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Jornal do Conto

 

 

Elizabeth Lorenzotti


 


 Un uomo così bello



 

Belo, belo, belíssimo. Eu sempre o via, da minha janela, andando pela rua, tão alto, cabelos longos e grises, apressado. Pernas compridas, plact, plact, plact, as sandálias soando surdas.

Belo.

E aquelas mãos, as mãos, agora não as posso mais ver.

Não agora, mas há muitos anos, na casa do signore Verrocchio, il maestro a quem eu servia. As mãos desenhando um homem, um homem nu à sua esquerda.

É bonito saber desenhar. Na minha aldeia, quando alguém desenha, sempre junta gente curiosa em volta. São mágicas as pessoas que têm esse dom.

Mas naquele dia, muito mais do que o homem nu, muito mais do que o desenho, foram as mãos daquele belo homem que me atraíram, os dedos longos, as unhas sujas de carvão.

“Mãos iguais às dos homens que conheço? Não, não, mais se pareciam às mãos das mulheres que conheço, as mais velhas, as que já trabalharam molto, carregando potes, amassando pão, lidando com a terra, carregando filhos.

“Ancora, Vincenzo”, disse o pintor. O homem nu parecia cansado, mas o pintor não se cansava de descobrir coisas no papel. Estava calado, concentrado. Porque, ele me diria mais tarde, só quando alguém se concentra muito pode sair deste mundo e entrar noutro e aí, sim, fazer coisas importantes.

Nunca um homem velho me impressionou tanto. Eu tinha recém completado 13 anos, naquela primavera de 1505.

Não sei quanto tempo fiquei ali, parada, com a ânfora de vinho nas mãos, e me esqueci de servir. Me esqueci do que tinha de fazer-- lavar latrinas, quintais; do que tinha de arrumar, naquela barafunda de quadros, tintas, pincéis, gatos, pão velho, tigelas engorduradas, taças quebradas.

Eu cuidava da casa há pouco tempo. O maestro morava só.

“Cheiro de homem é diferente, esta casa tem um cheiro diferente”.

Tive medo no começo, mas não naquele dia.

“Leda, qual’cosa per mangiare”, ordenava il signore Verrochhio. E sempre eram muitos homens para comer. Naquele dia estavam excitados, falavam alto, brigavam.

Também bebiam muito e como gargalhavam!

Pelo que entendi, o maestro festejava a visita daquele que, segundo ele, havia sido seu mais talentoso discípulo e agora era amigo dos reis, vivia pelo mundo encantando as cortes.

Um velho da idade de meu pai. Mas era velho? Cheio de luz, um homem
cheio de luz.

“As Musas te amam, Leonardo. Feliz é quem as Musas amam”, bradava Verrochhio.

Um homem amado pelas Musas, aquelas que são filhas da Memória... As mãos, a voz, os olhos grandes, enormes, de que cor?

“Leda, il vino. Mas o que esta bambina faz parada desse jeito enquanto nossa garganta está seca? Parece uma estátua”.

Meio tonta, completei o movimento de deitar a ânfora e servir as taças.

Então, il altro maestro reparou em mim. Olhou para baixo e acho que não prestou atenção exatamente em mim, mas na minha cabeça. Ajoelhou-se e, com as duas mãos, aquelas mãos de homem, ou de mulher, ou de anjo, pegou nas minhas tranças enroladas dos dois lados da cabeça. Passou o dedo indicador direito pela risca do meio. Pesou as tranças, desmanchou. Meus cabelos tinham a minha altura. Desde que nasci, minha mãe nunca cortou.

“Guarda, maestro Verrochhio, guarda! Observe como o movimento dos cabelos se parece com o da superfície da água. O cabelo tem dois movimentos, um depende do peso das tranças, o outro da linha do seu ondular. A água faz redemoinhos, uma parte deles depende do ímpeto da corrente principal e a outra dos movimentos incidentes e refletidos...”

Enquanto falava-- sua voz tão doce-- acariciava suavemente minha cabeça e eu ficava vermelha, vermelha como meus cabelos. Acontecia alguma coisa que não sabia o que, nunca havia sentido, uma mistura de arrepio na espinha, de falta de ar, vertigem, uma sensação de não sei quê começava na barriga e subia até o peito, do lado esquerdo.

