Eduardo Diatahy B. de Menezes
A
historiografia tradicional de Canudos
Dr. Eduardo Diatahy B. DE MENEZES*
Prof. Titular do Deptº de C. Sociais
e Filosofia da UFC e da UECE.
1– Preliminares
«Foi somente devido à descoberta da História – mais
exatamente, ao despertar da consciência histórica no
judeo-cristianismo e seu desenvolvimento em Hegel e seus sucessores
– foi somente devido à assimilação radical desse novo modo de ser no
Mundo que representa a existência humana, que o mito pôde ser
ultrapassado. Hesitamos, contudo, em afirmar que o pensamento mítico
tenha sido abolido. (...) ele conseguiu sobreviver, embora
radicalmente modificado (se não perfeitamente camuflado). E o mais
surpreendente é que, mais do que em qualquer outra parte, ele
sobrevive na historiografia!»
Mircea ELIADE 1
«A consciência teórica, prática e estética, o mundo
da linguagem e do conhecimento, da lei, do direito e da moral, as
formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se
encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa.»
Ernst CASSIRER 2
Minha tomada de posição inicial
estriba-se no suposto segundo o qual o mito situa-se no núcleo
primordial de todo imaginário social, como matriz geradora do
processo de construção de sentido da humana condição. E, portanto,
no corolário de que a história e as ciências constituem a forma de
produzir e de dizer o mito hoje, como resposta às aporias
fundamentais e incessantes da existência coletiva.
Além disso, é preciso não esquecer que
todo discurso competente, ou que se pretende tal, elabora-se a
partir de um lugar social. Assim como é mister deixar claro que todo
ato de saber se funda num dispositivo de poder. É o locus
ocupado numa determinada ordem social que institui a gramática
discursiva do pesquisador e mesmo do ficcionista. É daí, desse posto
particular, que o estudioso elabora sua visão de mundo ou de
determinada realidade. Por outro lado, isso vem atravessado pelas
correntes de idéias e crenças que entretecem o horizonte cultural e
ideológico de uma época. Portanto, a escritura da História não foge
a essa condição. Aliás, o Padre Vieira resumia essas idéias de uma
forma muito mais perfeita e simples:
«Todas as penas nasceram em
carne e sangue, e todos na tinta
de escrever misturaram as cores
de seu afeto.»
Assim, a despeito do seu inequívoco
enraizamento no chão histórico brasileiro, em virtude porém de sua
feição de iluminismo colonizado, na consciência da geração do final
do século XIX e primeiras décadas do atual, as coordenadas
cartesianas dominantes e definidoras do espaço cultural de nossa
tradição letrada passavam pelos meridianos de Paris e Londres, e por
paralelos situados muito acima da linha equinocial. Eis por que, por
exemplo, na cabeça de um Euclydes da CUNHA, bem antes de conhecer
efetivamente a realidade de Canudos, já se lhe firmara a convicção
de tratar-se de "nossa Vendéia" o que ali ocorria. E seria quase
impossível outra comparação menos dignificante e sapiente.
É o que sublinha José Maria BELLO
quando assevera: «em todos os ramos de atividade intelectual, não
conseguiam os brasileiros emancipar-se da absorvente influência
européia, ou, mais especialmente, da influência francesa. Faltariam
às nossas letras sabor próprio e perfeita identificação com os
sentimentos nacionais. (...) Os homens de pensamento e de
sensibilidade estética vivam muito mais no ambiente espiritual da
Europa do que no brasileiro.» 3 E Cruz COSTA insistirá no mesmo
diapasão ao afirmar incisivo: «Conhecíamos melhor
a Europa do que o que se passava nas diferentes províncias do
Império. País importador de idéias, as nossas eruditas elites
litorâneas do século XIX sofregamente procuravam informar-se do que
se passava nos grandes centros da Europa, esquecidas,
freqüentemente, de indagar daquilo que lhes ia em redor.» 4
Apresentados assim sumariamente meus
supostos de base, gostaria de esclarecer desde logo os limites de
minha proposta. Obviamente, não é minha intenção empreender aqui uma
análise exaustiva da historiografia tradicional de Canudos. Meus
propósitos são mais modestos. Sequer estão fixados no tema
evidenciado no título deste trabalho, pois buscam ir além. Ou antes,
pretendem servir-se do exame dos materiais relativos a esse caso
específico como suporte ou ilustração para uma reflexão acerca dos
processos de elaboração da nossa história.
Se, em trabalho anterior sobre a
religião do povo em Canudos, eu fui estimulado a realizá-lo a partir
da questão crucial que levanta MACHADO DE ASSIS quando, na sua
crônica semanal de 31 de janeiro de 1897, indagava: «Se na última
batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se
despega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo
os prende até a morte. Que vínculo é esse?» - agora, sou
movido a percorrer os caminhos de nossa historiografia tradicional a
partir de duas observações básicas de Euclydes da CUNHA. A primeira
delas, ele a põe em destaque no início do tópico em que examina a
religiosidade do povo, com esta afirmação fortíssima: «As
agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda
um historiador.»5 E a segunda, ele a enuncia ao
começar o seu esboço do hediondo retrato que retraça de Antônio
Conselheiro, nestas duras palavras: «Pode ser incluído numa
modalidade qualquer de psicose progressiva. (...) Por isto o
infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma
potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo
para a História como poderia ter ido para o hospício.» 6
Euclydes da CUNHA inaugura aí uma das
vertentes mais enraizadas da historiografia de Canudos. Ele constrói
o seu paradigma impregnante. Todavia, ao contrário de sua concepção
e a despeito de reconhecer a enorme importância de sua obra para
visibilização histórica desse movimento popular, como nenhum outro
semelhante teve até hoje, a minha convicção profunda reside na tese
segundo a qual foi Antônio Vicente Mendes MACIEL, o Conselheiro,
quem, com a realização de sua utopia cristã e sertaneja, retirou do
anonimato dos almanaques militares para o território da História
todos quantos dele participaram, inclusive do Tenente Pires FERREIRA
ao Marechal BITTENCOURT, e o próprio Euclydes que, sem essa
circunstância, não disporia de tema e paixão para a sua epopéia
brasileira.
Mas não é esse o alvo de minha reflexão
aqui. Retenho pois dessas observações apenas a sua intuição central,
que me permite formular o seguinte questionamento: Que faz de um
fato banal qualquer da vida quotidiana de uma pobre gente um
acontecimento histórico de relevo? Como explicar que um cidadão
anônimo qualquer se transforme em personagem da História, em meio a
milhões de seres humanos que nascem, crescem e morrem sem deixar
nenhuma marca de sua passagem?
Evidentemente, também não constitui meu
escopo oferecer aqui uma resposta imediata a este questionamento,
que aí vai apenas para servir de fio condutor ao que se seguirá na
segunda parte deste trabalho, onde pretendo examinar uma amostra de
textos relevantes dessa historiografia. Como quer que seja, faço
minhas as palavras de Gilbert Durand, ao apreciar questão semelhante
em sua intervenção numa obra coletiva sobre história e imaginário
dirigida por Jacques Le Goff:
«Por certo, às vezes, em determinada sociedade,
existem fatores extrínsecos, fatores materiais, acontecimentais: uma
invasão, uma seca, um movimento de população vão evidentemente
desencadear um imaginário (...); porém, malgrado tais incidentes
extrínsecos inelutáveis, creio que as velhas filosofias da História
têm assim mesmo razão: existe uma causação interna, há
algo que está contido no conjunto do próprio discurso cultural e que
é verdadeiramente uma "causalidade formativa". Existem múltiplos
exemplos disso. (...) Mas enfim, na maior parte do tempo, percebe-se
que as ideologias...conduzem mais freqüentemente o mundo que os
"fatos" positivos. (...) penso que a ciência das ciências em
antropologia é a ciência dos próprios movimentos dos conjuntos
imaginários, desses conjuntos de longa, de média e de curta duração,
e que é aí que reside realmente o material de estudo mais fiável,
mais heurístico, bem mais heurístico que os famosos "fatos". Os
fatos, não sabemos muito bem que são eles, sobretudo se os cortarmos
de todo "discurso", isto é, de toda filosofia da história. (...)
De todo modo, é mister observar que, em história, não existem
jamais documentos de primeira mão. Isso não existe! Todo
documento que nos chega é já um produto humano, uma interpretação
humana.» 7
Passemos pois ao exame do tema central
deste trabalho.
2. – Exame dos Materiais
«isto de método, sendo, como é, coisa indispensável, todavia, é
melhor tê-lo sem gravata, nem suspensório, mas um pouco à fresca e à
solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor
do quarteirão.»
