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Eduardo Diatahy B. de Menezes

 

A historiografia tradicional de Canudos
 

 

Dr. Eduardo Diatahy B. DE MENEZES*
Prof. Titular do Deptº de C. Sociais
e Filosofia da UFC e da UECE.

 

 

 1– Preliminares
 

«Foi somente devido à descoberta da História – mais exatamente, ao despertar da consciência histórica no judeo-cristianismo e seu desenvolvimento em Hegel e seus sucessores – foi somente devido à assimilação radical desse novo modo de ser no Mundo que representa a existência humana, que o mito pôde ser ultrapassado. Hesitamos, contudo, em afirmar que o pensamento mítico tenha sido abolido. (...) ele conseguiu sobreviver, embora radicalmente modificado (se não perfeitamente camuflado). E o mais surpreendente é que, mais do que em qualquer outra parte, ele sobrevive na historiografia!»

Mircea ELIADE 1
 

«A consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento, da lei, do direito e da moral, as formas fundamentais da comunidade e do Estado, todas elas se encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa.»

Ernst CASSIRER 2

 

Minha tomada de posição inicial estriba-se no suposto segundo o qual o mito situa-se no núcleo primordial de todo imaginário social, como matriz geradora do processo de construção de sentido da humana condição. E, portanto, no corolário de que a história e as ciências constituem a forma de produzir e de dizer o mito hoje, como resposta às aporias fundamentais e incessantes da existência coletiva.

Além disso, é preciso não esquecer que todo discurso competente, ou que se pretende tal, elabora-se a partir de um lugar social. Assim como é mister deixar claro que todo ato de saber se funda num dispositivo de poder. É o locus ocupado numa determinada ordem social que institui a gramática discursiva do pesquisador e mesmo do ficcionista. É daí, desse posto particular, que o estudioso elabora sua visão de mundo ou de determinada realidade. Por outro lado, isso vem atravessado pelas correntes de idéias e crenças que entretecem o horizonte cultural e ideológico de uma época. Portanto, a escritura da História não foge a essa condição. Aliás, o Padre Vieira resumia essas idéias de uma forma muito mais perfeita e simples:

«Todas as penas nasceram em

carne e sangue, e todos na tinta

de escrever misturaram as cores

de seu afeto.»

Assim, a despeito do seu inequívoco enraizamento no chão histórico brasileiro, em virtude porém de sua feição de iluminismo colonizado, na consciência da geração do final do século XIX e primeiras décadas do atual, as coordenadas cartesianas dominantes e definidoras do espaço cultural de nossa tradição letrada passavam pelos meridianos de Paris e Londres, e por paralelos situados muito acima da linha equinocial. Eis por que, por exemplo, na cabeça de um Euclydes da CUNHA, bem antes de conhecer efetivamente a realidade de Canudos, já se lhe firmara a convicção de tratar-se de "nossa Vendéia" o que ali ocorria. E seria quase impossível outra comparação menos dignificante e sapiente.

É o que sublinha José Maria BELLO quando assevera: «em todos os ramos de atividade intelectual, não conseguiam os brasileiros emancipar-se da absorvente influência européia, ou, mais especialmente, da influência francesa. Faltariam às nossas letras sabor próprio e perfeita identificação com os sentimentos nacionais. (...) Os homens de pensamento e de sensibilidade estética vivam muito mais no ambiente espiritual da Europa do que no brasileiro.» 3 E Cruz COSTA insistirá no mesmo diapasão ao afirmar incisivo: «Conhecíamos melhor a Europa do que o que se passava nas diferentes províncias do Império. País importador de idéias, as nossas eruditas elites litorâneas do século XIX sofregamente procuravam informar-se do que se passava nos grandes centros da Europa, esquecidas, freqüentemente, de indagar daquilo que lhes ia em redor.» 4
 


 

Apresentados assim sumariamente meus supostos de base, gostaria de esclarecer desde logo os limites de minha proposta. Obviamente, não é minha intenção empreender aqui uma análise exaustiva da historiografia tradicional de Canudos. Meus propósitos são mais modestos. Sequer estão fixados no tema evidenciado no título deste trabalho, pois buscam ir além. Ou antes, pretendem servir-se do exame dos materiais relativos a esse caso específico como suporte ou ilustração para uma reflexão acerca dos processos de elaboração da nossa história.

Se, em trabalho anterior sobre a religião do povo em Canudos, eu fui estimulado a realizá-lo a partir da questão crucial que levanta MACHADO DE ASSIS quando, na sua crônica semanal de 31 de janeiro de 1897, indagava: «Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos deles e o resto não se despega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os prende até a morte. Que vínculo é esse?» - agora, sou movido a percorrer os caminhos de nossa historiografia tradicional a partir de duas observações básicas de Euclydes da CUNHA. A primeira delas, ele a põe em destaque no início do tópico em que examina a religiosidade do povo, com esta afirmação fortíssima: «As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador.»5 E a segunda, ele a enuncia ao começar o seu esboço do hediondo retrato que retraça de Antônio Conselheiro, nestas duras palavras: «Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. (...) Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a História como poderia ter ido para o hospício.» 6

Euclydes da CUNHA inaugura aí uma das vertentes mais enraizadas da historiografia de Canudos. Ele constrói o seu paradigma impregnante. Todavia, ao contrário de sua concepção e a despeito de reconhecer a enorme importância de sua obra para visibilização histórica desse movimento popular, como nenhum outro semelhante teve até hoje, a minha convicção profunda reside na tese segundo a qual foi Antônio Vicente Mendes MACIEL, o Conselheiro, quem, com a realização de sua utopia cristã e sertaneja, retirou do anonimato dos almanaques militares para o território da História todos quantos dele participaram, inclusive do Tenente Pires FERREIRA ao Marechal BITTENCOURT, e o próprio Euclydes que, sem essa circunstância, não disporia de tema e paixão para a sua epopéia brasileira.

Mas não é esse o alvo de minha reflexão aqui. Retenho pois dessas observações apenas a sua intuição central, que me permite formular o seguinte questionamento: Que faz de um fato banal qualquer da vida quotidiana de uma pobre gente um acontecimento histórico de relevo? Como explicar que um cidadão anônimo qualquer se transforme em personagem da História, em meio a milhões de seres humanos que nascem, crescem e morrem sem deixar nenhuma marca de sua passagem?

Evidentemente, também não constitui meu escopo oferecer aqui uma resposta imediata a este questionamento, que aí vai apenas para servir de fio condutor ao que se seguirá na segunda parte deste trabalho, onde pretendo examinar uma amostra de textos relevantes dessa historiografia. Como quer que seja, faço minhas as palavras de Gilbert Durand, ao apreciar questão semelhante em sua intervenção numa obra coletiva sobre história e imaginário dirigida por Jacques Le Goff:
 

«Por certo, às vezes, em determinada sociedade, existem fatores extrínsecos, fatores materiais, acontecimentais: uma invasão, uma seca, um movimento de população vão evidentemente desencadear um imaginário (...); porém, malgrado tais incidentes extrínsecos inelutáveis, creio que as velhas filosofias da História têm assim mesmo razão: existe uma causação interna, há algo que está contido no conjunto do próprio discurso cultural e que é verdadeiramente uma "causalidade formativa". Existem múltiplos exemplos disso. (...) Mas enfim, na maior parte do tempo, percebe-se que as ideologias...conduzem mais freqüentemente o mundo que os "fatos" positivos. (...) penso que a ciência das ciências em antropologia é a ciência dos próprios movimentos dos conjuntos imaginários, desses conjuntos de longa, de média e de curta duração, e que é aí que reside realmente o material de estudo mais fiável, mais heurístico, bem mais heurístico que os famosos "fatos". Os fatos, não sabemos muito bem que são eles, sobretudo se os cortarmos de todo "discurso", isto é, de toda filosofia da história. (...) De todo modo, é mister observar que, em história, não existem jamais documentos de primeira mão. Isso não existe! Todo documento que nos chega é já um produto humano, uma interpretação humana.» 7
 

Passemos pois ao exame do tema central deste trabalho.
 


2. – Exame dos Materiais

«isto de método, sendo, como é, coisa indispensável, todavia, é melhor tê-lo sem gravata, nem suspensório, mas um pouco à fresca e à solta, como quem não se lhe dá da vizinha fronteira, nem do inspetor do quarteirão.»