“Como é il tuo nome? ele perguntou, ele falava comigo e eu não conseguia responder, quase suspensa no ar.

“Ancona, Leda”, disse Verrocchio. “É filha da minha vizinha”.

“Ah, Leda! Curioso! Vou desenhar sua cabeça! Venha à minha casa domani matina”.

“Ma, ma , signore, io lavoro... e la mamma... e il signore Verrocchio...”

O signore não gostou muito, mas acabou deixando. Afinal, ele era seu discípulo mais amado. E la mamma não tinha tempo de se preocupar comigo.

Dio santo, che bello, belissimo uomo.

Eles falavam de forma, falavam de cor, falavam de espaço, falavam de pontos, linhas e planos. Falavam e eu repito agora cada palavra sem saber o seu significado.

Ele não era un uomo igual ao maestro, igual ao meu pai, aos meus irmãos. os cabelos grises, pelos ombros, vestia uma túnica azul e tinha todos os dentes da frente.

Um lado da face sim, outro não e na testa eu não via rugas.

“Parece que não sofreu”.

No dia seguinte choveu. Bati à porta do maestro com o coraçãozinho sobressaltado. Demorou, demorou. Abriu, olhou para baixo:

“Ma chi sei? trovejou. Toda molhada, um pano na cabeça, eu falava e a voz não saía:

“Ancona Leda, Ancona Leda, da cabeça, do desenho”.

“Ah, Leda! Scusi!”

Foi como entrar num sonho que sonhei quando tinha dez anos. Que casa cheia de coisas lindas, os brinquedos que eu sempre quis ter. Garrafas coloridas, rodinhas, bonecos de madeira, moinhos pequenos, gatos, caixinhas de música, cachorros e plantas, lírios e coisas, tantas coisas que eu não tinha como nomear.

E quadros, pincéis, tintas, lápis, cavaletes, pincéis, desenhos na parede, no chão, no teto, papéis de todas as cores, livros como os de Verrochhio, mas tudo muito, muito limpo.

O maestro morava só.

Tinha também um canto, logo ali, o que seria? Uma porção de

“CAVEIRAS! AIUTOOOO!”

Foi quando caí por cima daquele monte de ossos, pernas, mãos, cabeças,

SOCORRO! SOCOOOOOORROOOO!

Medo era pouco. Tanta paura nunca tive.

“Bambina, sua tonta, saia já daí! berrou o maestro. Comecei a chorar. E chorei e chorei e chorei e esperneei:

“Quero ir embora daqui, ho paura, io voglio la mia mamma, mammaaaaaaa!”

“Leda, carina, ma perché hai paura do que não é vivo? Esses não fazem mal a nessuno”.

Sua voz era tão doce que conseguiu me acalmar. Quem seria esse homem, um bruxo, um alquimista?

“Maestro, cosa faz com esses ossos?”

“Estudo, carina. Fico muito tempo desenhando, escrevendo, imaginando como nós somos por dentro.”

“E como nós somos por dentro?”

“Uma coisa tão fantástica, mas tão meravigliosa que só vendo!”

E começou a me mostrar uns desenhos horríveis do que tem dentro da barriga do homem e da mulher, do que tem dentro do peito, das pernas. Argh! Depois mostrou uns lindos de cavalos, leões. O mais maravilhoso mesmo era um dragão:

“Questo è un animale que não se pode caçar, não se pode domar. Você acha que ele existe?”

“Claro que existe, minha mãe conta histórias de dragões e princesas.”

“Se ele tem nome, ele existe. Como é que eu iria desenhar algo que não existe? Sai, os dragões são muito companheiros e se entrelaçam uns aos outros quando vão dormir, como raízes.”

“Vero, maestro?”

“Vero. E o unicórnio, gosta dele? Si? Eu não acho o unicórnio mais esquisito do que uma girafa!”

“Me piace, maestro. Ele é tão belo e forte como o senhor.”