MACHADO DE ASSIS
Parece óbvio que se impõem de imediato algumas questões de natureza
metodológica e conceptual. Desde logo, que textos pretendi
contemplar com tal designação de "historiografia tradicional"? Que
critério adotar para classificá-los como tradicionais, sem recair
num esquematismo cronológico segundo o qual as publicações mais
antigas seriam necessariamente conservadoras e os textos mais
recentes, progressistas? Que tamanho deveria possuir uma amostra
significativa e representativa do corpus a ser analisado?
A essas e a outras questões da mesma natureza procurei responder
buscando caminhos parcimoniosos e bastante simples. Aliás, não
procuro render homenagem ao culto ritual ou litúrgico em matéria de
metodologia. Nesse terreno, prefiro seguir o sábio conselho do velho
MACHADO DE ASSIS, dado pela boca de seu Brás Cubas, e que pus em
epígrafe deste tópico.
Por exemplo, para os efeitos deste estudo, encarei como
historiografia tradicional o legado que nos vem sobretudo da
produção dos nossos institutos históricos, que gerou uma vertente
bem acolhida no seio das nossas elites acadêmicas e letradas. De
algum modo, essa tradição perdura até hoje, inclusive com seu forte
vezo positivista de perseguir uma história nitidamente factual ou acontecimental, sem articulação causal ou explicativa, e que opera
como se supusesse uma ordem normal e mais ou menos permanente da
existência coletiva, de que divergiriam alguns fatos episódicos e
perturbadores. Essa historiografia é suficientemente divulgada e
conhecida, estando na base da principal produção de nossos manuais
de história pátria em todos os níveis.
Quanto à representatividade e validade da amostra, decidi pelo exame
de cerca de três dezenas de obras, tomando como critério de inclusão
tanto o estilo cognitivo da historiografia que praticam, quanto o
caráter prestigioso de sua recepção, que institui os chamados
"autores consagrados". Por outro lado, foram sistematicamente
excluídos os textos de monografias específicas, desde as da primeira
hora – como as de Euclydes da CUNHA e contemporâneos – até as
posteriores, em especial as mais recentes e mais revisionistas e
analíticas (NOGUEIRA, OTTEN, VILLA, BERNUCCI, LEVINE, etc.). Enfim,
além desses critérios, pesou significativamente na escolha dos
textos o tratar-se de compêndios gerais ou de um período da nossa
história, de modo a permitir como recurso de análise a verificação
do espaço quantitativo e qualitativo que o movimento de Canudos
neles ocupa.
Dispondo desse esquadro criteriológico e analítico, um dos primeiros
textos com que se poderia iniciar este estudo seria por certo a obra
de CAPISTRANO DE ABREU, pioneiro de nossa historiografia moderna ou
renovada. Lamentavelmente, porém, ele dedicou a maior parte de seu
labor investigatório à reconstrução das fontes de nossa história
colonial. Assim, em toda sua obra conhecida, Capistrano só dedicou à
história mais próxima de sua época um único e curto ensaio de
síntese, intitulado «O Brasil no século [XIX]», publicado justamente
em A Notícia de 1º de Janeiro de 1900. Mesmo aí, ele não atribui
importância maior ao tema que estou a examinar. Em compensação, traz
saborosas páginas de fina e lúcida ironia, como ao apreciar a
proclamação da República:
«A 15 de Novembro de 89 organizou-se um governo provisório pelo
exército e pela armada, em nome da nação. Até o fim do ano pouco deu
que falar e, em geral, mostrou-se à altura dos acontecimentos; com o
novo ano parece que, invadindo-o o receio de que poucos dias teria
de vida, febrilmente pulularam leis, regulamentos, reformas,
gratificações, concessões, privilégios que maravilhosamente afinaram
com a epidemia bolsista conhecida pelo nome de Encilhamento.» 8
Uma só vez refere-se ele a Canudos, mesmo assim de passagem – é
quando ao dizer que o governo de Prudente de Morais enfrentou quatro
anos de agitação de toda ordem e que a atitude do antecessor foi de
hostilidade nada civil antes e depois de sua posse, ele conclui:
«Elementos armados, afeitos à onipotência sob o regime precedente,
mais de uma vez investiram contra ele, esquecida sua missão no ódio
do biriba,9 como era de bom gosto chamar-lhe. De Canudos mais
depressa se telegrafava para os foliculários 10 e agitadores que
para os seus superiores hierárquicos.»
E depois de analisar os fatos políticos que se seguiram a seu
governo, ele conclui o ensaio com esta nota maliciosa:
«Quando a 15 de novembro de 1898 Campos Salles assumiu a
presidência, desanuviara-se o horizonte... Os piores inimigos
deixaram a atitude agressiva e, ao abrir-se a sessão do Congresso,
em 1899, apresentaram-se os dois partidos a apoiá-lo: um, porque se
batera pela sua eleição e a fizera triunfar, outro, porque os
interesses imprescritíveis da Pátria exigiam o agrupamento à volta
de seu representante mais autorizado.
Chamavam-se estes o partido da Concentração.
Continuarão as coisas no mesmo pé no ano que começa? A concentração
dos dois partidos lembra a fábula do homem grisalho que tinha duas
amantes: a velha arrancava-lhe os cabelos pretos, a moça
arrancava-lhe as cãs.»11
Portanto, autores, com produção historiográfica nesse período da
transição do século XIX para o atual, não enfrentaram em geral a
aventura de elaborar a história imediata. É o caso, para ilustrar a
observação, do Barão do RIO BRANCO, cujo Efemérides Brasileiras
posto seja publicação póstuma, preparada e anotada por Rodolfo
GARCIA, nasceu de sua colaboração iniciada em 1891 ao Jornal do
Brasil, fundado no mesmo ano pelo Conselheiro Rodolfo DANTAS: assim,
em suas mais de 700 páginas, não chega a contemplar o tema de que me
ocupo.12
Desse modo, a primeira grande obra de nossa história a examinar
efetivamente o movimento de Canudos, foi o livro do Padre Raphael
Maria GALANTI, jesuíta e historiador nascido em Piceno, Itália, em
1840 e morto em Friburgo, RJ, em 1917. No Brasil, ele circulou pelo
Amazonas e o Pará, ensinou no colégio dos jesuítas em Itu, SP., e
foi sobretudo professor de Filosofia e História no Colégio Anchieta
de Nova Friburgo, e sócio correspondente de vários Institutos
Históricos. A obra a que me refiro é a sua História do Brasil, em 5
tomos, publicada entre 1896 e 1905, cuja parte relativa ao Segundo
Império e à República não tinha modelo a seguir, tendo sido,
portanto, a pioneira. Infelizmente, não tive acesso a esse texto,
mas possuo a sua edição resumida para fins escolares.13
Nessa ordem de consideração, a obra seguinte é a monumental
História
do Brasil de José Francisco da ROCHA POMBO, em 10 volumes de grande
formato, publicada entre 1915 e 1917, mas cuja primeira edição de J.
Fonseca Saraiva é de 1905, no Rio de Janeiro.14 De certa maneira,
esta obra compensa a ausência da anterior na medida em que sua
narrativa, conforme assinala o próprio autor, segue fundamentalmente
a exposição do Padre GALANTI que, por sua vez, «resume os dois mais
valiosos documentos que temos à vista (Os Sertões, de Euclydes da
CUNHA, e a Guerra de Canudos, do dr. Aristides MILTON)...».
15 Esta
referência intertextual surpreende na sua origem a formação disso
que venho chamando de historiografia tradicional de Canudos, mostra
o paradigma em sua gênese.
