Wilson Martins
O Crítico
(Jornal OPOVO, 27.09.1997)
Felipe Araújo
Um dos críticos literários mais poderosos do país, Wilson Martins
fala sobre literatura brasileira, poesia, crítica, pinimbas
literárias e prestígios imerecidos.
Se valer sua afirmação de que "a
história do homem ocidental é, em última análise, a história do
livro", pode-se dizer que Wilson Martins tem um vasto conhecimento a
respeito do nosso passado. E também, claro, do presente: por mais de
40 anos o crítico literário paranaense cultivou o hábito de ler pelo
menos um livro por dia e consultar outros tantos para poder escrever
seus artigos.
Como resultado, tornou-se um renomado
professor de literatura - com 30 anos de atuação à frente da cadeira
de Literatura Brasileira da Universidade de Nova York - e um dos
mais respeitados e polêmicos críticos brasileiros. Admirado por
alguns e odiado por outros tantos - só para ter idéia dos vespeiros
em que já meteu a mão, Wilson armou uma verdadeira cruzada contra
Paulo Leminski e chegou a afirmar, por exemplo, que Guimarães Rosa,
mal orientado pelos críticos, estava perdendo-se em "invenções
fisiológicas".
Muitas opiniões não ficaram sem
resposta. "É um reacionário", disse certa vez Darcy Ribeiro. "Um
homem equivocado", definiu em outra oportunidade Haroldo de Campos.
Tréplica do crítico: "Em geral, essas críticas são retorções",
afirma lacônico, defendendo a independência do crítico literário
para com as "curriolas e igrejinhas literárias". E como polêmica
pouca é bobagem, diz que Darcy Ribeiro é um autor que precisa ser
reavaliado - e para baixo.
No último dia 22, de sua casa em
Curitiba, Wilson conversou por telefone com o Sábado. Na pauta, o
panorama atual da literatura brasileira, seus 50 anos de crítica e -
como não poderíamos deixar passar em branco - poesia cearense,
assunto que confessa não conhecer por um motivo muito simples: os
autores não lhe mandam os livros.
OP - Nós fizemos uma matéria sobre a poesia
produzida no Ceará nos últimos sete anos e percebemos que mesmo os
nomes consagrados não se saíram bem. Isso é uma realidade nacional?
Wilson - É, sim. Mas quando a gente fala em bloco a respeito da
situação da poesia é um pouco desfocador. Eu creio que há aí uma
ressalva a se fazer. Não há em si mesmo nem o bom poeta nem o grande
poeta, os poetas são bons ou menos bons para os leitores que têm uma
afinidade com o seu temperamento, com sua inspiração e assim por
diante.
OP - Mas com relação ao panorama atual da
nossa poesia?
Wilson - Bom, no âmbito nacional, existem alguns nomes consagrados
como, por exemplo, o João Cabral de Melo Neto - já que agora passou
um pouco a era do Drummond, que durou alguns anos. Mas esses grandes
poetas do passado estão vivendo um pouco do que a gente pode chamar
de velocidade adquirida, não é? As idéias feitas. A crítica
literária e o jornalismo literário raciocinam muito por meio de
idéias feitas.
OP - Como assim?
Wilson - Nesse momento, a gente tem, por exemplo, um grande
poeta que é o Affonso Romano de Sant'Anna e que ainda não teve nem
na crítica nem no jornalismo literário o papel que merece. Em São
Paulo existe o José Paulo Paes que é também poeta de primeira
qualidade, inclusive tradutor de poesia clássica, e assim por
diante. Ao lado, então, desses consagrados e que são cansativamente
repetidos, existem os outros que ainda não tiveram o seu lugar ao
sol. Mas existem também falsas revelações de poesia.
OP - Quem, por exemplo?
Wilson - Eu cito o caso daquele Manoel de Barros lá do
Pantanal, festejado porque escreve uma literatura fácil, de pequenos
aforismas e frases de efeito, mas não considero aquilo como uma
poesia de ordem literária. Ao mesmo tempo a Adélia Prado, em Minas
Gerais, também é uma poetisa que ganhou fama por escrever poesia em
prosa, ou por escrever prosa em forma de poesia. Então ao meu ver
está faltando nesses poetas aquele consciente de qualidade, de
gabarito literário, que eles não têm.
OP - Esse número excessivo de publicações não
contribui para que essa questão fique um tanto diluída?
Wilson - É verdade, porque o espaço e a atenção que o jornalismo
literário dedica a esses autores é em detrimento do espaço que fica
faltando para os demais. Por exemplo, há pouco tempo surgiu no
Brasil o Adriano Espínola, que é um excelente poeta, de primeira
condição, mas que só foi lembrado e comentado no momento em que saiu
seu livro. Depois disso praticamente ninguém mais falou nele. Então
eu acho que esse é o ambiente que a gente deve encarar com mais
seriedade, e em certo sentido abrir lugar para os novos valores, os
que sejam realmente lidos e não lidos dentro da perspectiva do
Drummond, do João Cabral de Melo Neto e outros.