O maestro me olhava, sério:

“Você me acha belo? ”

“O maestro é il uomo piu bello que já vi na minha vida.”

Sorriu.

“Você também é molto bella, carina.”

Seria homem, seria anjo? Ele podia desenhar, ele podia criar dragões e, quem sabe, ele podia até voar?

“Sabe, maestro, eu gostaria de volare, de ver o mundo lá de cima, como os condores, os gaviões. Uma vez sonhei que voava dentro de uma máquina que parecia um pássaro.”

“Vero? Anche io. Precisamos inventar uma máquina voadora, faz tempo penso nisso, vê?”

Mostrou uns desenhos lindos, parecidos com pássaros de madeira.

“Maestro, faça uma per me!”

“Vou fazer, Leda, mas por enquanto é meglio sentar nessa banqueta. Vou desenhar a sua cabeça. Fique quietinha, não pode se mexer.”
Abriu a gola do meu vestido e abaixou até os ombros. Apalpou minha nuca, deslizou os dedos pelo pescoço:

“Agora, olhe para o lado direito. Fique assim. E non parla! É hora de lavoro.”

“Linda bambina, linda Leda, parece um cisne”. Falava, mas não era comigo, e
riscava, e jogava fora o papel, praquejava:

“Capelli, impossibile desenhá-los. Pois são como as águas, como reproduzir seu movimento? Come? Não posso pensar agora. Não posso pensar na máquina voadora, não posso pensar nas pernas de Vincenzo, não posso pensar na caverna, negra caverna que me enche de medo. Medo da ameaça. E de desejo. Desejo de ver se haveria algo miraculoso lá dentro...”

Desenhava meus cabelos enrolados em tranças em duas bandas, despenteados.

“Occhi neri, olhos de cigana. Le moglie, le moglie têm um cheiro diferente. Non, non può pensare!”

“Maestro, estou cansada.”

“Ancora, Leda. Não se mexa.”

“Maestro, ho famme.”

Eu estava toda tortinha para ao lado direito. “ Que o maestro fique bravo,” pensei.

“Vou sair daqui agora.”

“Leda, coisa fai?”

“Scusi, maestro.”

Fui até o fogão de pedra, esquentei um caldo, coloquei em duas grandes tigelas, parti o pão.

“Só tem isso para comer. Sei cozinhar um linguado com alcaparras que é uma delícia. Amanhã faço para o senhor. Mangiamo, maestro, che fa bene.”

“Si, ha ragione Leda. Grazie.”

Ele bebia o caldo sem fazer ruído. E olhava para os meus cabelos.

“Desenhar capelli só não é mais difícil do que criar a máquina de voar.”

Largou a tigela e pegou nos meus cabelos. Fiquei vermelha de novo e tinha vergonha de ficar vermelha. Suas mãos, nem de homem, nem de mulher, talvez de anjo, separavam as melenas, pesquisavam, enrolavam, faziam coques, entrançavam, esticavam, desciam até a minha cintura.

“Vamos lavar seus cabelos, carina. Essa coisa já é difícil de desenhar quando está limpa, quem dirá ensebada desse jeito.”

“Maestro, faz mal lavar a cabeça depois de comer.”

“Ora, carina, não diga tonterías. Vá até o poço e traga dois baldes de água. Depois esquente, está muito frio. E traga também um sabão.”

“Sabão??????”

“Si, sapone. Via, Via!!!

Dio santo, eu pensava, cada vez mais brava. Agora tenho de lavar a cabeça. Para que isso? Se alguém pensa que tirar dois baldes do poço debaixo de chuva é brincadeira, só se for um homem. Mas eu estava acostumada. Pior era lavar a cabeça.

“Pronto, Leda?”

“Calma, maestro, estou esquentando a água.”

“Depressa, depressa. Não tenho todo il giorno.”

O maestro jogou um balde de água dentro da bacia e colocou em cima da
mesa. Eu só olhava para a as mãos dele. ( O maestro nunca saberá?)

“Cosa tanto olha, bambina? Nunca lavou a cabeça?”

“Não, maestro. Quer dizer, claro que sim, não estou olhando nada.”