Algumas características deste texto o singularizam em relação a
outros. Com efeito, inserindo o relato e as considerações acerca das
ocorrências relativas a Canudos no quadriênio do primeiro presidente
civil da República e, portanto, tendo como pano de fundo, as
agitações políticas que explodiram no governo anterior e se
projetaram no novo, o autor é o primeiro a dedicar um espaço
significativo a esse movimento popular (43 pp.). 16 Há imprecisões
de datas e dados, sobretudo quanto aos fatos relativos ao
Conselheiro e à campanha contra Canudos – como, por exemplo, quando
o autor dá o ano de 1835 como o do nascimento de Antônio Vicente
Mendes MACIEL. A linguagem é simples e o relato, mediante longas
citações de suas fontes já mencionadas, é razoável. Sua semântica
discursiva, todavia, se insere na construção da imagem desfavorável
à gente e ao líder do movimento: aquela é chamada de fanática,
devassa e criminosa, e o Conselheiro é pintado num desvario
delirante, sendo o juízo final e o fim do mundo o assunto predileto
de suas prédicas, no que aliás se aproxima de Euclydes. Dois
aspectos dão relativa importância ao seu texto: primeiro, o fato de
o autor reproduzir boa base documental, como o faz quando transcreve
a maior parte do Relatório de Frei João Evangelista de MONTE
MARCIANO; e em segundo lugar, o fato de, a despeito de ser ele um
historiador reconhecidamente conservador e até tomar partido a favor
das forças repressoras – como, por exemplo, quando ao descrever os
combates refere-se àquelas sempre como "os nossos" - , a despeito
disso, repito, ao final do relato, ele menciona o protesto dos
estudantes de medicina da Bahia contra as estrondosas manifestações
de júbilo aos vitoriosos que haviam praticado horrendas crueldades
na campanha, e termina dizendo:
«Cumpre, portanto, aqui perguntar se houve deveras, ou não, essas
crueldades. O dr. Aristides Milton, citando o general Dantas
Barreto, afirma ter havido, e muitas. Euclydes da Cunha, referindo o
que viu, descreve essas crueldades com cores bem carregadas. Mas nós
nos dispensamos de tarefa tão triste... A cena é medonha demais...
Aqui, entre parênteses, perguntaremos apenas: que fim teriam levado
aquelas 300 míseras criaturas que o Beatinho apresentou no
acampamento?».17
E ele conclui o tópico reproduzindo o valioso documento constituído
pelo manifesto apresentado pelos estudantes da Faculdade Livre de
Direito da Bahia, denunciando as atrocidades e exigindo do novo
regime o respeito ao estado de direito.
Alguns anos antes, em 1900, mas pertencendo ao mesmo período, surge
a História do Brasil, curso superior, de João RIBEIRO (Laranjeiras,
SE, 1860 – Rio de Janeiro, 1934), que inaugura uma perspectiva nova
na interpretação de nossa evolução histórica.18 É de lamentar,
porém, que, apesar de suas mais de 400 páginas, estas só examinem o
período republicano mediante curtos parágrafos relativos aos
quadriênios presidenciais, como se tornou costume nos manuais de
intenções didáticas. Assim, no de Prudente de MORAIS, o autor repete
numa referência sumária: «venceu a rebelião dos fanáticos de
Canudos onde pereceram numerosas tropas que desconheciam o sertão e
mal calculavam os recursos desses jagunços sertanejos
dirigidos por um quase louco, o místico Antônio Conselheiro. O
reduto de Canudos foi afinal destruído (1896-1897) ao cabo de seis
meses de lutas.»19 Como
se pode constatar, ele nada acrescenta de ganho e só reforça a
estereotipia do discurso negativo acerca do tema.
Nas duas décadas seguintes, esse padrão se reproduz recorrentemente.
É óbvio que inúmeras obras do gênero foram sendo publicadas no
período. Mas pelos critérios adotados, só é relevante registrar
aquelas cuja vigência tocou de perto o interesse do público que
garantiu sua recepção. Nessa perspectiva, pode-se assinalar a
História do Brasil de Mário da Veiga CABRAL (Rio de Janeiro, 1894 –
Idem, 1973),20 que vai conhecer desde seu aparecimento em 1920
enorme sucesso, visto que foi sendo bafejada por elogiosas resenhas
de figuras como João RIBEIRO, Rocha POMBO e muitos outras,
assegurando-lhe inúmeras edições nas décadas seguintes. Conforme a
tradição que já se firmara, o autor examina Canudos no capítulo
XXXVII, referente ao "Segundo Quadriênio (1894-1898)". Para uma obra
de grande formato e mais de 600 páginas, é inteiramente indigente e
secundária a síntese de meia página que o autor dedica a Canudos:
mencionando em nota de rodapé que existem duas obras importantes
«sobre esse movimento de fanatismo» - Os Sertões de Euclydes da
CUNHA e Os Jagunços de Afonso ARINOS – nele não encontra nenhum fato
que mereça relevo e chega a atribuir ao vice-presidente, Manoel
VITORINO, a iniciativa das duas primeiras expedições. Aliás, em suas
14 páginas, o capítulo se estende excessivamente na questão de
limites com a Argentina, na invasão do Amapá pela França, e,
sobretudo, no atentado a Prudente de MORAIS, que resultou na morte
do Marechal Carlos Machado BITTENCOURT, tudo isso numa retórica
heroificante e patriótica, bem ao gosto do estilo dessa
historiografia.
Há uma obra desse período que merece mencionada por seu silêncio
sobre o assunto. Embora produzida como introdução geral ao Censo
Demográfico de 1920, foi publicada depois, em 1922, como livro
autônomo e teve várias edições sucessivas sem alterações
significativas, tornando-se referência básica dos estudos
brasileiros como representante de sua vertente ideológica. Refiro-me
ao livro de F. J. OLIVEIRA VIANNA (Rio Seco de Saquarema, RJ, 1883 –
Niterói, RJ, 1951), sobre a evolução da raça, da sociedade e das
instituições políticas do Brasil.22 Com efeito, a obra não traz
qualquer menção à existência de Canudos. É somente num livrinho
posterior, de menor importância no conjunto de sua obra, que se vai
encontrar, conforme sua perspectiva de nostalgia autoritária,
observações assim mesmo agudas acerca dos movimentos sertanejos, em
que Canudos entra comparativamente:
«Outra, não há dúvida, teria sido a orientação da nossa política e
da nossa actividade administrativa, si essa zona de attritos entre o
poder central e as forças regionaes, envez de se ter localizado na
orla maritima, se houvesse fixado no interior do grande massiço
central, onde vivem as nossas populações sertanejas. Então, essa
grande energia centralizadora – que o Imperio, dirigido por grandes
constructores politicos, do pulso e da estatura de Feijó, e por
estadistas conservadores, da tempera e educação de Itaborahy e de
Uruguay, desdobrou inteiramente á orilha dos litoraes, desde 1822 –
ter-se-hia desencadeado sobre os sertões, como sobre o pampa a
energia dos unitarios da escola de Sarmiento e de Rivadavia.
(...)
Somente quando uma dessas irrupções fragorosas de banditismo ou de
fanatismo, como a de Canudos, exorbitando as lindes locaes, vem
sacudir-nos de nossa indifferença, é que nós, os litorâneos, nos
voltamos para essas vagas regiões de caatingas asperas e bravias –
e, interrogamos, feridos de surpresa, e aturdidos, e inquietos, e
espantados, essa vastissima Mongolia nacional, tumultuante na sua
innumeravel barbarie de tunguzes de cangaço...Somente quando uma
dessas irrupções fragorosas de banditismo ou de fanatismo, como a de
Canudos, exorbitando as lindes locaes, vem sacudir-nos de nossa
indifferença, é que nós, os litorâneos, nos voltamos para essas
vagas regiões de caatingas asperas e bravias – e, interrogamos,
feridos de surpresa, e aturdidos, e inquietos, e espantados, essa
vastissima Mongolia nacional, tumultuante na sua innumeravel
barbarie de tunguzes de cangaço...[pp. 144-145]
(...)
O systema moderno, isto é, o que empregamos em Canudos e no
Contestado, é differentissimo e mesmo inteiramente contrario ao
velho systema colonial. Contra as explosões intermittentes da
indisciplina sertaneja, os estadistas republicanos preferem realizar
uma vasta mobilização de brigadas militares, imponentes, magestosas,
formidandas. Essas poderosas massas de exército movem-se penosamente
das capitaes da costa até as profunduras da "selva selvaggia" dos
sertões remotos. Assediam, depois, o fóco de banditismo revolto.
Dizimam, depois, a fogo de metralha, a sertanejada brava. E
retornam, depois, anciosas e prestas, ás claras capitaes da costa e
ás suas avenidas resplandescentes...
Nas regiões "pacificadas", por sobre os escombros das choupanas
destruidas e incendiadas, só encontrareis a desolação e o deserto.
Nada alli fica que atteste a presença deste poder tremendo, que só
se revela pela bocca das carabinas. Nem um posto policial. Nem uma
aldeia. Nem um centro judiciario e social. Nada que indique um
desejo de legalidade. Nada que continue pelos tempos em fóra a
soberania do poder publico...