OP - Outra coisa que nós percebemos foi que
aqui as pessoas publicam muito por vaidade. Livros sem muito
cuidado, sem muito critério, são publicados meio que na pressa para
que o autor possa ver o ``seu'' livro publicado. Como o senhor
avalia isso?
Wilson - Bom, a publicação por vaidade é um fenômeno universal.
Agora, quanto à vaidade técnica ou tipográfica dos volumes, isso
varia muito de acordo com as condições locais. Nem todas as cidades
brasileiras têm equipamentos modernos capazes de produzir livros à
altura dos que se publicam em outros centros. Por outro lado, o bom
livro custa caro, de forma que o poeta principiante, seja bom ou
seja ruim, procura em geral uma tipografia de subúrbio onde possa
imprimir seus livros a um preço baixo. Além disso, essa gente que
publica por conta própria leva uma grande desvantagem que é a falta
de distribuição. A circulação de livro no Brasil ainda está na fase
da pedra lascada. E segundo estou informado, até por descaso dos
livreiros, que, por incrível que pareça, não se interessam por
literatura. Eles nem mesmo têm a iniciativa de encomendar dois ou
três exemplares do que for aparecendo, a título de experiência, para
ver até que ponto existe um público leitor para esses livros. Então
é um problema que mistura literatura, mercadologia e circulação.
OP - Além do Adriano Espínola, o senhor
conhece ou poderia citar outros referenciais importantes na poesia
do Ceará?
Wilson - O Ceará teve uma grande revelação esse ano na poesia do
Soares Feitosa, que é uma poesia telúrica, apresentando bastante
novidades de inspiração e também de estilo. Mas não estou preparado
para responder essa pergunta porque conheço mal a poesia
contemporânea do Ceará. E por um motivo muito simples: não recebo os
livros. Não se vendem esses livros aqui no Sul. Só tomo conhecimento
dos autores que tomam cuidado de me mandar seus livros, de forma que
em se tratando de poesia contemporânea cearense eu também estou na
idade da pedra lascada.
OP - Numa entrevista de 1978, o senhor disse
que o conto era o único gênero em franco progresso no Brasil. Na
ocasião, o senhor citava o aparecimento de Rubem Fonseca, Luis
Vilela, Dalton Trevisan. Como o senhor pensa essa questão hoje?
Wilson - Bom, aquilo foi um ciclo. Um ciclo que já está encerrado.
Quer dizer, hoje, continuam a aparecer livros de contos, os jornais
e revistas publicam contos mas não com aquela ênfase, com aquela
predominância. Aquela foi a grande fase do conto brasileiro. Mas há
uma lei literária que diz que em nenhuma literatura há lugar para
dois grandes gêneros ao mesmo tempo. Lembre-se que o conto àquela
altura praticamente matou o romance e a poesia. Depois que o conto
desapareceu começaram a reaparecer os romances, que é o nosso
momento atual. Mas nesse momento, eu percebo também uma espécie de
recuperação da poesia. São publicados livros de poesia, existem
pessoas como o Afonso Romano de Sant'Anna, o Ivan Junqueira, o
Adriano Espíndola, e sem esquecer da revista Poesia Sempre publicada
pela Biblioteca Nacional. Tudo isso parece que indica uma
ressurgência da poesia.
OP - O Brasil tem inegavelmente uma extensa
produção literária - o que não quer dizer que se produzam muitas
coisas interessantes. Será que não se tratam de obras ocasionais,
conjunturais, que não acrescentam nada à literatura brasileira e que
mais tarde terão provavelmente um valor puramente histórico?
Wilson - Não concordo com uma parte e concordo com outra parte, mas
há um fenômeno que considero muito: para haver grandes obras de
literatura, em qualquer gênero, é preciso também haver um grande
volume de subliteratura e de obras medianas. Essas obras é que
formam o caldo de cultura, o ambiente literário. E a prova está que
naqueles países onde não existe esse ambiente literário também não
surgem grandes escritores. A gente sabe de algum poeta sul-africano,
de algum escritor da Bulgária, mas que são fenômenos inteiramente
fora de série. Ao passo que países como a França, os Estados Unidos,
a Inglaterra e a Alemanha publicam um imensidão de obras
secundárias, que às vezes nós traduzimos aqui no Brasil como se
fossem importantes, que é de onde aparecem os grandes escritores. Os
gênios literários, por assim dizer, se alimentam disso.
OP - Há alguns anos o senhor também se
questionava sobre até que ponto a censura realmente prejudicou a
literatura brasileira. Que muitos escritores simplesmente
justificaram com a censura e preferiram não cumprir suas tarefas.
Qual é a desculpa de hoje?
