Edna
Menezes
A auto-Reflexão em “Estado de
Palavra” na poética de Manoel de Barros
A leitura do livro Retrato do artista quando coisa,
do poeta Manoel de Barros, que orienta o presente artigo é
determinada pela metalinguagem, ou seja, pela palavra que reflete
sobre si mesma. Neste trabalho buscamos mapear o processo
auto-reflexivo da palavra, o qual entrecorta toda a obra. Em Manoel
de Barros a auto-reflexão explora o espaço racionalizado das
palavras em seu percurso de rastreamento da realidade do chão, e
ainda faz reflexões sobre a posição do poeta-criador e seu papel
diante da estrutura da obra. Assim, vamos encontrar uma poética na
qual circula um diálogo que induz ao ato da concepção da poesia e à
consciência de que a palavra é um ser ativo e dinâmico capaz de
elaborar uma nova visão do mundo.
Sob essa óptica, veremos em Retrato do artista quando
coisa, a palavra em um processo metalingüístico, noção em torno da
qual balizaremos nossas considerações. A leitura que propomos
perpassa por dois momentos: o poeta: eleito entre os homens e a
poesia como libertação da realidade.
A auto-Reflexão em “Estado de Palavra”
Segundo Roman Jakobson, o estudo da linguagem
pertence ao pequeno número dos mais antigos ramos do conhecimento.
Quatro milênios nos separam dos primeiros escritos gramaticais
conhecidos que ainda resistem à ação do tempo. A prática dos estudos
relativos à lingüística é tradição variada e contínua desde a
Antigüidade indo-greca. Tais estudos puderam evoluir através de
importantes conquistas de estudiosos da Idade Média, do
Renascimento, da era do racionalismo e da Ilustração e, por fim, das
múltiplas tendências dos estudos dos dois últimos séculos.
(Jakobson, 1970:14)
Outrossim, Roland Barthes salienta que, durante
séculos, os escritores ocidentais não imaginavam que fosse viável
considerar a literatura como uma linguagem passível, como qualquer
outra linguagem, de análise sistemática. A literatura não tecia
reflexões sobre si mesma, não se dividia em objeto ao mesmo tempo
olhante e olhado; em suma, ela atuava como reflexão sobre o
universo, mas não se refletia. (Barthes, 19970:28)
Nesse contexto de reflexão sobre a linguagem,
manifesta-se a função metalingüística ou metalinguagem. O termo
agrupa a palavra “linguagem” com o prefixo “meta”, que significa
“transformação, transposição, transcendência, posteridade e
sucessão.” Portanto metalinguagem é um fenômeno da linguagem, pois,
a linguagem tem função metalingüística quando discorre sobre o seu
próprio conteúdo. É, na verdade, a própria linguagem que está em
jogo. O emissor utiliza-se do código lingüístico para transmitir
suas reflexões sobre ele mesmo. O que ocorre é que a própria
linguagem é discutida e posta em destaque. O emprego da função
metalingüística em literatura discute a própria criação artística.
(Mesquita, 1997:17)
Com relação à metalinguagem na Literatura Brasileira,
conforme observa Gilberto Mendonça Teles, a abordagem sobre o
assunto inicia-se com especulações sobre a poética da repetição de
Carlos Drummond de Andrade e é encontrada em todos os períodos
literários. No vasto rol de escritores e poetas que fizeram e fazem
uso do recurso da auto-reflexão poética, insere-se brilhantemente o
poeta Manoel de Barros, que instaura, em sua poesia, um ato
reflexivo no qual a palavra retorna à fonte original para recuperar
a linguagem perdida. Por conseguinte, o poeta quer subtrair a
linguagem do seu uso cotidiano e nesse ato de subtração da linguagem
ao lugar comum, o poeta elabora uma poética de libertação e
sublimação.
A palavra é essencial em todas as relações do ser,
consigo mesmo, com seus semelhantes e com Deus. É um ser vivo e
poderoso, e quem a possui torna-se fonte reveladora das coisas, que
se fazem seres através de sua nomeação. Assim sendo, a poesia
torna-se o veículo que permite o acesso ao absoluto através da
palavra. Portanto, no percurso através do fecundo campo poético de
Manoel de Barros, emerge em Retrato do artista quando coisa o
momento em o poeta foi eleito a um dom:
“Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:...