MACHADO DE ASSIS

Parece óbvio que se impõem de imediato algumas questões de natureza metodológica e conceptual. Desde logo, que textos pretendi contemplar com tal designação de "historiografia tradicional"? Que critério adotar para classificá-los como tradicionais, sem recair num esquematismo cronológico segundo o qual as publicações mais antigas seriam necessariamente conservadoras e os textos mais recentes, progressistas? Que tamanho deveria possuir uma amostra significativa e representativa do corpus a ser analisado?

A essas e a outras questões da mesma natureza procurei responder buscando caminhos parcimoniosos e bastante simples. Aliás, não procuro render homenagem ao culto ritual ou litúrgico em matéria de metodologia. Nesse terreno, prefiro seguir o sábio conselho do velho MACHADO DE ASSIS, dado pela boca de seu Brás Cubas, e que pus em epígrafe deste tópico.

Por exemplo, para os efeitos deste estudo, encarei como historiografia tradicional o legado que nos vem sobretudo da produção dos nossos institutos históricos, que gerou uma vertente bem acolhida no seio das nossas elites acadêmicas e letradas. De algum modo, essa tradição perdura até hoje, inclusive com seu forte vezo positivista de perseguir uma história nitidamente factual ou acontecimental, sem articulação causal ou explicativa, e que opera como se supusesse uma ordem normal e mais ou menos permanente da existência coletiva, de que divergiriam alguns fatos episódicos e perturbadores. Essa historiografia é suficientemente divulgada e conhecida, estando na base da principal produção de nossos manuais de história pátria em todos os níveis.

Quanto à representatividade e validade da amostra, decidi pelo exame de cerca de três dezenas de obras, tomando como critério de inclusão tanto o estilo cognitivo da historiografia que praticam, quanto o caráter prestigioso de sua recepção, que institui os chamados "autores consagrados". Por outro lado, foram sistematicamente excluídos os textos de monografias específicas, desde as da primeira hora – como as de Euclydes da CUNHA e contemporâneos – até as posteriores, em especial as mais recentes e mais revisionistas e analíticas (NOGUEIRA, OTTEN, VILLA, BERNUCCI, LEVINE, etc.). Enfim, além desses critérios, pesou significativamente na escolha dos textos o tratar-se de compêndios gerais ou de um período da nossa história, de modo a permitir como recurso de análise a verificação do espaço quantitativo e qualitativo que o movimento de Canudos neles ocupa.
 


 

Dispondo desse esquadro criteriológico e analítico, um dos primeiros textos com que se poderia iniciar este estudo seria por certo a obra de CAPISTRANO DE ABREU, pioneiro de nossa historiografia moderna ou renovada. Lamentavelmente, porém, ele dedicou a maior parte de seu labor investigatório à reconstrução das fontes de nossa história colonial. Assim, em toda sua obra conhecida, Capistrano só dedicou à história mais próxima de sua época um único e curto ensaio de síntese, intitulado «O Brasil no século [XIX]», publicado justamente em A Notícia de 1º de Janeiro de 1900. Mesmo aí, ele não atribui importância maior ao tema que estou a examinar. Em compensação, traz saborosas páginas de fina e lúcida ironia, como ao apreciar a proclamação da República:
 

«A 15 de Novembro de 89 organizou-se um governo provisório pelo exército e pela armada, em nome da nação. Até o fim do ano pouco deu que falar e, em geral, mostrou-se à altura dos acontecimentos; com o novo ano parece que, invadindo-o o receio de que poucos dias teria de vida, febrilmente pulularam leis, regulamentos, reformas, gratificações, concessões, privilégios que maravilhosamente afinaram com a epidemia bolsista conhecida pelo nome de Encilhamento.» 8
 

Uma só vez refere-se ele a Canudos, mesmo assim de passagem – é quando ao dizer que o governo de Prudente de Morais enfrentou quatro anos de agitação de toda ordem e que a atitude do antecessor foi de hostilidade nada civil antes e depois de sua posse, ele conclui:
 

«Elementos armados, afeitos à onipotência sob o regime precedente, mais de uma vez investiram contra ele, esquecida sua missão no ódio do biriba,9 como era de bom gosto chamar-lhe. De Canudos mais depressa se telegrafava para os foliculários 10 e agitadores que para os seus superiores hierárquicos.»
 

E depois de analisar os fatos políticos que se seguiram a seu governo, ele conclui o ensaio com esta nota maliciosa:
 

«Quando a 15 de novembro de 1898 Campos Salles assumiu a presidência, desanuviara-se o horizonte... Os piores inimigos deixaram a atitude agressiva e, ao abrir-se a sessão do Congresso, em 1899, apresentaram-se os dois partidos a apoiá-lo: um, porque se batera pela sua eleição e a fizera triunfar, outro, porque os interesses imprescritíveis da Pátria exigiam o agrupamento à volta de seu representante mais autorizado.

Chamavam-se estes o partido da Concentração.

Continuarão as coisas no mesmo pé no ano que começa? A concentração dos dois partidos lembra a fábula do homem grisalho que tinha duas amantes: a velha arrancava-lhe os cabelos pretos, a moça arrancava-lhe as cãs.»11
 

Portanto, autores, com produção historiográfica nesse período da transição do século XIX para o atual, não enfrentaram em geral a aventura de elaborar a história imediata. É o caso, para ilustrar a observação, do Barão do RIO BRANCO, cujo Efemérides Brasileiras posto seja publicação póstuma, preparada e anotada por Rodolfo GARCIA, nasceu de sua colaboração iniciada em 1891 ao Jornal do Brasil, fundado no mesmo ano pelo Conselheiro Rodolfo DANTAS: assim, em suas mais de 700 páginas, não chega a contemplar o tema de que me ocupo.12

Desse modo, a primeira grande obra de nossa história a examinar efetivamente o movimento de Canudos, foi o livro do Padre Raphael Maria GALANTI, jesuíta e historiador nascido em Piceno, Itália, em 1840 e morto em Friburgo, RJ, em 1917. No Brasil, ele circulou pelo Amazonas e o Pará, ensinou no colégio dos jesuítas em Itu, SP., e foi sobretudo professor de Filosofia e História no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, e sócio correspondente de vários Institutos Históricos. A obra a que me refiro é a sua História do Brasil, em 5 tomos, publicada entre 1896 e 1905, cuja parte relativa ao Segundo Império e à República não tinha modelo a seguir, tendo sido, portanto, a pioneira. Infelizmente, não tive acesso a esse texto, mas possuo a sua edição resumida para fins escolares.13

Nessa ordem de consideração, a obra seguinte é a monumental História do Brasil de José Francisco da ROCHA POMBO, em 10 volumes de grande formato, publicada entre 1915 e 1917, mas cuja primeira edição de J. Fonseca Saraiva é de 1905, no Rio de Janeiro.14 De certa maneira, esta obra compensa a ausência da anterior na medida em que sua narrativa, conforme assinala o próprio autor, segue fundamentalmente a exposição do Padre GALANTI que, por sua vez, «resume os dois mais valiosos documentos que temos à vista (Os Sertões, de Euclydes da CUNHA, e a Guerra de Canudos, do dr. Aristides MILTON)...». 15 Esta referência intertextual surpreende na sua origem a formação disso que venho chamando de historiografia tradicional de Canudos, mostra o paradigma em sua gênese.