Wilson - Bom, isso é verdade. Você vê que as prováveis grandes obras
que estavam impossibilitadas de aparecer nunca apareceram realmente.
Há alguns escritores europeus, por exemplo, que pensam que a
censura, ao contrário, concorre para deixar mais afinada a arte
literária. O escritor tem que ter recursos de estilo para dizer de
uma maneira metafórica ou sublimada aquilo que a censura não
permite. Nesse momento não há censura nenhuma e eu creio que os
escritores e os artistas podem fazer o que quiserem sem que haja
nenhuma intervenção do poder público. Agora, a maior censura, em
qualquer país do mundo, ao contrário do que se pensa, não é a do
poder público, mas a dos grupos de opinião, os católicos, os
feministas, os anti-racistas, os anti-semitas, que promovem eles
próprios a poesia na perseguição aos escritores de opinião oposta.
OP - O senhor pode explicar como?
Wilson - Um grupo de uma determinada ideologia simplesmente ignora o
que é produzido por uma outra ideologia. Isso é um erro muito grande
porque, considerando tudo friamente, um escritor esquerdista pode
escrever um bom romance ou um mau romance, e um direitista também.
Porque não depende de sua ideologia a qualidade do livro que ele
escrever.
OP - Isso contou para corroborar a pecha de
direitista que o senhor recebeu?
Wilson - É verdade. Mas essa polarização direita-esquerda já passou
de moda. Hoje quem repete isso o faz por uma espécie de automatismo
mais ou menos comparável ao lugar-comum. Como crítico, jamais me
interessei em ver se o autor é esquerdista, direitista, feminista,
anti-racista, anti-semítico. O que me interessa é a obra.
OP - Os últimos 50 dos seus 76 anos, o senhor
viveu no harém literário brasileiro exercendo o ofício sagrado e
execrado de criticar. Quais os aspectos mais curiosos e marcantes
dessa longa trajetória?
Wilson - Comigo acho que houve dois aspectos muito interessantes e
que, em certa medida, até prejudicaram a leitura do que eu escrevo.
Em geral, no Brasil pensa-se que eu escrevo sobre autores. Não
escrevo sobre autores, escrevo sobre livros. De forma que um autor
pode ser elogiado num livro e criticado negativamente em outro.
Outro aspecto eu acho que se prende um pouco à minha independência,
ao fato de não conviver nos meios literários e de não ser
influenciado pelas curriolas, pelas igrejinhas literárias. Partindo
dessa perspectiva, às vezes contrario as opiniões feitas. Assim,
qualquer restrição a Guimarães Rosa ofende os concretistas de São
Paulo, qualquer restrição a João Cabral de Melo Neto ofende os
mesmos concretistas e também aqueles que defendem uma poesia
passionalista e cerebral e assim por diante.
OP - E em relação às críticas que o senhor
recebeu de gente como Haroldo de Campos, Darcy Ribeiro e Paulo
Francis?
Wilson - Em geral, essas críticas todas eram retorções. Os
concretistas e o Darcy Ribeiro estavam apenas retaliando críticas
que fiz, seja à própria poesia concretista, seja ao livros do Darcy
Ribeiro, que na minha opinião é um autor ainda a ser reavaliado, mas
reavaliado para baixo. Já o Paulo Francis, pelo contrário, sempre
elogiou meus livros. Fazia algumas restrições, mas no conjunto
sempre fui objeto de críticas muito favoráveis da parte dele.
OP - Numa entrevista recente o senhor disse
que ``a partir de 98, não sei onde estarei, nem onde estarão meus
livros''. O senhor realmente pensa assim?
Wilson - A minha única esperança é o futuro, é saber, quando todas
essas paixões desaparecerem, quando tudo isso acalmar, o que vai
sobrar das minhas opiniões. Seja acompanhando as idéias feitas de
cada momento, seja contrariando-as. O Álvaro Lins dizia que a única
maneira de medir a importância de um críticio é quando o seu
julgamento se encontra com o julgamento da posteridade. Marquei
então um encontro com a posteridade, vai demorar um pouco, mas de
qualquer maneira é o que estou esperando.
OP - Que livro de poemas o senhor apontaria
como o melhor dos últimos cinco anos?
Wilson - Ah, isso é difícil. Indicaria não um único livro, mas os
livros do Afonso Romano de Sant'Anna, seus grandes poemas sobre a
civilização ocidental, sobre o mundo, sobre o destino. Esses eu acho
que são os grandes livros que na era pós-cabraliana (risos) marcaram
a poesia brasileira. Acho que ele pertence à família espiritual do
Drummond de Andrade, mas foi um passo além. Ele hoje tem uma visão
ecumênica, uma visão internacional, que o Drummond não tinha
realmente. Drummond tinha muito daquele provincianismo de espírito
tão característico de sua mineiridade. O Afonso Romano é um poeta no
sentido universal da palavra.
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