“Vou pertencer você para uma árvore”. (rac:61)
Neste verso o poeta recebe de Deus um dom, ou seja,
um poder ou privilégio. E se a palavra é fonte reveladora e ser
poderoso, então, o dom que Deus “ajeita” ao poeta é o da palavra, a
qual irrompe-se na poética de Manoel de Barros, como dom supremo,
capaz de recortar a realidade e destruir os seus significados
institucionalizados.
Aqui, ao se analisar o verbo “pertencer” como
“merecer”, atina-se o poeta “merecendo” de Deus o “ir além” com o
dom recebido. Assim, com o dom da palavra, o poeta pode, a partir da
manipulação destas palavras, fazer parte da natureza. E, como parte
da natureza, transmutar-se em seus diferentes reinos. E nesse verso
o reino é o vegetal, “árvore”. E, ainda, ao se adentrar um pouco
além e buscar “pertencer” como “descender”, ter-se-á “herdar por
geração”, e isto faria do poeta um ser da natureza desde sua
descendência. Portanto, se através das palavras o poeta pode ser
“árvore”, pode também ser mineral, animal e atemporal, e como tal
ele diz:
“Já posso amar as moscas como a mim mesmo’. (rac:11)
Neste verso, é perceptível um diálogo intertextual,
pois se percebe uma sutil referência à passagem bíblica, “amar ao
próximo como a ti mesmo”. E esta máxima surge no poema como uma
linguagem anterior que é tomada como referência. E conforme afirma
Samira Chalhulb, em seu estudo sobre metalinguagem, “a
intertextualidade é uma forma de metalinguagem.”.(Chalhulb, 1986:58)
Assim, dentro da intertextualidade, o poeta resgata
de forma mística a referida passagem bíblica, pois ao dizer que já
pode “amar as moscas como a mim mesmo”, o poeta, transmutado pelas
palavras em ser da natureza, ama a seu semelhante, “as moscas”,
seres da natureza. Portanto, o poeta eleito, no seu percurso do chão
elege a natureza como parte do sublime, e assim, remete à idéia de
que o ato criador é, realmente, a emanação de um dom. E o dom doado
ao poeta, para extrair o belo e dar forma a um novo universo é,
segundo o filósofo Kant “saído das mãos de Deus ou da providência”.
(Ribon, 1991:39)
A poesia como emanação indelével do reino da
linguagem possui o poder de filtrar o real ou aprisioná-lo em seu
próprio magma. E assim, ao prender o real nos resíduos do mundo
concreto, a poesia abre as possibilidades da liberdade absoluta, sem
qualquer limite, e sem limites é também o processo da palavra
voltada sobre si mesma, quando o poeta Manoel de Barros diz:
“As palavras continuam com seus deslimites”. (rac:77)
Neste verso, a consciência criadora faz da
auto-reflexão, veiculo para restituir à palavra o poder da
liberdade. Portanto, a palavra insurge-se como uma forma ativa, que
recorta a realidade, revelando que a poesia é a linguagem da
libertação que conduz ao novo mundo, ao mundo dos sonhos. Assim, ao
afirmar que “as palavras continuam com seus deslimites”, o poeta faz
uso do prefixo de negação “des”, que aparece negando a palavra
“limite”, ou seja, soltando as amarras, libertando. E nessa falta de
limites, as palavras vão, de forma sutil, recortando a realidade e
induzindo o poeta a dizer:
“Só quem está em estado de palavra pode
enxergar as coisas sem feitio”.(rac:35)
Aqui, podemos ver o poeta totalmente envolvido pelo
poder das palavras, pois, em sua forma absoluta, após conduzir a
poesia pelos reinos da natureza, as palavras agora dominam o poeta e
o conduzem ao percurso das coisas. Se o poeta entra em estado de
palavra e, a partir daí pode “enxergar as coisas sem feitio”, ou
seja, as coisas ainda sem forma, sem existência visível ou sensível,
então, infere-se que a palavra pode ser o elo entre o ser humano e
as coisas, entre o ser humano e o universo.