Algumas características deste texto o singularizam em relação a outros. Com efeito, inserindo o relato e as considerações acerca das ocorrências relativas a Canudos no quadriênio do primeiro presidente civil da República e, portanto, tendo como pano de fundo, as agitações políticas que explodiram no governo anterior e se projetaram no novo, o autor é o primeiro a dedicar um espaço significativo a esse movimento popular (43 pp.). 16 Há imprecisões de datas e dados, sobretudo quanto aos fatos relativos ao Conselheiro e à campanha contra Canudos – como, por exemplo, quando o autor dá o ano de 1835 como o do nascimento de Antônio Vicente Mendes MACIEL. A linguagem é simples e o relato, mediante longas citações de suas fontes já mencionadas, é razoável. Sua semântica discursiva, todavia, se insere na construção da imagem desfavorável à gente e ao líder do movimento: aquela é chamada de fanática, devassa e criminosa, e o Conselheiro é pintado num desvario delirante, sendo o juízo final e o fim do mundo o assunto predileto de suas prédicas, no que aliás se aproxima de Euclydes. Dois aspectos dão relativa importância ao seu texto: primeiro, o fato de o autor reproduzir boa base documental, como o faz quando transcreve a maior parte do Relatório de Frei João Evangelista de MONTE MARCIANO; e em segundo lugar, o fato de, a despeito de ser ele um historiador reconhecidamente conservador e até tomar partido a favor das forças repressoras – como, por exemplo, quando ao descrever os combates refere-se àquelas sempre como "os nossos" - , a despeito disso, repito, ao final do relato, ele menciona o protesto dos estudantes de medicina da Bahia contra as estrondosas manifestações de júbilo aos vitoriosos que haviam praticado horrendas crueldades na campanha, e termina dizendo:
 

«Cumpre, portanto, aqui perguntar se houve deveras, ou não, essas crueldades. O dr. Aristides Milton, citando o general Dantas Barreto, afirma ter havido, e muitas. Euclydes da Cunha, referindo o que viu, descreve essas crueldades com cores bem carregadas. Mas nós nos dispensamos de tarefa tão triste... A cena é medonha demais... Aqui, entre parênteses, perguntaremos apenas: que fim teriam levado aquelas 300 míseras criaturas que o Beatinho apresentou no acampamento?».17
 

E ele conclui o tópico reproduzindo o valioso documento constituído pelo manifesto apresentado pelos estudantes da Faculdade Livre de Direito da Bahia, denunciando as atrocidades e exigindo do novo regime o respeito ao estado de direito.

Alguns anos antes, em 1900, mas pertencendo ao mesmo período, surge a História do Brasil, curso superior, de João RIBEIRO (Laranjeiras, SE, 1860 – Rio de Janeiro, 1934), que inaugura uma perspectiva nova na interpretação de nossa evolução histórica.18 É de lamentar, porém, que, apesar de suas mais de 400 páginas, estas só examinem o período republicano mediante curtos parágrafos relativos aos quadriênios presidenciais, como se tornou costume nos manuais de intenções didáticas. Assim, no de Prudente de MORAIS, o autor repete numa referência sumária: «venceu a rebelião dos fanáticos de Canudos onde pereceram numerosas tropas que desconheciam o sertão e mal calculavam os recursos desses jagunços sertanejos dirigidos por um quase louco, o místico Antônio Conselheiro. O reduto de Canudos foi afinal destruído (1896-1897) ao cabo de seis meses de lutas.»19 Como se pode constatar, ele nada acrescenta de ganho e só reforça a estereotipia do discurso negativo acerca do tema.

Nas duas décadas seguintes, esse padrão se reproduz recorrentemente.

É óbvio que inúmeras obras do gênero foram sendo publicadas no período. Mas pelos critérios adotados, só é relevante registrar aquelas cuja vigência tocou de perto o interesse do público que garantiu sua recepção. Nessa perspectiva, pode-se assinalar a História do Brasil de Mário da Veiga CABRAL (Rio de Janeiro, 1894 – Idem, 1973),20 que vai conhecer desde seu aparecimento em 1920 enorme sucesso, visto que foi sendo bafejada por elogiosas resenhas de figuras como João RIBEIRO, Rocha POMBO e muitos outras, assegurando-lhe inúmeras edições nas décadas seguintes. Conforme a tradição que já se firmara, o autor examina Canudos no capítulo XXXVII, referente ao "Segundo Quadriênio (1894-1898)". Para uma obra de grande formato e mais de 600 páginas, é inteiramente indigente e secundária a síntese de meia página que o autor dedica a Canudos: mencionando em nota de rodapé que existem duas obras importantes «sobre esse movimento de fanatismo» - Os Sertões de Euclydes da CUNHA e Os Jagunços de Afonso ARINOS – nele não encontra nenhum fato que mereça relevo e chega a atribuir ao vice-presidente, Manoel VITORINO, a iniciativa das duas primeiras expedições. Aliás, em suas 14 páginas, o capítulo se estende excessivamente na questão de limites com a Argentina, na invasão do Amapá pela França, e, sobretudo, no atentado a Prudente de MORAIS, que resultou na morte do Marechal Carlos Machado BITTENCOURT, tudo isso numa retórica heroificante e patriótica, bem ao gosto do estilo dessa historiografia.

Há uma obra desse período que merece mencionada por seu silêncio sobre o assunto. Embora produzida como introdução geral ao Censo Demográfico de 1920, foi publicada depois, em 1922, como livro autônomo e teve várias edições sucessivas sem alterações significativas, tornando-se referência básica dos estudos brasileiros como representante de sua vertente ideológica. Refiro-me ao livro de F. J. OLIVEIRA VIANNA (Rio Seco de Saquarema, RJ, 1883 – Niterói, RJ, 1951), sobre a evolução da raça, da sociedade e das instituições políticas do Brasil.22 Com efeito, a obra não traz qualquer menção à existência de Canudos. É somente num livrinho posterior, de menor importância no conjunto de sua obra, que se vai encontrar, conforme sua perspectiva de nostalgia autoritária, observações assim mesmo agudas acerca dos movimentos sertanejos, em que Canudos entra comparativamente:
 

«Outra, não há dúvida, teria sido a orientação da nossa política e da nossa actividade administrativa, si essa zona de attritos entre o poder central e as forças regionaes, envez de se ter localizado na orla maritima, se houvesse fixado no interior do grande massiço central, onde vivem as nossas populações sertanejas. Então, essa grande energia centralizadora – que o Imperio, dirigido por grandes constructores politicos, do pulso e da estatura de Feijó, e por estadistas conservadores, da tempera e educação de Itaborahy e de Uruguay, desdobrou inteiramente á orilha dos litoraes, desde 1822 – ter-se-hia desencadeado sobre os sertões, como sobre o pampa a energia dos unitarios da escola de Sarmiento e de Rivadavia.
(...)
Somente quando uma dessas irrupções fragorosas de banditismo ou de fanatismo, como a de Canudos, exorbitando as lindes locaes, vem sacudir-nos de nossa indifferença, é que nós, os litorâneos, nos voltamos para essas vagas regiões de caatingas asperas e bravias – e, interrogamos, feridos de surpresa, e aturdidos, e inquietos, e espantados, essa vastissima Mongolia nacional, tumultuante na sua innumeravel barbarie de tunguzes de cangaço...
Somente quando uma dessas irrupções fragorosas de banditismo ou de fanatismo, como a de Canudos, exorbitando as lindes locaes, vem sacudir-nos de nossa indifferença, é que nós, os litorâneos, nos voltamos para essas vagas regiões de caatingas asperas e bravias – e, interrogamos, feridos de surpresa, e aturdidos, e inquietos, e espantados, essa vastissima Mongolia nacional, tumultuante na sua innumeravel barbarie de tunguzes de cangaço...[pp. 144-145]
(...)
O systema moderno, isto é, o que empregamos em Canudos e no Contestado, é differentissimo e mesmo inteiramente contrario ao velho systema colonial. Contra as explosões intermittentes da indisciplina sertaneja, os estadistas republicanos preferem realizar uma vasta mobilização de brigadas militares, imponentes, magestosas, formidandas. Essas poderosas massas de exército movem-se penosamente das capitaes da costa até as profunduras da "selva selvaggia" dos sertões remotos. Assediam, depois, o fóco de banditismo revolto. Dizimam, depois, a fogo de metralha, a sertanejada brava. E retornam, depois, anciosas e prestas, ás claras capitaes da costa e ás suas avenidas resplandescentes...

Nas regiões "pacificadas", por sobre os escombros das choupanas destruidas e incendiadas, só encontrareis a desolação e o deserto. Nada alli fica que atteste a presença deste poder tremendo, que só se revela pela bocca das carabinas. Nem um posto policial. Nem uma aldeia. Nem um centro judiciario e social. Nada que indique um desejo de legalidade. Nada que continue pelos tempos em fóra a soberania do poder publico...

Diante de um caso como o de Canudos ou o do Contestado, os antigos e experientes administradores do periodo colonial não se limitariam, como os do periodo republicano, a fuzilar os bandidos de cangaço ou os seus caudilhos e chefes. Teriam estabelecido no meio delles,
depois de feita a repressão, um centro de autoridade estavel e definitivo: teriam fundado povoações.»[pp. 162-163].23
 

Não obstante uns laivos de aparente simpatia pelas populações sertanejas, que servia de fato apenas para atacar a República e manifestar sua preferência pelo período colonial e monárquico, é fácil de ver que a adjetivação empregada por OLIVEIRA VIANNA para caracterizar tais movimentos e o seu viés interpretativo não fazem mais que reanimar o discurso típico da historiografia conservadora, onde o povo não conta efetivamente como protagonista e o poder central é o demiurgo geral.