Diante de um caso como o de Canudos ou o do Contestado, os antigos e
experientes administradores do periodo colonial não se limitariam,
como os do periodo republicano, a fuzilar os bandidos de cangaço ou
os seus caudilhos e chefes. Teriam estabelecido no meio delles,
depois de feita a repressão, um centro de autoridade estavel e
definitivo: teriam fundado povoações.»[pp. 162-163].23
Não obstante uns laivos de aparente simpatia pelas populações
sertanejas, que servia de fato apenas para atacar a República e
manifestar sua preferência pelo período colonial e monárquico, é
fácil de ver que a adjetivação empregada por OLIVEIRA VIANNA para
caracterizar tais movimentos e o seu viés interpretativo não fazem
mais que reanimar o discurso típico da historiografia conservadora,
onde o povo não conta efetivamente como protagonista e o poder
central é o demiurgo geral.
Entretanto, exatamente em 1930, no limiar da nova década que traria
tantas transformações na nossa paisagem política, econômica e
cultural, sai publicado o livro Formação Histórica do Brasil, de
João Pandiá CALÓGERAS (Rio de Janeiro, 1870 – Petrópolis, 1934), uma
das figuras mais destacadas da inteligência brasileira da primeira
República: engenheiro, economista, historiador, estadista, um dos
maiores especialistas em economia e política minerais do país,
membro do Instituto Histórico Brasileiro, grande amigo de Capistrano
de Abreu, deixou um volume impressionante de publicações. No
entanto, a obra aqui referida, posto constitua um clássico de nossa
historiografia, em suas 511 páginas, não dedica mais de 5 aos
eventos políticos em que se envolve Canudos. De fato, num tópico
intitulado Fanatismo sertanejo, fazendo extemporânea comparação com
o movimento ulterior do Contestado, ele não foge, em meios a erros
factuais, à inclinação da historiografia tradicional de produzir uma
síntese preconceituosa sobre o evento.24 E isso é penoso em livro de
valor!
Dois anos depois entra em cena novo historiador, típico
representante da historiografia tradicional: Pedro CALMON (Amargosa,
BA, 1902 – Rio, 1985). Como o anterior, foi também figura
prestigiada pelas elites acadêmicas: historiador, professor de
Direito Constitucional, reitor da antiga Universidade do Brasil,
ministro da Educação no governo Dutra, membro da Academia Brasileira
de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deixou
obra numerosa onde divulgava com leveza e humor sua erudição
literária. O espaço e apreciação que dedica a Canudos se constrói
sucessivamente em três obras acerca de nossa história. Na primeira
dela, de 1932, que o autor justifica em nota explicativa: «Este
livro não é um compêndio, nem é um tratado. É uma nova síntese da
História do Brasil: história social, econômica, administrativa e
política. A História da Civilização Brasileira. Destina-se aos
estudantes dos cursos superiores...»25 De fato, era um livro
inovador para época, com umas tinturas de análises sociológicas e
contendo aspectos pouco habituais em manuais desse porte. Canudos aí
ocupa pouco mais de uma página, com um relato simplificado que
contém equívocos, confundindo ocorrências básicas e datas, e
contendo erros primários. É expressão do desprezo que nossa tradição
letrada reserva às coisas das camadas subalternas.
Sua segunda obra introduz uma temática efetivamente nova e que se
coadunava com as perspectivas abertas por essa década dos grandes
interpretadores do Brasil. Refiro-me à sua História Social do
Brasil, em 3 volumes, publicados entre 1937 e 1939, em que era
examinado nos dois primeiros volumes o espírito de nossa sociedade
no período colonial e imperial, e, no terceiro, a época
republicana.26 Agora, o tema de Canudos já recebe melhor acolhida.
No capítulo VI do tomo 3, dedicado ao quadriênio de Prudente de
Morais, há mesmo um tópico específico intitulado «A Epopéia dos
Sertões»: embora contendo ainda algumas imprecisões e o equívoco de
chamar Antônio Vicente Mendes MACIEL de "monge" – designação
específica de líderes de movimentos sociorreligiosos do Sul - , o
exame da questão aparece com mais argúcia, insistindo desde logo no
papel representado pela imprensa, ele afirma que «Canudos foi mais
invenção de publicidade nefasta do que arraial de revoltosos.» 27 Ou
seja, conforme assinala o autor, tratava-se das falácias criadas com
o regime: salvação da República com a descoberta dos sebastianistas
– no caso, o termo identificava os restauradores monarquistas que a
ameaçavam com suas conspirações. Numa nota de rodapé à página 70,
ele ainda assinala a falta de fundamento das relações do Conselheiro
com tais políticos e do envio de armamento para Canudos; enfim, o
autor conclui: «No espólio do fanático nada se encontrou em abono
das suspeitas.» No mais, ele segue o modelo discursivo que venho
sublinhando.
Para um historiador nitidamente conservador, Pedro CALMON demonstra
efetiva renovação em seu estilo interpretativo duas décadas depois,
ao publicar em 1956 uma nova história do Brasil, em 5 volumes.28 Por
essa época já se renovava a historiografia sobre Canudos, em
particular com os trabalhos que o professor José CALASANS
principiara a publicar. Assim, o tratamento dado a Canudos e ao
quadriênio (1894-1898) nesta terceira obra é bem mais amplo: quatro
capítulos distribuídos em 48 páginas. Embora o autor incida mais uma
vez na conceituação tradicional para caracterizar o movimento de
Canudos e ainda insista em chamar o Conselheiro de "monge", seu
relato agora é mais consentâneo e matizado, a documentação mais
consistente e as fontes historiográficas bem mais ricas. Mas
sobretudo ele intensifica a análise crítica do jogo de interesses
dos grupos políticos em disputa, em especial da seita fanaticamente
jacobina à volta do túmulo de Floriano e de seu legado autoritário,
principal elemento perturbador das instituições políticas da época.
Eis por que Pedro CALMON cita a esse propósito um comentário
judicioso de MACHADO DE ASSIS em sua crônica semanal por ocasião da
apoteose em que se transformou o enterro do marechal Floriano
PEIXOTO:
«Os mortos não vão tão depressa como quer o adágio; mas que eles
governam os vivos, é coisa dita, sabida e certa. Não me cabe narrar
o que esta cidade viu ontem...»29
Por outro lado, ele atribui à astúcia política de Lauro Muller a
idéia de indicar o nome do coronel Moreira César para comandar a 3ª
expedição contra Canudos, livrando-se assim da sua presença em Santa
Catarina, incômoda para sua facção, ao mesmo tempo que «antepunha
ao fanatismo de um lado o fanatismo do outro, para que se
defrontassem nas caatingas do Nordeste essas duas formas de loucura»
[p. 135].30
A esta altura de sua análise, o autor propõe curiosa tipologia de 3
categorias de sebastianistas, que campeavam longe e perto do
governo, inclusive na rua Ouvidor, epicentro dos terremotos
políticos de então: havia os sebastianistas monárquicos,
desnorteados com a derrota de Saldanha mas intransigentes na
oposição política; havia os florianistas, que o invocavam a toda
hora como se o marechal estivesse vivo, distribuíam pequenos
retratos seus como se foram imagens bentas, e realizam constantes
romarias ao seu túmulo no São João Batista, sendo o seu culto uma
espécie belicosa de sebastianismo e Moreira César, um dos ídolos
dessa heresia republicana;31 e havia, por último, o sebastianismo
vetusto dos fanáticos conselheiristas... [passim]. Enfim, o autor
encerra sua apreciação com incisiva denúncia das atrocidades da
campanha. No conjunto, porém, o quadro esboçado repete as linhas
gerais dessa vertente historiográfica, com evidente influência do
modelo euclydiano de explicação.
Entre as duas últimas obras de Pedro CALMON, mais precisamente em
1940, vem a lume uma das melhores histórias da República deste
período, da autoria de José Maria BELLO (Barreiros, PE, 1885 – Rio,
1959),32 que dedica parte do capítulo XI e dois terços do XII ao
exame do movimento de Canudos. Embora o conjunto da obra seja
inovador, no tocante ao tema que nos interessa aqui, o autor não
consegue livrar-se do fantasma de Euclydes, de cujo livro afirma ter
definido "o exato sentido" daquele movimento. Assim, ele repete em
essência o mesmo modelo explicativo: descreve o Conselheiro como um
«estranho asceta, sexagenário e meio louco» [p. 200], à volta do
qual aglomera-se a multidão de fanáticos, e produz um relato que
chega às vezes a ser superficial e incoerente.
Os manuais didáticos do período, mesmo os que se destinam ao nível
superior – como é o caso da história do Brasil da coleção FTD ou a
da autoria de Vicente TAPAJÓS 33- limitam-se a resumir em uma ou
duas páginas as mesmas fontes tradicionais (Euclydes, Galanti, Rocha
Pombo, etc.), freqüentes vezes sem referi-las devidamente.