O homem belo, belíssimo, de mãos tão macias e firmes, empurrou minha cabeça com delicadeza em direção à bacia. Jogou meus cabelos na água, pegou o sabão ( que tinha perfume de rosa!) cortou um pedacinho e começou a esfregar. Água e cabelo, cabelo e água, ele repetia. Movimentos tão parecidos.

“Sabia, Leda, que o mundo tem mais água do que terra?”

“Duvido, maestro.”

“Pois tem.”

(Não quero conversar, maestro.) E eu amolecia, como uma cotovia, pequena, nas mãos do artista. Que massageava com sabão desde a nuca até a ponta dos cabelos.

“Que bela capelliera Leda. Parece um oceano vermelho.”
Cabelo vermelho na bacia de estanho. Cabelo vem de dentro, cabelo é como pensamento.

“Olha só a cor da água. Está ficando nera.”

De olhos fechados, eu mal ouvia. Só sentia tudo de novo. Tontura. ia desmaiar. Arrepio. Sensação parecida quando comia a ambrosia de que mais gostava?

Não, era diferente. E vinha de novo, desde lá debaixo até o peito. Quentinho como o colchão de casa, no inverno brabo, edredon de penas. Como o ninho das galinhas e dos coelhos de focinho cor de rosa.

Como o sonho que sonhei quando tinha dez anos e eu era um pássaro que sonhava que era uma menina de cabelos vermelhos.

“Andiamo, Leda. Seque os cabelos.”

Fiquei um bom tempo agachada ao pé do fogão de pedra.

De longe, olhava para ele, a escrever. O maestro escrevia diferente. Eu não sabia ler, mas já tinha visto Verrochhio muitas vezes escrevendo do lado esquerdo para o direito. Ele não. O maestro era cheio de segredos.

“Pintura é poesia muda e poesia é pintura cega. Elas reproduzem a natureza, na medida de suas possibilidades, mas a ultrapassam, porque eternizam”, disse.

“Cosa, maestro?”

Não respondeu.

O maestro nunca saberá.

Primeiro com giz negro, depois com lápis. Durante muitas semanas o maestro desenhou a minha cabeça.

Um dia que estava veramente triste parou de desenhar, amassou o papel azul, pegou na minha cabeça, com os dois polegares entre minhas sobrancelhas e perguntou:

“Dimi se mai fu fatto alcuna cosa? Dimi!!!

“Maestro, tanta gente faz tantas coisas tutti i giorni. Olha, hoje eu ajudei la mamma a cuidar dos meus irmãozinhos menores, fiz a colazione e trouxe ambrosia para o senhor. Viu quanta coisa eu fiz? Vamos comer, está em cima do fogão.”

O maestro gostava muito da minha comida, acho que por isso riu, riu bastante e ficou alegre de novo.

Fui tanto felice naquela primavera. Durante uns bons anos continuei amando o maestro, não sei se como homem, anjo ou mago. Nunca lhe disse, tinha vergonha que ele soubesse, um homem tão diferente, que entendia de tudo, de pontes, de música, de dragões e de unicórnios.

Ele jamais poderia imaginar o que acontecia comigo.

Mais tarde pintou um quadro meu, nua, ao lado de um cisne.

“Seu nome será Leda e o cisne. Diz a lenda que Leda, princesa de Aetólia, foi amada por um deus que apareceu sob forma de cisne. Por isso o quadro terá quatro ovinhos, seus bambini.”

Nunca vi o quadro, só os cartões azuis onde ele fez os esboços. Deve ter ficado lindo! Pena que se perdeu, nas muitas mudanças do maestro pelo mundo. Mas os desenhos da minha cabeça, esses estavam sempre na parede de sua casa.

Quando partiu e nunca mais voltou, mandou me entregar a delicada miniatura de um homem voando num pássaro de madeira. Pedia a ajuda de Vincenzo, que conhecia a escritura do maestro, para decifrar sua letra no cartão azul. Ele pegou um espelho, colocou em frente ao papel e leu:

“Para Leda, una donna così bella, que muito amei, do meu jeito.”

É o brinquedo preferido dei miei bambini