre o assunto, ele dará depois um estudo mais amplo,
Canudos na Literatura de Cordel (São Paulo: Ática, 1984); em
1957, saiu Euclydes da Cunha e Siqueira Menezes
(Aracaju: Movimento Cultural de Sergipe); enfim, em 1959, enfeixando
alguns dos ensaios anteriores e contendo outros novos, como o
curioso estudo «As Mulheres de Os Sertões», publicou o livro
No Tempo de Antônio Conselheiro – figuras e fatos da
Campanha de Canudos (Publicações da Universidade da Bahia).
Nesta obra, apresenta de forma sistemática a primeira bibliografia
comentada dos estudos sobre Canudos e dá, em germe, um «vocabulário
de Canudos», que constituiria mais tarde seu grande livro de
pesquisador do tema, o Dicionário de Canudos, com mais de 600
verbetes, cuja publicação prometera para 1997, centenário da
destruição de Belo Monte, mas que deixou inédito.
Além de outros trabalhos seus, tais
como o precioso Quase Biografias de Jagunços – o séqüito
de Antônio Conselheiro (Centro de Estudos Baianos da UFBA, 1986)
ou o seu livro Cartografia de Canudos (Salvador,
Conselho Estadual de Cultura, 1997) em que compedia vários artigos e
ensaios, ou ainda merece mencionado seu bom ensaio «Canudos
não-Euclidiano: fase anterior ao início da Guerra do Conselheiro»,
publicado no livro organizado por José Augusto Vaz Sampaio Neto e
colaboradores, que constitui a bibliografia mais completa sobre a
temática, Canudos – Subsídios para a sua reavaliação
história (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1986),
além desses trabalhos, repito, Calasans batalhou também pela
reedição de algumas obras raras sobre o tema, livros que ele
prefaciou, como por exemplo: Odorico Tavares, Canudos,
Cinqüenta Anos Depois – 1947 (Salvador: Conselho Estadual de
Cultura, 1993); e Alvim Martins Horcades, Descrição de Uma Viagem
a Canudos (Salvador; EdUFBA, 1996).
Com o imenso saber que acumulara
sobre o assunto, tornou-se uma referência internacional e
obrigatória de todos quantos se debruçam sobre a matéria. Amigo
fiel, jamais negou ajuda sempre que dele precisei para alguma
informação ou o mais freqüentemente para obter cópia de algum
documento.
Em 1983, doou à Biblioteca Central da
UFBA tudo quanto, nos seus anos de estudo e pesquisa, garimpou de
documentação sobre Canudos, sobre Antônio Vicente Mendes Maciel – o
Conselheiro, e até sobre Euclydes da Cunha: livros, revistas,
jornais da época, documentos particulares como cartas e bilhetes
escritos durante o conflito, depoimentos de sobrevivente e seus
descendentes, etc.. Um acervo de 4 mil volumes com que funda assim o
Núcleo do Sertão, que se acha hoje localizado no Centro de
Estudos Baianos, e onde há coisas preciosas e raras como o
manuscrito encadernado das anotações evangélicas e sermões do
Conselheiro, que tive a alegria e a emoção de examinar aí.
Mas uma das maiores contribuições de
Calasans foi sem dúvida ter recomposto pacientemente e dignificado,
com seu trabalho de pesquisador, a imagem e o valor de Antônio
Vicente Mendes Maciel, esse seguidor do Padre Ibiapina, imagem e
valor degradados pelas elites brasileiras: políticos, Igreja, a
tradição letrada e o Exército nacional. Calasans confirma em
pormenor, com sua obra, a denúncia que Euclydes pôs na Nota
Preliminar com que abre seu Os Sertões:
«Aquela campanha
[contra Canudos]... foi, na
significação
integral da palavra, um crime.»
Idéia semelhante àquela que vem
expressa nos versos candentes do belo Romanceiro da Inconfidência,
de Cecília Meireles:
«Toda vez que um justo grita,
um carrasco o vem calar.
Quem não presta, fica vivo:
quem é bom, mandam matar.»
Fortaleza, 21 de junho de 2001.
*Professor Titular da UFC e da UECE,
membro do Instituto Histórico do Ceará e da Academia Cearense de
Letras.
Página de José Calasans
|