Um caso curioso da década seguinte encontra-se no texto de Leôncio
BASBAUM e isso desde o seu título: História Sincera da República –
Das origens até 1889 – tentativa de interpretação marxista.34 Com
efeito, esta estranha história da República limita-se a estudar a
sua gênese desde o período colonial e pára no final do Império.
Portanto, sem a mínima menção a Canudos.
Não obstante, o caso mais singular desse período ocorre com um texto
sobre a história republicana, do escritor Graciliano RAMOS (Quebrângulo,
AL, 1892 – Rio, 1953). Com efeito, numa crônica de agosto de 1939,
intitulada «Prêmios» e incluída posteriormente em sua obra póstuma,
Linhas Tortas (1962), é o próprio autor quem informa sobre a origem
desse seu texto historiográfico: «Diretrizes [revista] vai chamar
concorrentes para uma história da República, livro destinado às
crianças.» Assim, sua Pequena História da República, publicada
depois no seu livro Alexandre e Outros Heróis,35 data de janeiro de
1940. Seus erros factuais são o de menos. O que mais estranha nesse
ensaio – de um autor que nos deu textos de clássica lucidez sobre o
cangaço e a vida do sertanejo do semi-árido nordestino – é que ele
dedica 3 páginas pífias a Canudos e que se iniciam por estas
palavras preconceituosas: «Antônio Conselheiro, um pobre diabo,
tencionava, com ladainhas e benditos, salvar a humanidade. A
humanidade está sempre em perigo, na opinião de indivíduos assim.»
[p. 151]. E segue nesse tom até o fim do seu relato.
Nas décadas de 60 e 70, tanto os compêndios didáticos se renovam
quanto a historiografia acadêmica aprofunda a sua visão crítica e
amplifica suas dimensões analíticas. Paralelamente e em
conseqüência, os movimentos populares de nossa história, sobretudo
os da área urbana e operária passam a merecer espaço mais
significativo e interpretação mais diversificada. Nem sempre, porém,
ocorre essa renovação no que tange aos movimentos sertanejos e ao de
Canudos em especial.
Para ilustrar, cito dois exemplos vindos de vertentes contrapostas.
Nascido de curso sobre a Formação Histórica do Brasil, proferido por
Nelson Werneck SODRÉ, desde 1956, no Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB), um livro de pretensões analíticas inovadoras
aparece no início dos anos 60.36 Dentro de um quadro doutrinário
marxista e com viés economicista à outrance, essa obra pressupõe na
verdade um leitor com razoável conhecimento dos fatos históricos dos
últimos cinco séculos, pois não vai além de sua leitura
interpretativa. É assim que, em suas mais de 400 páginas, num tópico
em que examina a "Crise da República", dedica a Canudos e a
movimentos semelhantes apenas um parágrafo de hermenêutica bastante
duvidosa, na qual a religião do povo não passa de grosso fanatismo
sem papel relevante a considerar:
«No campo, realmente, as relações feudais e semifeudais permitiam
uma aparente estabilidade. Mas, ainda assim, o episódio de Canudos
surgia, logo depois do desaparecimento do florianismo [sic!], como
um sinal de alarma. Sob o manto do fanatismo religioso, Canudos não
foi mais do que manifestação violenta, e até heróica, de uma
população relegada ao mais baixo nível e nele mantida por longo
tempo. Em outros lugares, e sob formas diferentes, sintomas da mesma
inquietação repontavam. Em nenhuma área com a clareza assinalada em
Canudos e, um pouco depois, no Contestado: a luta dos sem terra, de
gente desprotegida, atirada ao desespero e cobrindo o desespero com
a espessa capa do fanatismo religioso.» [p.309].
No extremo oposto, pode-se assinalar a obra de um representante por
excelência do nosso tradicionalismo acadêmico, força ainda dominante
e consagradora nos anos 60. Refiro-me ao livro sobre nossa história,
de Hélio VIANNA (Belo Horizonte, 1908 – Rio de Janeiro, 1972), que
se orgulhava de ter assumido, em 1939, a primeira cátedra federal de
História do Brasil, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da
então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Discípulo
entusiasmado de Plínio SALGADO, em 1941, assumia a cátedra de
história da América na PUC do Rio de Janeiro, foi, também, professor
de história moderna e contemporânea da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras do Instituto Santa Úrsula, da mesma cidade, e
membro da Comissão de Estudo dos Textos de História do Brasil do
Ministério das Relações Exteriores e da comissão diretora de
publicações da Biblioteca do Exército (Ministério da Guerra).
Pertenceu à Academia Portuguesa de História, ao Instituto de
Coimbra, à Sociedade Capistrano de Abreu, à Academy of American
Franciscan History (Washington), ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e ao Instituto Histórico de Alagoas, sendo ainda sócio
honorário de entidade semelhante de Sergipe, e sócio correspondente
dos institutos históricos do Amazonas, Pará, Rio Grande do Norte,
Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e
Goiás. Pesquisador sério da velha estirpe historiográfica e autor de
numerosa obra, o seu livro em apreço, embora anunciado desde o
início de seu ensino universitário na matéria, só aparece em dois
volumes, em 1963, com sucessivas edições nos anos seguintes.37
Depois de por em destaque tanta consagração e apoio institucional, é
mister que se diga ter sido o conjunto de sua obra historiográfica
alvo de arrasadora apreciação crítica da parte de José Honório
RODRIGUES, num tópico intitulado "A Historiografia de extrema
direita", posto ressalve os méritos de rigor factual de alguns dos
seus livros [Contribuição à História da Imprensa Brasileira
(1812-1869), Rio, 1945; História Administrativa e Econômica do
Brasil, São Paulo, 1951; Estudos de História Imperial, São Paulo,
1950; Vultos do Império, São Paulo, 1968]:
«O íntimo da gênese historiográfica dos regressistas é o
tradicionalismo. (...) A historiografia de Hélio Vianna como a de
Gustavo Barroso se igualam – se não na forma e no conteúdo, mas no
objetivo. Ambos são dois pequenos reacionários, destituídos de
filosofia, de teoria, mas não de objetivo ideológico. São ambos
subprodutos do conservadorismo e estão longe de seguirem uma linha
reacionária coerente e lógica como a de Oliveira Vianna. Hélio
Vianna, mais que Gustavo Barroso, escreveu uma história formal, que
aceita o quadro imposto pelas classes dominantes. (...) e uma
história convencional, que aparenta um ar de respeitável antigüidade
e aceita os arranjos legais e econômicos que favorecem as mesmas
classes. (...) A história que apresenta ensina somente a lição do
conformismo. (...) A conseqüência mais grave desse ensino é que ele
representa uma tentativa de colonização da juventude brasileira. Tal
historiografia conservadora e colonialista conta com o apoio oficial
e pré-oficial que com ela se identificam. (...) Ele possui o
fetichismo dos fatos e dos dados. Embora pretenda usar o passado
para orientação política do presente, é saudosista... Não há idéia,
não há compreensão. Há idealização, especialmente para quem o viu de
camisa verde, como um convicto integralista. Hélio Vianna foi o
exemplar mais eminente da historiografia antiquária... »38
Em suma, na sua História do Brasil, em grande formato e quase
setecentas páginas, a história de Antônio Conselheiro e de Canudos
não comporta mais que meia página de um relato absolutamente sumário
e factual, que em parte lembra o do livro de Veiga CABRAL, e cuja
justificativa para o massacre se resume nestas palavras:
«No sertão do Nordeste do Estado da Bahia, no Arraial de Canudos, à
margem do Rio Vaza-Barris, reuniu-se, nos primeiros anos da
República, um forte núcleo de fanáticos, chefiados por Antônio
Vicente Mendes Maciel, vulgo Antônio Conselheiro.