E assim, o poeta, “em estado de palavra”, pode ver
com nitidez o infinito mundo das coisas e tentar resgatar o
indizível mundo dos sonhos. Porém, as coisas, segundo Sartre, não
fazem sentido para o mundo real. (Filho, 1997:122). Portanto, as
coisas fazem parte do mundo onírico e só faz sentido para quem está
em “estado de palavra”. Agora temos a palavra liberta da realidade
que, ao refletir sobre si mesma,. pode dizer:
“Pote Cru é meu Pastor. Ele me guiará”(rac:25)
Pote Cru é um ser que emerge do mundo da imaginação,
e, assim como a palavra, não possui limites, é livre; e o poeta o
elege como guia, ou seja, como a consciência mestra que o induz a
criar a poesia do chão, pois “Pote Cru” é ser que tem “uma voz de
oratórios perdidos”. Ao se analisar o termo “oratório” como um
adjetivo, tem-se uma relação com oratória, ou seja, arte de falar. E
ainda o adjetivo “oratório” também é algo próprio do orador. Ora, se
“Pote Cru” tem “voz de oratórios”, deduz-se que ele tem o poder da
palavra.
Por outro lado, se adentrarmos um pouco à filosofia,
é possível deparar-se com a dialética do filosofo Sartre, na qual
diz que a consciência é o sujeito ativo, é a existência do homem,
vazia do Ser, mas aberta às possibilidades, capaz de exercer a
liberdade absoluta, sem qualquer limite. Portanto, “Pote Cru” é a
consciência livre, que segundo o poeta “deambula no azedal...”(rac:25).
E essa consciência livre, capaz de criar uma poesia a partir do
ínfimo, desdobra-se em outra nominação, e assim temos:
“Passo Triste é meu Pastor.
Ele me guiará.”(rac:43)
Se “Pote Cru” e “Passo Triste” são “Pastores” e
guiarão o percurso poético das palavras, então, pode-se dizer que
eles são a consciência com liberdade total, sem limitações,
tornando-se o sujeito ativo do ato de criar. E ainda seguindo o
conceito filosófico, o homem é o Pastor do Ser. Temos aqui uma
equação metalingüística, a qual pode ser explicada assim: O Ser é
igual à essência, o mais puro e límpido estágio almejado, e o homem
é igual à existência, tempo de se exercer a evolução. Portanto, é no
praticar a existência que se alcança o Ser, ou essência. Se “Pote
Cru e Passo Triste”, são “Pastores”, e a um “Pastor” cabe cuidar do
bem estar do objeto pelo qual ele se responsabiliza, e se na poética
o objeto é a palavra, temos, por conseguinte, “Pote Cru e Passo
Triste” como os responsáveis para zelar pela palavra.
Considerações finais:
Assim, na busca da linguagem, o poeta Manoel de
Barros suscita problemas teóricos do seu processo de luta com as
palavras e instaura um poema metalingüístico. A metalinguagem em
Retrato do artista quando coisa entrecruza-se na linguagem do verso
de tal modo que a palavra torna-se o centro e o objeto, ou seja, é
palavra falando sobre palavra. Portanto, encontramos a palavra sendo
utilizada pelo poeta como ser capaz de fragmentar e recriar o
universo. E não satisfeito em manipular a palavra em tão vasta
abrangência, o poeta arrebatado do dom da palavra, conduz o seu
Retrato de forma tal a alcançar a liberdade total do ser da
linguagem.
Portanto, Manoel de Barros faz da palavra, símbolo do
fazer poético, objeto que se relaciona com o sublime e ao mesmo
tempo fala de si mesma, e esta auto-referencialidade manifesta a
consciência criadora esboçando sua visão de mundo.
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Obs: Texto que faz parte de uma série de
artigos e apresentado no 9º Simpósio Internacional de Iniciação
Científica da Universidade de São Paulo - USP.
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