Foed Castro Chamma
A
aura na poética de Cassas
No empenho de integração de forças
maranhenses no âmbito universal da poesia, invocando e associando-se
a expressões diversas da cultura, sejam mitopoéticas ou filosóficas,
tecnicistas ou herméticas, observa-se na lúcida manifestação do
pensamento de Luís Augusto Cassas, radicado em São Luís, o objetivo
de atingir uma síntese que incorpora inclusive o niilismo, o
nirvana, o satori, como fundamentos oníricos de uma dramática visão
do mundo, cuja sinatura possui nuanças realistas, expressionistas,
dadaístas, surrealistas, atento o poeta ao intrincado instrumental
de uma linguagem que se insere de modo definitivo no panorama da
poesia brasileira.
De “Liturgia da Paixão”, Nórdica
1997, a “Ópera Barroca”, Imago 1998, um salto abrupto, a partir de
“Retorno da Aura”, Nórdica 1994, denota a intenção de uma poética
abrangente nesse work in progress, que congrega elementos universais
do saber como desfecho de um fazer não com o aparato apenas de
invenção, de que é fértil o poeta, mas de síntese mesmo e de relação
com o que constitui a captura da imagem nos diferentes estágios da
realidade, à qual a linguagem poética se presta no sentido de cotejo
e visão crítica dos arquétipos, cujo sincronismo preside o mecanismo
empírico da representação.
Em “Liturgia da Paixão”, o sentido
trágico do ser pressentido outrora pelos gregos adquire ali
conotação erótico-existencial. Observa-se nessa abordagem objetiva,
racional, um tempo concreto e um realismo exacerbado, configurando
de modo renovador a poética do paganismo decadente de Horácio,
Ovídio, Catulo e mesmo do espanhol de Bilbao, 40 dC, Marcial, e seus
epigramas exemplares, expostos na revista “Medusa” nº 1, de
Curitiba. Cassas retoma o rumo de uma arte despojada de metáforas e
do mito em função de um saber e uma paidéia com todo o cotejo da
moderna herança pós-renascentista.Em “Ópera Barroca” temos Vieira e
Gregório de Matos no itinerário daquele que ama São Luís e aponta as
veredas da cidade, os becos com os vícios e virtudes de todas as
grandes e pequenas cidades, cujo emblema é o de nossos corpos
transfigurados em “sotaques endiabrados”. As collages entremeando os
poemas, na metade do livro, com retrato do autor, em número de
vinte, onze com um cromatismo discreto contrastando com a iluminura
noturna da cidade e o “sonho com o futuro e o passado de glória”,
conferem a esta obra singular uma historicidade evocadora das ruínas
do palácio de Príamo e as estátuas de reis mortos, que o poeta quer
resgatar.
“Ópera Barroca” é único em sua
promíscua realeza. O estilhaçamento de uma retórica perversa
decadente reinaugura um estilo ao refazer o corpo da bela cidade de
São Luís.
O livro é concebido como anagrama
do Corpo e da Palavra, segundo a antiga Cabala e o Torah. A
desenvoltura dessa linguagem quebra os tabus da metafísica do ser e
o universo da subjetividade. É uma leitura necessária ao resgate do
canto, ora obscurecido, ora aviltado, o qual nesse exercício
desopila o bom leitor. “Novema do Hemorroísso” e “Anedotas das 1001
Noites Maranhenses”, p. 91 e 209, quase matam de rir. O posfácio de
César Teixeira denota certa cumplicidade no amor à cidade, vista de
dentro.
Em “Titanic-Boulogne (A Canção de
Ana e Antônio)”, Imago 1998, Luís Augusto Cassas parodia o lado noir
na vida de Antônio Gonçalves Dias, com feroz sensibilidade de duplo
do poeta romântico, patriotismo amoroso e uma amplitude de glosador
a abarcar o intimismo preconceitual de uma acerada aristocracia
provinciana. Neste livro, além da alusão à figura do grande cantor
indianista, residente na cidade de São Luís, de tantas vielas
caprichosas e sobrados de azulejo português, a obsessão do poeta é
enriquecida com anagramas irônicos - logos/até logo, dram/ice cream,
Roma/aroma. Nesta poesia tardia a serviço da notícia, o aedo está
presente como nas antigas rapsódias, a relatar a história e os
mitos. Ana Amélia é um travo de amor que Cassas aponta ao leitor,
envolvendo seus poemas de uma aura ludovicense que lembra em sua
nostalgia byroniana a Atenas brasileira.
O exímio ensaísta Franklin de
Oliveira reconheceu os méritos dessa excelente poesia. Cassas
comparece ao banquete do espírito, enriquecendo intensamente a
diversidade do canto, o qual se fecha no interior de um círculo
atemporal. Em seus poemas o autor desempenha o papel de duplo da
nova Atenas, que aguardava seu ícone pós-moderno.
Em outro livro, intitulado
“Shopping de Deus & A Alma do Negócio”, Imago 1988, ao afirmar o
autor na “declaração de príncípios” que veio do “ventre do nada”,
nos deparamos com a alegoria alquímica da pedra de esmeralda, onde
se lê “que o vento o transportou em seu ventre”, cf. Le Miroir de la
Magie, p. 98. A definição sumária de tantas máscaras e pseudônimos
de “Agosto” é uma trágica reedição da heteronimia pessoana. Em
“Matrimônio dos Opostos”, p. 21, o duplo de E.A. Poe, projetado na
multidão, ali comparece inteiro. Em “Entre dois Amores”, p. 29, a
dicotomia Deus e o Mundo corresponde a uma hierogamia alquímica.
Espírito e Matéria são arquétipos e comparecem como representação do
sujeito.
Uma metafísica percorre esse livro
para ser lido com atenção, no qual se retoma todo o fulgor
mitopoético de antigas cosmogonias. A ontologia é uma questão
filosófica retomada criticamente. Transcendência e imanência sofrem
o jogo vocabular de desconstrução, aliciando leituras adormecidas. A
ironia é levantada como contradição extraída de altos momentos do
pensamento, onde espírito e matéria pertencem ao rei do mundo no
umbigo da Terra.
Quem muito guarda menos me possui
Firma o poeta à p. 77, de “O
Retorno da Aura”, dica em 1994, ao implantar um axioma neo-taoista
com o subtítulo “Golden Meditation”. Ao proclamar neste livro o
TodoUno, o poeta restaura o pensamento de Xenófanes de Colofão
(570-528), inesgotável em seu intrincado paradoxo em face da
negatividade. Há uma sabedoria restauradora em vigor nessa poesia
como convém à união implícita do filósofo e o poeta, i.e. a prática
do saber e o imaginário a serviço do poeta/inventor. A sabedoria é
praticada em “O Retorno da Aura” de maneira fescenina, burlando pois
o jargão da sofística. Poema-quase-lápide e Piscis como arremate do
volume são pequenos ‘ramos de ouro’ que encerram uma grandeza feita
de palavras:
e (agora) está completa
toda a operação do Sol!
Tal síntese corresponde a uma
alusão irremovível ao logos heraclitiano em relação à Mônada, da
qual a consciência deve resgatar a amplitude universal do ser
planetário enquanto individualidade.
Leia
obra poética de Luis Augusto Cassas
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