Desobedecendo às autoridades eclesiásticas e estaduais, que tentaram
obter a sua dispersão, houve necessidade de recorrer à força.»39
Portanto, conforme tem sido assinalado – e, aqui mesmo, invoquei no
início aquela espécie de vaticínio de Euclydes da Cunha – os graves
conflitos gerados pelos movimentos populares, sobretudo os das áreas
sertanejas, e a sistemática repressão exterminadora que sobre eles
se exerce da parte de nossa tradição autoritária, não têm merecido,
a não ser bem recentemente, uma parte consentânea e abrangente de
nossa hermenêutica historiográfica.40
Excepcional exemplo dessa abertura de perspectiva para uma nova
historiografia reside por certo na História Geral da Civilização
Brasileira, iniciada sob a direção de Sérgio Buarque de HOLANDA,
continuada sob a coordenação de Boris FAUSTO, e cuja publicação em
11 volumes estendeu-se de 1963 a 1984. Esta obra traz o primeiro
ensaio efetivamente inovador do ponto de vista interpretativo, no
estudo comparativo entre Juazeiro, Canudos e Contestado da autoria
de Duglas Teixeira MONTEIRO.41 É verdade, porém, que, na mesma obra,
no capítulo intitulado «Dos Governos Militares a Prudente – Campos
Sales», da autoria de Fernando Henrique CARDOSO, numa análise
dominantemente política, Canudos é mencionado en passant em curto
parágrafo relativo aos conflitos do período final do governo de
Prudente de Morais:
«Começavam, pois, a gestar, no meio das lutas entre
"florianistas" e governistas, e frente aos sérios desafios
desmoralizantes da Campanha de Canudos, bem como às tentativas no
Sul de militarização das polícias a um ponto tal que inquietava o
Exército com uma possível perda do monopólio da força, as bases para
a institucionalização do "sistema oligárquico".» 42
Perdura, assim, significativo grau de intolerância e de
incompreensão teórica desses movimentos de que faz parte o de
Canudos, mesmo entre alguns de nossos estudiosos aparentemente
melhor instrumentados, sobretudo se levarmos em conta a existência
de novos estudos que produziram intensa inflexão nos modelos
interpretativos, apoiando-se na história das mentalidades, na
socioantropologia do imaginário, na dialética primordial que liga
mito e história, sagrado e profano, tradição e transformação.
É o caso, por exemplo, Edgar CARONE quando afirma esta velha óptica
de perfil evolucionista e bem típica de nossa tradição letrada:
«Os nossos movimentos agrários, explosões indisciplinadas contra a
opressão, assumiram formas religiosas e de pura rebeldia, como o de
Canudos, do Contestado e, de um modo geral, o cangaço. À frente
desses movimentos não apareceram líderes políticos conscientes mas
profetas e iluminados como Antônio Conselheiro, o monge José Maria,
o Padre Cícero e o beato Lourenço.»43
Ou seja, ao assim exprimir-se, ele não faz mais do que repetir a
concepção introduzida por Rui FACÓ de acordo com o cânon marxista do
século XIX.44 E o que é mais grave: em cerca de 10 volumes que
dedica à história da República, as agitações no campo não ocupam
mais que diminuto espaço, e o caso de Canudos aparece como mero pano
de fundo ou pretexto que faz aflorar a luta pelo poder, a revolta da
Escola Militar, as perturbações políticas de florianistas e
jacobinos no governo de Prudente de MORAIS, o atentado de 5 de
Novembro de 1897, etc. – estes, sim, constituem o verdadeiro proscênio de sua historiografia republicana.45
De fato, se percorrermos mais alguns exemplares de textos bem
recentes de história do Brasil, verificaremos que estes permanecem,
com relação aos movimentos sertanejos e a Canudos em particular,
caudatários da nossa persistente historiografia tradicional. Nesse
sentido, citaria, para concluir, mais alguns casos.
O primeiro deles é do próprio Boris FAUSTO, que lançou um volumoso
compêndio de História do Brasil em grande formato, no qual dedica
uma página a Canudos, absolutamente pobre de significação e até
contendo erros elementares.46 Não obstante, algo relativamente
aproveitável em seu texto aparece cerca de quarenta páginas mais
adiante, quando o autor trata dos "movimentos sociais", que ele
divide em movimentos sociais no campo e movimentos sociais urbanos.
Com relação aos primeiros, ele propõe uma tipologia em três grandes
grupos que, posto seja discutível, apresenta algum interesse: 1. os
movimentos que combinaram conteúdo religioso com carência social;
2.
aqueles que combinaram conteúdo religioso com reivindicação social;
3. os que expressaram reivindicações sociais sem conteúdo religioso.
O autor dá como exemplo do primeiro grupo o caso de Canudos e o
movimento em volta do Padre Cícero Romão Batista, na cidade cearense
de Juazeiro do Norte. O movimento do Contestado ilustra para ele o
segundo grupo e ao comentá-lo comete erros interpretativos e
factuais. Enfim, o terceiro grupo tem como exemplo mais expressivo
as greves por salários e melhores condições de trabalho ocorridas
nas fazendas de café de São Paulo (Ribeirão Preto em 1913, etc.).47
Só que o autor elude profundas diferenças históricas e culturais
destes últimos movimentos em relação aos demais, e deixa de
sublinhar o seu caráter mais próximo do movimento operário e
sindical.
Mais chocante ainda é o caso de um bom historiador, da estirpe de um
Francisco IGLÉSIAS, 48 que, sem nenhuma fundamentação, considera o
movimento em apreço como a «mais séria de todas as questões
messiânicas» [p. 207] de contestação da República, e repete em duas
páginas boa parte das tolices que se acumulam nesse tipo de
historiografia.
Já o caso de Teotônio dos SANTOS, 49 com sabor de literatura de
exilado, opta por ignorar Canudos.
Em seguida, vem o texto produzido por Maria Yedda LINHARES e a
colaboração de mais 5 doutores em História,50 que dedica meia dúzia
de linhas a Canudos, definido como "ideologia milenarista" e um dos
«maiores movimentos de massas contra a República» [sic!].
Numa inferência superficial mas talvez justa, poder-se-ia dizer, à
luz dos textos mais recentes aqui mencionados, que as insuficiências
e bobagens se adensam na proporção direta dos graus acadêmicos dos
historiadores considerados.
Enfim, mesmo o belo trabalho de multimeios (livro e CD-Rom), que
acaba de ser produzido por Jorge CALDEIRA e colaboradores,51
apresenta um relato quase indigente sobre Canudos e isso no ano em
que se rememora um dos maiores crimes da Nação contra seu povo, o
qual realizou aí uma das epopéias mais ingentes de nossa História!
3.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.
«... History may be servitude,
History may be freedom...».
T. S.ELIOT
O balanço não parece portador de fecundas lições, a não ser por sua
negatividade. Como quer que seja, tentarei assinalar sumariamente
algumas características gerais do discurso dessa historiografia
tradicional sobre Canudos, que vim examinando até aqui.
No seu conjunto, tal produção histórica elabora, desde o início, a
operação semiótica das elites acerca dos movimentos populares em
geral e de Canudos em particular. Na sua luta ideológica, os
dispositivos de poder produzem um processo discursivo que constrói
uma imagem pregnantemente negativa dessa ocorrência histórica,
segundo uma retórica de justificação do massacre.
O primeiro traço básico de toda essa historiografia tradicional
reside numa atitude, ora velada ora explícita, de profundo desprezo
pelos aspectos históricos das coisas que emanam do povo, desse povo
que – dizia Capistrano de ABREU - , durante séculos foi sangrado e ressangrado, capado e recapado.
Em segundo lugar, sem jamais fundamentar suas afirmações e
conceitos, tal procedimento de construção ideológica define
preliminarmente o acontecimento histórico de Canudos como movimento
insurrecional, como movimento de restauração monárquica, como
rebelião, revolta, etc. Aliás, no documento do Arcebispo da Bahia às
autoridades, ele o qualifica literalmente como subversão da ordem e
apela para a intervenção do Estado.
Um terceiro ponto a assinalar está em que espanta o leitor dessas
obras o não haver habitantes ou população em Canudos, como em
qualquer outro povoado. Consistentemente, a gente canudense ou
conselheirista é designada mediante termos pejorativos tais como:
jagunços, fanáticos, loucos, bandidos, criminosos, marginais, etc.
Uma única vez, em todas as obras estudadas, aparece, quase como um
deslize do autor, a expressão «a população de Canudos» - é na última
obra de Pedro CALMON aqui examinada.52
O último ponto a destacar no discurso dessa historiografia, e talvez
a questão mais crucial, está em que ela manifesta profunda
incompreensão no que tange à religião sertaneja. Esta é sistemática
e levianamente definida como messianismo, milenarismo,
sebastianismo, fanatismo,53 superstição, etc. Com a única exceção do
já referido ensaio de Duglas T. MONTEIRO – que, na verdade, não pode
ser incluído no conjunto da historiografia tradicional, conforme já
assinalei - , nenhum esforço é feito no sentido de compreender a
lógica interna do imaginário sertanejo e de sua religiosidade como
dimensão nuclear na elaboração do seu universo simbólico, matriz da
produção social do sentido da existência.