Entretanto, exatamente em 1930, no limiar da nova década que traria tantas transformações na nossa paisagem política, econômica e cultural, sai publicado o livro Formação Histórica do Brasil, de João Pandiá CALÓGERAS (Rio de Janeiro, 1870 – Petrópolis, 1934), uma das figuras mais destacadas da inteligência brasileira da primeira República: engenheiro, economista, historiador, estadista, um dos maiores especialistas em economia e política minerais do país, membro do Instituto Histórico Brasileiro, grande amigo de Capistrano de Abreu, deixou um volume impressionante de publicações. No entanto, a obra aqui referida, posto constitua um clássico de nossa historiografia, em suas 511 páginas, não dedica mais de 5 aos eventos políticos em que se envolve Canudos. De fato, num tópico intitulado Fanatismo sertanejo, fazendo extemporânea comparação com o movimento ulterior do Contestado, ele não foge, em meios a erros factuais, à inclinação da historiografia tradicional de produzir uma síntese preconceituosa sobre o evento.24 E isso é penoso em livro de valor!

Dois anos depois entra em cena novo historiador, típico representante da historiografia tradicional: Pedro CALMON (Amargosa, BA, 1902 – Rio, 1985). Como o anterior, foi também figura prestigiada pelas elites acadêmicas: historiador, professor de Direito Constitucional, reitor da antiga Universidade do Brasil, ministro da Educação no governo Dutra, membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, deixou obra numerosa onde divulgava com leveza e humor sua erudição literária. O espaço e apreciação que dedica a Canudos se constrói sucessivamente em três obras acerca de nossa história. Na primeira dela, de 1932, que o autor justifica em nota explicativa: «Este livro não é um compêndio, nem é um tratado. É uma nova síntese da História do Brasil: história social, econômica, administrativa e política. A História da Civilização Brasileira. Destina-se aos estudantes dos cursos superiores...»25 De fato, era um livro inovador para época, com umas tinturas de análises sociológicas e contendo aspectos pouco habituais em manuais desse porte. Canudos aí ocupa pouco mais de uma página, com um relato simplificado que contém equívocos, confundindo ocorrências básicas e datas, e contendo erros primários. É expressão do desprezo que nossa tradição letrada reserva às coisas das camadas subalternas.

Sua segunda obra introduz uma temática efetivamente nova e que se coadunava com as perspectivas abertas por essa década dos grandes interpretadores do Brasil. Refiro-me à sua História Social do Brasil, em 3 volumes, publicados entre 1937 e 1939, em que era examinado nos dois primeiros volumes o espírito de nossa sociedade no período colonial e imperial, e, no terceiro, a época republicana.26 Agora, o tema de Canudos já recebe melhor acolhida. No capítulo VI do tomo 3, dedicado ao quadriênio de Prudente de Morais, há mesmo um tópico específico intitulado «A Epopéia dos Sertões»: embora contendo ainda algumas imprecisões e o equívoco de chamar Antônio Vicente Mendes MACIEL de "monge" – designação específica de líderes de movimentos sociorreligiosos do Sul - , o exame da questão aparece com mais argúcia, insistindo desde logo no papel representado pela imprensa, ele afirma que «Canudos foi mais invenção de publicidade nefasta do que arraial de revoltosos.» 27 Ou seja, conforme assinala o autor, tratava-se das falácias criadas com o regime: salvação da República com a descoberta dos sebastianistas – no caso, o termo identificava os restauradores monarquistas que a ameaçavam com suas conspirações. Numa nota de rodapé à página 70, ele ainda assinala a falta de fundamento das relações do Conselheiro com tais políticos e do envio de armamento para Canudos; enfim, o autor conclui: «No espólio do fanático nada se encontrou em abono das suspeitas.» No mais, ele segue o modelo discursivo que venho sublinhando.

Para um historiador nitidamente conservador, Pedro CALMON demonstra efetiva renovação em seu estilo interpretativo duas décadas depois, ao publicar em 1956 uma nova história do Brasil, em 5 volumes.28 Por essa época já se renovava a historiografia sobre Canudos, em particular com os trabalhos que o professor José CALASANS principiara a publicar. Assim, o tratamento dado a Canudos e ao quadriênio (1894-1898) nesta terceira obra é bem mais amplo: quatro capítulos distribuídos em 48 páginas. Embora o autor incida mais uma vez na conceituação tradicional para caracterizar o movimento de Canudos e ainda insista em chamar o Conselheiro de "monge", seu relato agora é mais consentâneo e matizado, a documentação mais consistente e as fontes historiográficas bem mais ricas. Mas sobretudo ele intensifica a análise crítica do jogo de interesses dos grupos políticos em disputa, em especial da seita fanaticamente jacobina à volta do túmulo de Floriano e de seu legado autoritário, principal elemento perturbador das instituições políticas da época. Eis por que Pedro CALMON cita a esse propósito um comentário judicioso de MACHADO DE ASSIS em sua crônica semanal por ocasião da apoteose em que se transformou o enterro do marechal Floriano PEIXOTO:
 

«Os mortos não vão tão depressa como quer o adágio; mas que eles governam os vivos, é coisa dita, sabida e certa. Não me cabe narrar o que esta cidade viu ontem...»29
 

Por outro lado, ele atribui à astúcia política de Lauro Muller a idéia de indicar o nome do coronel Moreira César para comandar a 3ª expedição contra Canudos, livrando-se assim da sua presença em Santa Catarina, incômoda para sua facção, ao mesmo tempo que «antepunha ao fanatismo de um lado o fanatismo do outro, para que se defrontassem nas caatingas do Nordeste essas duas formas de loucura» [p. 135].30 A esta altura de sua análise, o autor propõe curiosa tipologia de 3 categorias de sebastianistas, que campeavam longe e perto do governo, inclusive na rua Ouvidor, epicentro dos terremotos políticos de então: havia os sebastianistas monárquicos, desnorteados com a derrota de Saldanha mas intransigentes na oposição política; havia os florianistas, que o invocavam a toda hora como se o marechal estivesse vivo, distribuíam pequenos retratos seus como se foram imagens bentas, e realizam constantes romarias ao seu túmulo no São João Batista, sendo o seu culto uma espécie belicosa de sebastianismo e Moreira César, um dos ídolos dessa heresia republicana;31 e havia, por último, o sebastianismo vetusto dos fanáticos conselheiristas... [passim]. Enfim, o autor encerra sua apreciação com incisiva denúncia das atrocidades da campanha. No conjunto, porém, o quadro esboçado repete as linhas gerais dessa vertente historiográfica, com evidente influência do modelo euclydiano de explicação.

Entre as duas últimas obras de Pedro CALMON, mais precisamente em 1940, vem a lume uma das melhores histórias da República deste período, da autoria de José Maria BELLO (Barreiros, PE, 1885 – Rio, 1959),32 que dedica parte do capítulo XI e dois terços do XII ao exame do movimento de Canudos. Embora o conjunto da obra seja inovador, no tocante ao tema que nos interessa aqui, o autor não consegue livrar-se do fantasma de Euclydes, de cujo livro afirma ter definido "o exato sentido" daquele movimento. Assim, ele repete em essência o mesmo modelo explicativo: descreve o Conselheiro como um «estranho asceta, sexagenário e meio louco» [p. 200], à volta do qual aglomera-se a multidão de fanáticos, e produz um relato que chega às vezes a ser superficial e incoerente.

Os manuais didáticos do período, mesmo os que se destinam ao nível superior – como é o caso da história do Brasil da coleção FTD ou a da autoria de Vicente TAPAJÓS 33- limitam-se a resumir em uma ou duas páginas as mesmas fontes tradicionais (Euclydes, Galanti, Rocha Pombo, etc.), freqüentes vezes sem referi-las devidamente.

Um caso curioso da década seguinte encontra-se no texto de Leôncio BASBAUM e isso desde o seu título: História Sincera da RepúblicaDas origens até 1889 – tentativa de interpretação marxista.34 Com efeito, esta estranha história da República limita-se a estudar a sua gênese desde o período colonial e pára no final do Império. Portanto, sem a mínima menção a Canudos.

Não obstante, o caso mais singular desse período ocorre com um texto sobre a história republicana, do escritor Graciliano RAMOS (Quebrângulo, AL, 1892 – Rio, 1953). Com efeito, numa crônica de agosto de 1939, intitulada «Prêmios» e incluída posteriormente em sua obra póstuma, Linhas Tortas (1962), é o próprio autor quem informa sobre a origem desse seu texto historiográfico: «Diretrizes [revista] vai chamar concorrentes para uma história da República, livro destinado às crianças.» Assim, sua Pequena História da República, publicada depois no seu livro Alexandre e Outros Heróis,35 data de janeiro de 1940. Seus erros factuais são o de menos. O que mais estranha nesse ensaio – de um autor que nos deu textos de clássica lucidez sobre o cangaço e a vida do sertanejo do semi-árido nordestino – é que ele dedica 3 páginas pífias a Canudos e que se iniciam por estas palavras preconceituosas: «Antônio Conselheiro, um pobre diabo, tencionava, com ladainhas e benditos, salvar a humanidade. A humanidade está sempre em perigo, na opinião de indivíduos assim.» [p. 151]. E segue nesse tom até o fim do seu relato.

Nas décadas de 60 e 70, tanto os compêndios didáticos se renovam quanto a historiografia acadêmica aprofunda a sua visão crítica e amplifica suas dimensões analíticas. Paralelamente e em conseqüência, os movimentos populares de nossa história, sobretudo os da área urbana e operária passam a merecer espaço mais significativo e interpretação mais diversificada. Nem sempre, porém, ocorre essa renovação no que tange aos movimentos sertanejos e ao de Canudos em especial.

Para ilustrar, cito dois exemplos vindos de vertentes contrapostas.

Nascido de curso sobre a Formação Histórica do Brasil, proferido por Nelson Werneck SODRÉ, desde 1956, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), um livro de pretensões analíticas inovadoras aparece no início dos anos 60.36 Dentro de um quadro doutrinário marxista e com viés economicista à outrance, essa obra pressupõe na verdade um leitor com razoável conhecimento dos fatos históricos dos últimos cinco séculos, pois não vai além de sua leitura interpretativa. É assim que, em suas mais de 400 páginas, num tópico em que examina a "Crise da República", dedica a Canudos e a movimentos semelhantes apenas um parágrafo de hermenêutica bastante duvidosa, na qual a religião do povo não passa de grosso fanatismo sem papel relevante a considerar:
 

«No campo, realmente, as relações feudais e semifeudais permitiam uma aparente estabilidade. Mas, ainda assim, o episódio de Canudos surgia, logo depois do desaparecimento do florianismo [sic!], como um sinal de alarma. Sob o manto do fanatismo religioso, Canudos não foi mais do que manifestação violenta, e até heróica, de uma população relegada ao mais baixo nível e nele mantida por longo tempo. Em outros lugares, e sob formas diferentes, sintomas da mesma inquietação repontavam. Em nenhuma área com a clareza assinalada em Canudos e, um pouco depois, no Contestado: a luta dos sem terra, de gente desprotegida, atirada ao desespero e cobrindo o desespero com a espessa capa do fanatismo religioso.» [p.309].

 

No extremo oposto, pode-se assinalar a obra de um representante por excelência do nosso tradicionalismo acadêmico, força ainda dominante e consagradora nos anos 60. Refiro-me ao livro sobre nossa história, de Hélio VIANNA (Belo Horizonte, 1908 – Rio de Janeiro, 1972), que se orgulhava de ter assumido, em 1939, a primeira cátedra federal de História do Brasil, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, da então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Discípulo entusiasmado de Plínio SALGADO, em 1941, assumia a cátedra de história da América na PUC do Rio de Janeiro, foi, também, professor de história moderna e contemporânea da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Instituto Santa Úrsula, da mesma cidade, e membro da Comissão de Estudo dos Textos de História do Brasil do Ministério das Relações Exteriores e da comissão diretora de publicações da Biblioteca do Exército (Ministério da Guerra). Pertenceu à Academia Portuguesa de História, ao Instituto de Coimbra, à Sociedade Capistrano de Abreu, à Academy of American Franciscan History (Washington), ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e ao Instituto Histórico de Alagoas, sendo ainda sócio honorário de entidade semelhante de Sergipe, e sócio correspondente dos institutos históricos do Amazonas, Pará, Rio Grande do Norte, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás. Pesquisador sério da velha estirpe historiográfica e autor de numerosa obra, o seu livro em apreço, embora anunciado desde o início de seu ensino universitário na matéria, só aparece em dois volumes, em 1963, com sucessivas edições nos anos seguintes.37

Depois de por em destaque tanta consagração e apoio institucional, é mister que se diga ter sido o conjunto de sua obra historiográfica alvo de arrasadora apreciação crítica da parte de José Honório RODRIGUES, num tópico intitulado "A Historiografia de extrema direita", posto ressalve os méritos de rigor factual de alguns dos seus livros [Contribuição à História da Imprensa Brasileira (1812-1869), Rio, 1945; História Administrativa e Econômica do Brasil, São Paulo, 1951; Estudos de História Imperial, São Paulo, 1950; Vultos do Império, São Paulo, 1968]:
 

«O íntimo da gênese historiográfica dos regressistas é o tradicionalismo. (...) A historiografia de Hélio Vianna como a de Gustavo Barroso se igualam – se não na forma e no conteúdo, mas no objetivo. Ambos são dois pequenos reacionários, destituídos de filosofia, de teoria, mas não de objetivo ideológico. São ambos subprodutos do conservadorismo e estão longe de seguirem uma linha reacionária coerente e lógica como a de Oliveira Vianna. Hélio Vianna, mais que Gustavo Barroso, escreveu uma história formal, que aceita o quadro imposto pelas classes dominantes. (...) e uma história convencional, que aparenta um ar de respeitável antigüidade e aceita os arranjos legais e econômicos que favorecem as mesmas classes. (...) A história que apresenta ensina somente a lição do conformismo. (...) A conseqüência mais grave desse ensino é que ele representa uma tentativa de colonização da juventude brasileira. Tal historiografia conservadora e colonialista conta com o apoio oficial e pré-oficial que com ela se identificam. (...) Ele possui o fetichismo dos fatos e dos dados. Embora pretenda usar o passado para orientação política do presente, é saudosista... Não há idéia, não há compreensão. Há idealização, especialmente para quem o viu de camisa verde, como um convicto integralista. Hélio Vianna foi o exemplar mais eminente da historiografia antiquária... »38
 

Em suma, na sua História do Brasil, em grande formato e quase setecentas páginas, a história de Antônio Conselheiro e de Canudos não comporta mais que meia página de um relato absolutamente sumário e factual, que em parte lembra o do livro de Veiga CABRAL, e cuja justificativa para o massacre se resume nestas palavras:
 

«No sertão do Nordeste do Estado da Bahia, no Arraial de Canudos, à margem do Rio Vaza-Barris, reuniu-se, nos primeiros anos da República, um forte núcleo de fanáticos, chefiados por Antônio Vicente Mendes Maciel, vulgo Antônio Conselheiro.

Desobedecendo às autoridades eclesiásticas e estaduais, que tentaram obter a sua dispersão, houve necessidade de recorrer à força.»39
 

Portanto, conforme tem sido assinalado – e, aqui mesmo, invoquei no início aquela espécie de vaticínio de Euclydes da Cunha – os graves conflitos gerados pelos movimentos populares, sobretudo os das áreas sertanejas, e a sistemática repressão exterminadora que sobre eles se exerce da parte de nossa tradição autoritária, não têm merecido, a não ser bem recentemente, uma parte consentânea e abrangente de nossa hermenêutica historiográfica.40

Excepcional exemplo dessa abertura de perspectiva para uma nova historiografia reside por certo na História Geral da Civilização Brasileira, iniciada sob a direção de Sérgio Buarque de HOLANDA, continuada sob a coordenação de Boris FAUSTO, e cuja publicação em 11 volumes estendeu-se de 1963 a 1984. Esta obra traz o primeiro ensaio efetivamente inovador do ponto de vista interpretativo, no estudo comparativo entre Juazeiro, Canudos e Contestado da autoria de Duglas Teixeira MONTEIRO.41 É verdade, porém, que, na mesma obra, no capítulo intitulado «Dos Governos Militares a Prudente – Campos Sales», da autoria de Fernando Henrique CARDOSO, numa análise dominantemente política, Canudos é mencionado en passant em curto parágrafo relativo aos conflitos do período final do governo de Prudente de Morais:
 

«Começavam, pois, a gestar, no meio das lutas entre "florianistas" e governistas, e frente aos sérios desafios desmoralizantes da Campanha de Canudos, bem como às tentativas no Sul de militarização das polícias a um ponto tal que inquietava o Exército com uma possível perda do monopólio da força, as bases para a institucionalização do "sistema oligárquico".» 42
 

Perdura, assim, significativo grau de intolerância e de incompreensão teórica desses movimentos de que faz parte o de Canudos, mesmo entre alguns de nossos estudiosos aparentemente melhor instrumentados, sobretudo se levarmos em conta a existência de novos estudos que produziram intensa inflexão nos modelos interpretativos, apoiando-se na história das mentalidades, na socioantropologia do imaginário, na dialética primordial que liga mito e história, sagrado e profano, tradição e transformação.