Essa feição mística, dimensão fundante daquela coletividade, é
desprezada como inteiramente secundária ou alienante, visto que o
principal eixo explicativo que ressalta dessa produção
historiográfica centra-se na aparência mais evidente do confronto
entre civilização e barbárie, ou litoral e
sertão. No caso, termos
como "milenarismo" e "messianismo", confundidos como se fossem
sinônimos que recobrissem a mesma realidade, não chegam a ser
propriamente conceitos, isto é, categorias assentadas sobre sólida
reflexão teórico-explicativa e que sirvam de instrumento heurístico
e interpretativo de uma realidade agudamente estudada. De fato, são
meros rótulos ou etiquetas comodamente pespegadas no bojo de
recipientes fechados e cujo conteúdo permanece desconhecido porque
não se revelou aos sapientes que, em sua mentalidade urbana e
europeizada, não quiseram ou não puderam compreendê-lo.
Em suma, se remontarmos no tempo, seria legítimo afirmar com
relativa segurança que toda nossa tradição letrada tem expressado
enorme dificuldade em entender as manifestações culturais e as
atitudes do povo; e isso desde um Boris FAUSTO ou um Darcy RIBEIRO
54 até o Padre Manoel da NÓBREGA, que já em seu tempo afirmava:
«Des que fui entendendo por experiencia ho poco que se podia fazer
nesta terra na conversão do Gentio por falta de não serem suyetos, e
ella ser huma maneira de gente de condição mais de feras bravas que
de gente rational, e ser gente servil que se quer por medo, e
com juntamente ver a pouca esperança de se a terra senhorear, e ver
a pouca ajuda e os muitos estorvos dos Christãos d’estas terras, cujo
escandalo e mao exemplo abastara para não se convencer... » (Bahia,
agosto de 1557).55
Eis aí resumido o panorama que me foi possível de retraçar...
Fortaleza, 24 de Set. a 31 de Out. de 1997.
* Na realização deste trabalho, o autor tem o apoio de uma bolsa do
CNPq na condição de Pesquisador I - A. Trata-se aqui de comunicação
apresentada no Simpósio Internacional «CANUDOS: 100 ANOS DA
DESTRUIÇÃO», na Universidade Federal do Ceará (23-26 Set./1997) ena
Universidade do Estado da Bahia (30 Set – 3 Out./1997). Na
realização deste trabalho, o autor tem o apoio de uma bolsa do CNPq
na condição de Pesquisador I - A. Trata-se aqui de comunicação
apresentada no Simpósio Internacional «CANUDOS: 100 ANOS DA
DESTRUIÇÃO», na Universidade Federal do Ceará (23-26 Set./1997) ena
Universidade do Estado da Bahia (30 Set – 3 Out./1997).
1 Cf.: Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 102. [O
grifado é meu].
2 Cf.: Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 64.
[Grifado por mim].
3 Cf.: História da República: 1889 – 1945, 3ª ed.. São Paulo: CEN,
1956, pp. 222-223.
4 Cf.: Contribuição à História das Idéias no Brasil. (O
desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica
nacional). Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 299.
Os Sertões
Ibidem,
7 «Structures et Récurrences de l’Imaginaire», in LE GOFF, Jacques
et Al.: Histoire et Imaginaire. Entretiens avec Michel Cazenave.
Paris: Radio France/Éditions Poiesis, 1986, pp. 142-143. [Grifo
meu].
8 CAPISTRANO DE ABREU, João: «O Brasil no século XIX», in Ensaios e
Estudos (Crítica e História) – 3ª série. Rio de Janeiro: Edição da
Sociedade Capistrano de Abreu / Livraria Briguiet, 1938, pp.
131-148. [A citação acima vem à pág. 142].
9 Biriba, apelido dado pelos sulriograndenses aos tropeiros de
Sorocaba, e Prudente de Morais era filho de um destes, fato de que
se orgulhava.
10 Foliculário: escritor de folhetos, mau jornalista.
11 Ibidem, pp. 146 e 148, respectivamente, para as duas últimas
citações.
12 Cf.: Efemérides Brasileiras. Obras do Barão do Rio Branco, t. VI.
Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores / Imprensa
Nacional, 1946.
13 Licções de Historia do Brasil, 5ª ed. São Paulo: Duprat & Comp.,
1913. Da sua obra principal aqui mencionada afirma Américo Jacobina
LACOMBE: «Obra composta longe dos arquivos, compendia e sistematiza
todos os bons autores correntes, em plano sistemático, com clareza,
e fornecendo, em geral, a indicação das principais fontes. Em certos
capítulos foi precursor.» (Cf.: Introdução ao Estudo da História do
Brasil. Col. "Brasiliana" – v. 349. São Paulo: CEN, 1974, p. 191.
14 Cf.: ROCHA PPOMBO, J. F.: Historia do Brazil (illustrada), 10
volumes. Rio de Janeiro: Benjamin de Aguila – Editor, s/d. [Impressa
na Typ. da Empreza Litteraria e Typographica (officinas movidas a
electricidade), Porto].
15 Ibidem, v. 10, p. 401.
16 Ibidem, pp. 401 a 444.
17 Ibidem, p. 431.
18 RIBEIRO, João: História do Brasil – curso superior. 15ª ed. Rio
de Janeiro: Livraria São José, 1953. Ver em especial o ensaio «João
Ribeiro, Filólogo e Historiador», de T. A. ARARIPE JUNIOR, que
acompanha a obra desde a 2ª ed.
19 Ibidem, p. 422.
20 A primeira edição é de março de 1920, Rio de Janeiro, editada por
Jacinto Ribeiro dos Santos. Utilizei todavia a 18ª edição, revista e
ampliada pelo autor: História do Brasil – curso superior. Rio de
Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954.
21 Cf.: op. cit., p. 438.
22 Cf.: Evolução do Povo Brasileiro, 4ª ed., com 42 ilustrações fora
do texto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
23 Cf.: OLIVEIRA VIANNA, F. J.: Pequeno Estudos de Psychologia
Social. São Paulo: Monteiro Lobato & C. – Editores, 1923 [No ensaio:
«Organisação da Legalidade nos Sertões» (O Problema do Contestado),
pp. 140-174]. É do próprio autor o grifado na citação. O termo "tungus"
(que o autor grafa com z) refere-se a povos mongóis espalhados pela
Sibéria.
24 Cf.: CALÓGERAS, João Pandiá: Formação Histórica do Brasil. 5ª
edição, ilustrada. Col. "Brasiliana – 42". São Paulo: CEN, 1957, pp.
442-446.
25 Cito pela 6ª edição, col. "Brasiliana – 14". São Paulo: CEN,
1958, p. 9.
26 Respectivamente volumes 40, 93 e 173 da Col. "Brasiliana"
27 Cf.: História Social do Brasil, tomo 3: A Época Republicana. Col.
"Brasiliana – 173". São Paulo: CEN, 1939, p. 68.
28 De que utilizo apenas: História do Brasil, vol. V: A República. Col. "Brasiliana – 176-D". São Paulo: CEN, 1956, pp. 112-160.
29 Cf.: A Semana, II, 417 (crônica de 7 de Julho de 1895), apud
CALMON, Pedro: op. cit., p. 121.
30 Acredito interessante lembrar aqui, embora longo, o judicioso
comentário do próprio Euclydes da Cunha sobre esse momento político,
na nota com que introduz a narrativa da Expedição Moreira César:
31 «O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente,
coincidia com uma fase crítica da nossa história. A pique ainda das
lastimáveis conseqüências de sanguinolenta guerra civil, que
rematara ininterrupta série de sedições e revoltas, emergentes desde
os primeiros dias do novo regime, a sociedade brasileira, em 1897,
tinha alto grau de receptividade para a intrusão de todos os
elementos revolucionários e dispersivos. E quando mais tarde alguém
se abalançar a definir, à luz de expressivos documentos, a sua
psicologia interessante naquela quadra, demonstrará a
inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político
recém-inaugurado...
O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de
uma opinião pública organizada. Encontrara o país dividido em
vitoriosos e vencidos. E quedara na impotência de corrigir uma
situação que não sendo francamente revolucionária e não sendo também
normal, repelia por igual os recursos extremos da força e o influxo
sereno das leis. Estava defronte de uma sociedade que progredindo em
saltos, da máxima frouxidão ao rigorismo máximo, das conspirações
incessantes aos estados de sítio repetidos, parecia espelhar
incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e
a organização política incompreendida.
De sorte que... a significação superior dos princípios democráticos
decaía – sofismada, invertida, anulada.