É o caso, por exemplo, Edgar CARONE quando afirma esta velha óptica de perfil evolucionista e bem típica de nossa tradição letrada:
 

«Os nossos movimentos agrários, explosões indisciplinadas contra a opressão, assumiram formas religiosas e de pura rebeldia, como o de Canudos, do Contestado e, de um modo geral, o cangaço. À frente desses movimentos não apareceram líderes políticos conscientes mas profetas e iluminados como Antônio Conselheiro, o monge José Maria, o Padre Cícero e o beato Lourenço.»43
 

Ou seja, ao assim exprimir-se, ele não faz mais do que repetir a concepção introduzida por Rui FACÓ de acordo com o cânon marxista do século XIX.44 E o que é mais grave: em cerca de 10 volumes que dedica à história da República, as agitações no campo não ocupam mais que diminuto espaço, e o caso de Canudos aparece como mero pano de fundo ou pretexto que faz aflorar a luta pelo poder, a revolta da Escola Militar, as perturbações políticas de florianistas e jacobinos no governo de Prudente de MORAIS, o atentado de 5 de Novembro de 1897, etc. – estes, sim, constituem o verdadeiro proscênio de sua historiografia republicana.45

De fato, se percorrermos mais alguns exemplares de textos bem recentes de história do Brasil, verificaremos que estes permanecem, com relação aos movimentos sertanejos e a Canudos em particular, caudatários da nossa persistente historiografia tradicional. Nesse sentido, citaria, para concluir, mais alguns casos.

O primeiro deles é do próprio Boris FAUSTO, que lançou um volumoso compêndio de História do Brasil em grande formato, no qual dedica uma página a Canudos, absolutamente pobre de significação e até contendo erros elementares.46 Não obstante, algo relativamente aproveitável em seu texto aparece cerca de quarenta páginas mais adiante, quando o autor trata dos "movimentos sociais", que ele divide em movimentos sociais no campo e movimentos sociais urbanos. Com relação aos primeiros, ele propõe uma tipologia em três grandes grupos que, posto seja discutível, apresenta algum interesse: 1. os movimentos que combinaram conteúdo religioso com carência social; 2. aqueles que combinaram conteúdo religioso com reivindicação social; 3. os que expressaram reivindicações sociais sem conteúdo religioso. O autor dá como exemplo do primeiro grupo o caso de Canudos e o movimento em volta do Padre Cícero Romão Batista, na cidade cearense de Juazeiro do Norte. O movimento do Contestado ilustra para ele o segundo grupo e ao comentá-lo comete erros interpretativos e factuais. Enfim, o terceiro grupo tem como exemplo mais expressivo as greves por salários e melhores condições de trabalho ocorridas nas fazendas de café de São Paulo (Ribeirão Preto em 1913, etc.).47 Só que o autor elude profundas diferenças históricas e culturais destes últimos movimentos em relação aos demais, e deixa de sublinhar o seu caráter mais próximo do movimento operário e sindical.

Mais chocante ainda é o caso de um bom historiador, da estirpe de um Francisco IGLÉSIAS, 48 que, sem nenhuma fundamentação, considera o movimento em apreço como a «mais séria de todas as questões messiânicas» [p. 207] de contestação da República, e repete em duas páginas boa parte das tolices que se acumulam nesse tipo de historiografia.

Já o caso de Teotônio dos SANTOS, 49 com sabor de literatura de exilado, opta por ignorar Canudos.

Em seguida, vem o texto produzido por Maria Yedda LINHARES e a colaboração de mais 5 doutores em História,50 que dedica meia dúzia de linhas a Canudos, definido como "ideologia milenarista" e um dos «maiores movimentos de massas contra a República» [sic!].

Numa inferência superficial mas talvez justa, poder-se-ia dizer, à luz dos textos mais recentes aqui mencionados, que as insuficiências e bobagens se adensam na proporção direta dos graus acadêmicos dos historiadores considerados.

Enfim, mesmo o belo trabalho de multimeios (livro e CD-Rom), que acaba de ser produzido por Jorge CALDEIRA e colaboradores,51 apresenta um relato quase indigente sobre Canudos e isso no ano em que se rememora um dos maiores crimes da Nação contra seu povo, o qual realizou aí uma das epopéias mais ingentes de nossa História!

3.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.– Conclusões.
 

«... History may be servitude,
History may be freedom...».

T. S.ELIOT
 

O balanço não parece portador de fecundas lições, a não ser por sua negatividade. Como quer que seja, tentarei assinalar sumariamente algumas características gerais do discurso dessa historiografia tradicional sobre Canudos, que vim examinando até aqui.

No seu conjunto, tal produção histórica elabora, desde o início, a operação semiótica das elites acerca dos movimentos populares em geral e de Canudos em particular. Na sua luta ideológica, os dispositivos de poder produzem um processo discursivo que constrói uma imagem pregnantemente negativa dessa ocorrência histórica, segundo uma retórica de justificação do massacre.

O primeiro traço básico de toda essa historiografia tradicional reside numa atitude, ora velada ora explícita, de profundo desprezo pelos aspectos históricos das coisas que emanam do povo, desse povo que – dizia Capistrano de ABREU - , durante séculos foi sangrado e ressangrado, capado e recapado.

Em segundo lugar, sem jamais fundamentar suas afirmações e conceitos, tal procedimento de construção ideológica define preliminarmente o acontecimento histórico de Canudos como movimento insurrecional, como movimento de restauração monárquica, como rebelião, revolta, etc. Aliás, no documento do Arcebispo da Bahia às autoridades, ele o qualifica literalmente como subversão da ordem e apela para a intervenção do Estado.

Um terceiro ponto a assinalar está em que espanta o leitor dessas obras o não haver habitantes ou população em Canudos, como em qualquer outro povoado. Consistentemente, a gente canudense ou conselheirista é designada mediante termos pejorativos tais como: jagunços, fanáticos, loucos, bandidos, criminosos, marginais, etc. Uma única vez, em todas as obras estudadas, aparece, quase como um deslize do autor, a expressão «a população de Canudos» - é na última obra de Pedro CALMON aqui examinada.52

O último ponto a destacar no discurso dessa historiografia, e talvez a questão mais crucial, está em que ela manifesta profunda incompreensão no que tange à religião sertaneja. Esta é sistemática e levianamente definida como messianismo, milenarismo, sebastianismo, fanatismo,53 superstição, etc. Com a única exceção do já referido ensaio de Duglas T. MONTEIRO – que, na verdade, não pode ser incluído no conjunto da historiografia tradicional, conforme já assinalei - , nenhum esforço é feito no sentido de compreender a lógica interna do imaginário sertanejo e de sua religiosidade como dimensão nuclear na elaboração do seu universo simbólico, matriz da produção social do sentido da existência.

Essa feição mística, dimensão fundante daquela coletividade, é desprezada como inteiramente secundária ou alienante, visto que o principal eixo explicativo que ressalta dessa produção historiográfica centra-se na aparência mais evidente do confronto entre civilização e barbárie, ou litoral e sertão. No caso, termos como "milenarismo" e "messianismo", confundidos como se fossem sinônimos que recobrissem a mesma realidade, não chegam a ser propriamente conceitos, isto é, categorias assentadas sobre sólida reflexão teórico-explicativa e que sirvam de instrumento heurístico e interpretativo de uma realidade agudamente estudada. De fato, são meros rótulos ou etiquetas comodamente pespegadas no bojo de recipientes fechados e cujo conteúdo permanece desconhecido porque não se revelou aos sapientes que, em sua mentalidade urbana e europeizada, não quiseram ou não puderam compreendê-lo.

Em suma, se remontarmos no tempo, seria legítimo afirmar com relativa segurança que toda nossa tradição letrada tem expressado enorme dificuldade em entender as manifestações culturais e as atitudes do povo; e isso desde um Boris FAUSTO ou um Darcy RIBEIRO 54 até o Padre Manoel da NÓBREGA, que já em seu tempo afirmava:
 

«Des que fui entendendo por experiencia ho poco que se podia fazer nesta terra na conversão do Gentio por falta de não serem suyetos, e ella ser huma maneira de gente de condição mais de feras bravas que de gente rational, e ser gente servil que se quer por medo, e com juntamente ver a pouca esperança de se a terra senhorear, e ver a pouca ajuda e os muitos estorvos dos Christãos d’estas terras, cujo escandalo e mao exemplo abastara para não se convencer... » (Bahia, agosto de 1557).55
 

Eis aí resumido o panorama que me foi possível de retraçar...
 


Fortaleza, 24 de Set. a 31 de Out. de 1997.
 



* Na realização deste trabalho, o autor tem o apoio de uma bolsa do CNPq na condição de Pesquisador I - A. Trata-se aqui de comunicação apresentada no Simpósio Internacional «CANUDOS: 100 ANOS DA DESTRUIÇÃO», na Universidade Federal do Ceará (23-26 Set./1997) ena Universidade do Estado da Bahia (30 Set – 3 Out./1997). Na realização deste trabalho, o autor tem o apoio de uma bolsa do CNPq na condição de Pesquisador I - A. Trata-se aqui de comunicação apresentada no Simpósio Internacional «CANUDOS: 100 ANOS DA DESTRUIÇÃO», na Universidade Federal do Ceará (23-26 Set./1997) ena Universidade do Estado da Bahia (30 Set – 3 Out./1997).

1 Cf.: Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 102. [O grifado é meu].

2 Cf.: Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 64. [Grifado por mim].

3 Cf.: História da República: 1889 – 1945, 3ª ed.. São Paulo: CEN, 1956, pp. 222-223.

4 Cf.: Contribuição à História das Idéias no Brasil. (O desenvolvimento da filosofia no Brasil e a evolução histórica nacional). Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 299.

Os Sertões

Ibidem,

7 «Structures et Récurrences de l’Imaginaire», in LE GOFF, Jacques et Al.: Histoire et Imaginaire. Entretiens avec Michel Cazenave. Paris: Radio France/Éditions Poiesis, 1986, pp. 142-143. [Grifo meu].

8 CAPISTRANO DE ABREU, João: «O Brasil no século XIX», in Ensaios e Estudos (Crítica e História) – 3ª série. Rio de Janeiro: Edição da Sociedade Capistrano de Abreu / Livraria Briguiet, 1938, pp. 131-148. [A citação acima vem à pág. 142].

9 Biriba, apelido dado pelos sulriograndenses aos tropeiros de Sorocaba, e Prudente de Morais era filho de um destes, fato de que se orgulhava.

10 Foliculário: escritor de folhetos, mau jornalista.

11 Ibidem, pp. 146 e 148, respectivamente, para as duas últimas citações.

12 Cf.: Efemérides Brasileiras. Obras do Barão do Rio Branco, t. VI. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores / Imprensa Nacional, 1946.

13 Licções de Historia do Brasil, 5ª ed. São Paulo: Duprat & Comp., 1913. Da sua obra principal aqui mencionada afirma Américo Jacobina LACOMBE: «Obra composta longe dos arquivos, compendia e sistematiza todos os bons autores correntes, em plano sistemático, com clareza, e fornecendo, em geral, a indicação das principais fontes. Em certos capítulos foi precursor.» (Cf.: Introdução ao Estudo da História do Brasil. Col. "Brasiliana" – v. 349. São Paulo: CEN, 1974, p. 191.

14 Cf.: ROCHA PPOMBO, J. F.: Historia do Brazil (illustrada), 10 volumes. Rio de Janeiro: Benjamin de Aguila – Editor, s/d. [Impressa na Typ. da Empreza Litteraria e Typographica (officinas movidas a electricidade), Porto].

15 Ibidem, v. 10, p. 401.

16 Ibidem, pp. 401 a 444.

17 Ibidem, p. 431.

18 RIBEIRO, João: História do Brasil – curso superior. 15ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1953. Ver em especial o ensaio «João Ribeiro, Filólogo e Historiador», de T. A. ARARIPE JUNIOR, que acompanha a obra desde a 2ª ed.

19 Ibidem, p. 422.

20 A primeira edição é de março de 1920, Rio de Janeiro, editada por Jacinto Ribeiro dos Santos. Utilizei todavia a 18ª edição, revista e ampliada pelo autor: História do Brasil – curso superior. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1954.

21 Cf.: op. cit., p. 438.

22 Cf.: Evolução do Povo Brasileiro, 4ª ed., com 42 ilustrações fora do texto. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

23 Cf.: OLIVEIRA VIANNA, F. J.: Pequeno Estudos de Psychologia Social. São Paulo: Monteiro Lobato & C. – Editores, 1923 [No ensaio: «Organisação da Legalidade nos Sertões» (O Problema do Contestado), pp. 140-174]. É do próprio autor o grifado na citação. O termo "tungus" (que o autor grafa com z) refere-se a povos mongóis espalhados pela Sibéria.

24 Cf.: CALÓGERAS, João Pandiá: Formação Histórica do Brasil. 5ª edição, ilustrada. Col. "Brasiliana – 42". São Paulo: CEN, 1957, pp. 442-446.

25 Cito pela 6ª edição, col. "Brasiliana – 14". São Paulo: CEN, 1958, p. 9.

26 Respectivamente volumes 40, 93 e 173 da Col. "Brasiliana"

27 Cf.: História Social do Brasil, tomo 3: A Época Republicana. Col. "Brasiliana – 173". São Paulo: CEN, 1939, p. 68.

28 De que utilizo apenas: História do Brasil, vol. V: A República. Col. "Brasiliana – 176-D". São Paulo: CEN, 1956, pp. 112-160.

29 Cf.: A Semana, II, 417 (crônica de 7 de Julho de 1895), apud CALMON, Pedro: op. cit., p. 121.

30 Acredito interessante lembrar aqui, embora longo, o judicioso comentário do próprio Euclydes da Cunha sobre esse momento político, na nota com que introduz a narrativa da Expedição Moreira César:

31 «O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase crítica da nossa história. A pique ainda das lastimáveis conseqüências de sanguinolenta guerra civil, que rematara ininterrupta série de sedições e revoltas, emergentes desde os primeiros dias do novo regime, a sociedade brasileira, em 1897, tinha alto grau de receptividade para a intrusão de todos os elementos revolucionários e dispersivos. E quando mais tarde alguém se abalançar a definir, à luz de expressivos documentos, a sua psicologia interessante naquela quadra, demonstrará a inadaptabilidade do povo à legislação superior do sistema político recém-inaugurado...
O governo civil, iniciado em 1894, não tivera a base essencial de uma opinião pública organizada. Encontrara o país dividido em vitoriosos e vencidos. E quedara na impotência de corrigir uma situação que não sendo francamente revolucionária e não sendo também normal, repelia por igual os recursos extremos da força e o influxo sereno das leis. Estava defronte de uma sociedade que progredindo em saltos, da máxima frouxidão ao rigorismo máximo, das conspirações incessantes aos estados de sítio repetidos, parecia espelhar incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida.
De sorte que... a significação superior dos princípios democráticos decaía – sofismada, invertida, anulada.
(...) O governo anterior, do marechal Floriano Peixoto, tivera, pelas circunstâncias especialíssimas que o rodearam, função combatente e demolidora. Mas ao abater a indisciplina emergente de sucessivas sedições, agravara a instabilidade social e fora de algum modo contraproducente, violando flagrantemente um programa preestabelecido. Assim é que nascendo do revide triunfante contra um golpe de estado violador das garantias constitucionais, criara o processo da suspensão de garantias; abraçado tenazmente à Constituição, afogava-a...
Destruíra e criara revoltosos. Abatera a desordem com a desordem. Ao deixar o poder não levara todos os que o haviam acompanhado nos transes dificílimos do governo. (...)
Viu-se, então, um caso vulgaríssimo de psicologia coletiva: colhida de surpresa, a maioria do país inerte e absolutamente neutral, constituiu-se veículo propício à transmissão de todos os elementos condenáveis que cada cidadão, isoladamente, deplorava. Segundo o processo instintivo, que lembra na esfera social a herança de remotíssima predisposição biológica, tão bem expressa no mimismo psichico de que nos fala Scipio Sighele, as maiorias conscientes, mas tímidas, revestiam-se, em parte, da mesma feição moral dos medíocres atrevidos que lhes tomavam a frente. Surgiram, então, na tribuna, na imprensa e nas ruas – sobretudo nas ruas – individualidades que nas situações normais tombariam à pressão do próprio ridículo. Sem ideais, sem orientação nobilitadora, peados num estreito círculo de idéias, em que entusiasmo suspeito pela República se aliava a nativismo extemporâneo e à cópia grosseira de um jacobinismo pouco lisonjeiro à história – aqueles agitadores começaram a viver da exploração pecaminosa de um cadáver. O túmulo do marechal Floriano Peixoto foi transmudado na arca de aliança da rebeldia impenitente e o nome do grande homem fez-se a palavra de ordem da desordem.
A retração criminosa da maioria pensante do país permitia todos os excessos; e no meio da indiferença geral todas as mediocridades irritadiças conseguiam imprimir àquela quadra, felizmente transitória e breve, o traço mais vivo que a caracteriza. Não lhe bastavam as cisões remanescentes, nem os assustava uma situação econômica desesperadora: anelavam avolumar aquelas e tornar a última insolúvel. E como o exército se erigia, ilogicamente, desde o movimento abolicionista até a proclamação da República, em elemento ponderador das agitações nacionais, cortejavam-no, captavam-no, atraíam-no afanosamente e imprudentemente.
Ora de todo o exército, um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era quem parecia haver herdado a tenacidade rara do grande debelador de revoltas.
O fetichismo político exigia manipansos de farda.
Escolheram-no para novo ídolo.»
[Edição crítica de Os Sertões, por Walnice N. Galvão. São Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 319-321; e pp. 281-283, do vol. II, na edição da Obra Completa, Rio de Janeiro: Aguilar editora, 1966].

31 Euclydes da Cunha, em seu estilo característico e num lúcido comentário mais amplo acerca desse fanatismo republicano, dirá: «Há nas sociedades retrocessos atávicos notáveis; e entre nós os dias revoltosos da República tinham imprimido, sobretudo na mocidade militar, um lirismo patriótico que lhe desequilibrara todo o estado emocional, desvairando-a, e arrebatando-a em idealizações de iluminados. A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se batiam à entrada de Canudos tinam todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do Marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória – com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática, com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milageiro...» [cf.: Os Sertões, edição da Aguilar, p. 395].

32 Cf.: História da República. (Síntese de sessenta e cinco anos de vida brasileira), 3ª ed. São Paulo: CEN, 1956.

33 Cf. respectivamente: THOMAS, Cláudio Maria: Elementos de História do Brasil – curso superior, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942 (?); e TAPAJÓS, Vicente: História do Brasil, São Paulo: CEN, 1944.

34 Rio de Janeiro: Livraria São José, 1957. Só posteriormente, BASBAUM reedita essa obra em 3 volumes, quando então virá a examinar a questão de Canudos na perspectiva marxista tradicional.

35 Rio de Janeiro: Record, 1978, 16ª ed., pp. 126-174.

36 Cf.: Formação Histórica do Brasil, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1964. Noutra obra sua, do mesmo período, Canudos sequer aparece em seu "Índice de Assuntos": cf. O que se deve ler para conhecer o Brasil. Rio de Janeiro: MEC-INEP-CBPE, 1960. Estranha mas significativa omissão.

37 Utilizo aqui, porém, a sua 12ª edição, significativamente revista e atualizada por Américo Jacobina LACOMBE: História do Brasil. Período Colonial, Monarquia e República. São Paulo: Edições Melhoramentos e Edusp, 1975.

38 Cf.: RODRIGUES, José Honório: História da História do Brasil, volume II – tomo 1: A Historiografia Conservadora. Col. "Brasiliana" (grande formato), v. 23. São Paulo: CEN, 1988, pp. 191-193.

39 Cf. VIANNA, Hélio: op. cit., p. 567. [O grifado é do autor].

40 Deixo de examinar mais detidamente duas obras importantes, surgidas nos anos 70 e 80: Emília Viotti da COSTA, Da Monarquia à República: Momentos Decisivos, São Paulo: Grijalbo, 1977, e Suely Robles Reis de QUEIROZ, Os Radicais da República (Jacobinismo: ideologia e ação, 1893-1897), São Paulo: Brasiliense, 1986. A primeira porque, nos bons ensaios que a compõem, não trata a autora de Canudos. E a segunda em virtude de sua autora, a despeito de examinar justamente a história política do período, referir-se a Canudos apenas como alusão para descrever com ênfase os desatinos jacobinistas que constituem seu foco central (cf.: pp. 44-50). Algumas vezes ela faz afirmações sem fundamento, como ao comenta a vitória da 4ª Expedição: «O general venceu. Antônio Conselheiro e seus seguidores foram sangrentamente exterminados num massacre que horrorizou a nação. (...) O exército expedicionário reduziu-se a algumas dezenas de homens comandados pelos capitães e tenentes que restaram. Não havia como explorar tal vitória no terreno da agitação política.» (p. 60).

41 Cf.: MONTEIRO; Duglas T.: «Um Confronto entre Juazeiro, Canudos e Contestado», in FAUSTO, Bóris (dir.): História Geral da Civilização Brasileira, Tomo IX: O Brasil Republicano, 2º vol.: Sociedade e Instituições (1889-1930). São Paulo: Difel, 1977, pp. 39-92. A rigor, este estudo só é mencionado aqui para estabelecer o contraste com a historiografia tradicionalista.

42 Cf.: Op. cit., 8, Tomo III: O Brasil Republicano, 1º volume: Estrutura de Poder e Economia (1889-1930), p. 47.

43 Cf.: Movimento Operário no Brasil (1945-1964), v. II. São Paulo: Difel, 1981, p. 5.

44 Cf.: Cangaceiros e Fanáticos (gênese e lutas), 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

45 Cf. CARONE, Edgar: A República Velha (evolução política). São Paulo: Difel, 1974, pp. 145-168.

46 V. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1994, pp. 257-8. Aliás, ele já tinha dado algo semelhante no capítulo que escreveu para o livro editado pelo historiador inglês, Leslie BETHELL (ed.): Brazil, Empire and Republic (1822-1930), Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989.

47 Cf. FAUSTO, Boris: op. cit., pp. 294-296.

48 Cf.: Trajetória Política do Brasil, 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

49 V. Evolução Histórica do Brasil. Da colônia à crise da "Nova República". Petrópolis: Vozes, 1995.

50 Cf.: História Geral do Brasil, 6ª ed. atualizada. Rio de Janeiro: Campus, 1996. [Colaboradores: Ciro Flamarion CARDOSO, Francisco Carlos T. da SILVA, Hamilton de Mattos MONTEIRO, João Luís FRAGOSO e Sônia Regina de MENDONÇA].

51 Cf.: Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 240-241.

52 Cf.: História do Brasil, op. cit., vol. V, p, 159.

53 É bom lembrar que ‘fanatismo’ traz na sua etimologia o termo latino fanum, que significa lugar sagrado. Portanto, é o comportamento ou atitude de quem se crê inspirado pela divindade e que age segundo outras pautas que não as estritamente racionais. [Cf.: Olivier DE LA BROSSE et Al.: Dicionário de Termos da Fé. Porto: Editorial Perpétuo Socorro, 1995, p. 307.

54 Para um antropólogo de sua envergadura, é lastimável, por exemplo, de ver as inconsistências teóricas e os clichês que ele repete sobre o "fanatismo messiânico" dos sertanejos em sua obra de síntese sobre o Brasil: cf. O Povo Brasileiro. (A formação e o sentido do Brasil). São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 352, 354-356, 427-431.

55 Cf. em transcrição mais atualizada: Cartas Jesuíticas 1 – Cartas do Brasil – Manoel da Nóbrega. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1988, p. 174. [Grifado por mim].

 

 

 

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José Saramago, Nobel