(...) O governo anterior, do marechal Floriano Peixoto, tivera,
pelas circunstâncias especialíssimas que o rodearam, função
combatente e demolidora. Mas ao abater a indisciplina emergente de
sucessivas sedições, agravara a instabilidade social e fora de algum
modo contraproducente, violando flagrantemente um programa
preestabelecido. Assim é que nascendo do revide triunfante contra um
golpe de estado violador das garantias constitucionais, criara o
processo da suspensão de garantias; abraçado tenazmente à
Constituição, afogava-a...
Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem. Ao
deixar o poder não levara todos os que o haviam acompanhado nos
transes dificílimos do governo. (...)
Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida
de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral,
constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos
condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava. Segundo o
processo instintivo, que lembra na esfera social a herança de
remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no mimismo
psichico de que nos fala Scipio Sighele, as maiorias conscientes,
mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos
medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente. Surgiram, então, na
tribuna, na imprensa e nas ruas – sobretudo nas ruas –
individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do
próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação nobilitadora, peados
num estreito círculo de idéias, em que entusiasmo suspeito pela
República se aliava a nativismo extemporâneo e à cópia grosseira de
um jacobinismo pouco lisonjeiro à história – aqueles agitadores
começaram a viver da exploração pecaminosa de um cadáver. O túmulo
do marechal Floriano Peixoto foi transmudado na arca de aliança da
rebeldia impenitente e o nome do grande homem fez-se a palavra de
ordem da desordem.
A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os
excessos; e no meio da indiferença geral todas as mediocridades
irritadiças conseguiam imprimir àquela quadra, felizmente
transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. Não lhe
bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação
econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última
insolúvel. E como o exército se erigia, ilogicamente, desde o
movimento abolicionista até a proclamação da República, em elemento
ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no,
atraíam-no afanosamente e imprudentemente.
Ora de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira
César, era quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande
debelador de revoltas.
O fetichismo político exigia manipansos de farda.
Escolheram-no para novo ídolo.»
[Edição crítica de Os Sertões, por Walnice N. Galvão. São Paulo:
Brasiliense, 1985, pp. 319-321; e pp. 281-283, do vol. II, na edição
da Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar editora, 1966].
31 Euclydes da Cunha, em seu estilo característico e num lúcido
comentário mais amplo acerca desse fanatismo republicano, dirá: «Há
nas sociedades retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias
revoltosos da República tinham imprimido, sobretudo na mocidade
militar, um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado
emocional, desvairando-a, e arrebatando-a em idealizações de
iluminados. A luta pela República, e contra os seus imaginários
inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam
a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos
da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo
se batiam à entrada de Canudos tinam todos, sem excetuar um único,
colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do
Marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória – com
o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e
com a mesma aberração fanática, com que os jagunços bradavam pelo
Bom Jesus misericordioso e milageiro...» [cf.: Os Sertões, edição da
Aguilar, p. 395].
32 Cf.: História da República. (Síntese de sessenta e cinco anos de
vida brasileira), 3ª ed. São Paulo: CEN, 1956.
33 Cf. respectivamente: THOMAS, Cláudio Maria: Elementos de História
do Brasil – curso superior, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942
(?); e TAPAJÓS, Vicente: História do Brasil, São Paulo: CEN, 1944.
34 Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957. Só posteriormente, BASBAUM reedita essa obra em 3 volumes, quando então virá a examinar
a questão de Canudos na perspectiva marxista tradicional.
35 Rio de Janeiro: Record, 1978, 16ª ed., pp. 126-174.
36 Cf.: Formação Histórica do Brasil, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1964. Noutra obra sua, do mesmo período, Canudos sequer aparece em
seu "Índice de Assuntos": cf. O que se deve ler para conhecer o
Brasil. Rio de Janeiro: MEC-INEP-CBPE, 1960. Estranha mas
significativa omissão.
37 Utilizo aqui, porém, a sua 12ª edição, significativamente revista
e atualizada por Américo Jacobina LACOMBE: História do Brasil.
Período Colonial, Monarquia e República. São Paulo: Edições
Melhoramentos e Edusp, 1975.
38 Cf.: RODRIGUES, José Honório: História da História do Brasil,
volume II – tomo 1: A Historiografia Conservadora. Col. "Brasiliana"
(grande formato), v. 23. São Paulo: CEN, 1988, pp. 191-193.
39 Cf. VIANNA, Hélio: op. cit., p. 567. [O grifado é do autor].
40 Deixo de examinar mais detidamente duas obras importantes,
surgidas nos anos 70 e 80: Emília Viotti da COSTA, Da Monarquia à
República: Momentos Decisivos, São Paulo: Grijalbo, 1977, e Suely
Robles Reis de QUEIROZ, Os Radicais da República (Jacobinismo:
ideologia e ação, 1893-1897), São Paulo: Brasiliense, 1986. A
primeira porque, nos bons ensaios que a compõem, não trata a autora
de Canudos. E a segunda em virtude de sua autora, a despeito de
examinar justamente a história política do período, referir-se a
Canudos apenas como alusão para descrever com ênfase os desatinos
jacobinistas que constituem seu foco central (cf.: pp. 44-50).
Algumas vezes ela faz afirmações sem fundamento, como ao comenta a
vitória da 4ª Expedição: «O general venceu. Antônio Conselheiro e
seus seguidores foram sangrentamente exterminados num massacre que
horrorizou a nação. (...) O exército expedicionário reduziu-se a
algumas dezenas de homens comandados pelos capitães e tenentes que
restaram. Não havia como explorar tal vitória no terreno da agitação
política.» (p. 60).
41 Cf.: MONTEIRO; Duglas T.: «Um Confronto entre Juazeiro, Canudos e
Contestado», in FAUSTO, Bóris (dir.): História Geral da Civilização
Brasileira, Tomo IX: O Brasil Republicano, 2º vol.: Sociedade e
Instituições (1889-1930). São Paulo: Difel, 1977, pp. 39-92. A
rigor, este estudo só é mencionado aqui para estabelecer o contraste
com a historiografia tradicionalista.
42 Cf.: Op. cit., 8, Tomo III: O Brasil Republicano, 1º volume:
Estrutura de Poder e Economia (1889-1930), p. 47.
43 Cf.: Movimento Operário no Brasil (1945-1964), v. II. São Paulo: Difel, 1981, p. 5.
44 Cf.: Cangaceiros e Fanáticos (gênese e lutas), 2ª ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
45 Cf. CARONE, Edgar: A República Velha (evolução política). São
Paulo: Difel, 1974, pp. 145-168.
46 V. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994, pp. 257-8. Aliás,
ele já tinha dado algo semelhante no capítulo que escreveu para o
livro editado pelo historiador inglês, Leslie BETHELL (ed.): Brazil,
Empire and Republic (1822-1930), Cambridge: Cambridge Univ. Press,
1989.
47 Cf. FAUSTO, Boris: op. cit., pp. 294-296.
48 Cf.: Trajetória Política do Brasil, 1500-1964. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993.
49 V. Evolução Histórica do Brasil. Da colônia à crise da "Nova
República". Petrópolis: Vozes, 1995.
50 Cf.: História Geral do Brasil, 6ª ed. atualizada. Rio de Janeiro:
Campus, 1996. [Colaboradores: Ciro Flamarion CARDOSO, Francisco
Carlos T. da SILVA, Hamilton de Mattos MONTEIRO, João Luís FRAGOSO e
Sônia Regina de MENDONÇA].
51 Cf.: Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, pp. 240-241.
52 Cf.: História do Brasil, op. cit., vol. V, p, 159.
53 É bom lembrar que ‘fanatismo’ traz na sua etimologia o termo
latino fanum, que significa lugar sagrado. Portanto, é o
comportamento ou atitude de quem se crê inspirado pela divindade e
que age segundo outras pautas que não as estritamente racionais.
[Cf.: Olivier DE LA BROSSE et Al.: Dicionário de Termos da Fé.
Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1995, p. 307.
54 Para um antropólogo de sua envergadura, é lastimável, por
exemplo, de ver as inconsistências teóricas e os clichês que ele
repete sobre o "fanatismo messiânico" dos sertanejos em sua obra de
síntese sobre o Brasil: cf. O Povo Brasileiro. (A formação e o
sentido do Brasil). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 352,
354-356, 427-431.
55 Cf. em transcrição mais atualizada: Cartas Jesuíticas 1 – Cartas
do Brasil – Manoel da Nóbrega. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo:
Edusp, 1988, p. 174. [Grifado por mim].
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