Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Foed Castro Chamma

 

Fortuna Crítica: Carlos Newton Júnior

 

Pedra da Transmutação: A Alquimia da Palavra
(em O quinto naipe do baralho. Recife: Artelivro, 2002, p. 23.)

 

Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada, e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Menotti del Picchia, Juca Mulato.
 

 

A escassa crítica até hoje existente sobre a poesia de Foed Castro Chamma jamais foi econômica em matéria de elogios. Já em 1969, em artigo de erudição a toda prova, José Batista afirmava que Labirinto e Ir a Ti eram os "dois últimos livros da mais coerente experiência da moderna poesia brasileira", e identificava, no primeiro, "um dos poemas mais solidamente belos da língua portuguesa"(1). Quanto a Pedra da Transmutação(2), publicado em 1984, César Leal chegou a afirmar, em ensaio veiculado primeiro em jornal e depois em livro, ser o extenso poema "uma das obras máximas da literatura mundial nesta segunda metade do século" para depois concluir que a riqueza do poema é tanta, tantas as suas fontes ocultas, tão complexa sua trama, que somente com o correr de muito tempo - "de muitas gerações , de séculos, diria melhor" - ele será plenamente compreendido(3). Marco Lucchesi vai mais longe: trata-o como o principal poema deste final de século, obra que "eleva seu autor ao mais alto patamar da poesia ocidental"(4).

Essa aparente contradição - entre o pouco falar e o muito bem dizer - é plenamente justificável. Justifica-se ainda o fato de os melhores comentadores da poesia de Chamma serem também poetas. Na realidade, não obstante figurar em obras clássicas da crítica nacional, como a Antologia dos Poetas Brasileiros, de Manuel Bandeira e Walmir Ayala, ou a História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, e possuir, hoje, lastro poético para disputar, com quer que seja, o título de maior poeta brasileiro vivo, Chamma é e continuará, por um bom tempo, poeta admirado apenas entre poetas, e ignorado pelo grande público e pela crítica menor. Isto porque, como se não nos bastasse a ausência de uma tradição filosófica em poesia - e é a linhagem dos poetas-pensadores aquela à qual o autor conscientemente se liga -, a poesia de Chamma é difícil, profunda, hermética, sem qualquer concessão ao gosto médio, tão banalizado nesses tempos de globalização(5). Membro dessa linhagem que nos deu um Augusto dos Anjos ou um Jorge de Lima, Chamma sabe, mais do que ninguém, que sua obra jamais terá a repercussão da obra de um Bandeira ou de um Carlos
Drummond de Andrade. mas, como todo verdadeiro poeta, ele escreve para dar vazão ao seu universo interior, complexo e dilacerado, indiferente às tendências da crítica e às variações de gosto.

Nascido em Irati, Paraná, em 1927, Foed Castro Chamma radicou-se no Rio de Janeiro desde o início da década de 40. Publicou seu primeiro livro, Melodias do Estio, em 1952, aos vinte e cinco anos. Entre esse livro e Pedra da Transmutação (1984), coroamento de sua obra, encontram-se Iniciação ao Sonho (1955), O Poder da Palavra (1959), Labirinto (1967) e Ir a Ti (1969), os três últimos reunidos, depois, sob o título de O Andarilho e a Aurora (1971).

Talvez o aspecto mais significativo de sua biografia tenha sido a convivência com Jorge de Lima, a quem influenciou e por quem foi influenciado. Impossível falar de Pedra da Transmutação sem mencionar outra grande experiência da poesia brasileira reunida em um único livro, sólido e grandioso, a Invenção de Orfeu. Escrevendo sobre as impressões que lhe foram causadas por Invenção de Orfeu, Murilo Mendes afirmou que o poema surgia "como um monumento sobrecarregado de ornatos luxuriosos, desmesurado monumento erguido pela fantasia e liberdade de um arquiteto poeta"(6). Além de atentar para a grandiosidade do poema, Murilo Mendes abre uma interessante perspectiva comparatista, alinhando dois símbolos artísticos sem qualquer ligação aparente: um poema e uma obra de arquitetura. No entanto, Há algo oculto sob o véu da aparência: para além do aspeto meramente fenomenológico, muito embora concretizada em diferentes matérias, na pedra ou no verso, a intuição é a mesma, a do poeta e a do arquiteto - ou a do artista, de uma maneira geral. Nesse sentido, o arquiteto sempre invejará o poeta pelo fato deste precisar tão-somente dele próprio para materializar sua visão do mundo, ao passo que a arquitetura, de todas as artes, talvez seja aquela mais sujeita a intervenções de elementos alheios ao campo estético.

Invenção de Orfeu e Pedra da Transmutação podem, realmente, ser comparados a dois templos de uma arquitetura à qual se convencionou chamar orgânica. Sendo que um poema está para o outro assim como uma catedral barroca está para uma gótica. São dois estilos distintos, mas que se unem na diferença comum em relação à arquitetura de tendência racional. Enquanto em Jorge de Lima predomina a fundamentação em um Cristianismo clássico, em Foed Castro Chamma pressinto o predomínio de um Cristianismo primitivo, um culto quase pagão, realizado em escuras catacumbas, onde Cristo às vezes se confunde com Abraxas, senhor do Bem e do Mal, do mundo luminoso e do obscuro, Deus de Emil Sinclair e Max Demian. Daí a aproximação da poesia de Chamma com a revelação dos pré-socráticos, e seu conseqüente parentesco com Nietzsche. Por outro lado, esta união na diferença em relação ao clássico é o que, a meu ver, faz com que ambos - Jorge de Lima e Chamma - se aproximem de um Vico.

Se é forçoso concordar com M. C. Proença ou Raduan Nassar, quando expressam, em relação ao poema de Jorge de Lima, uma certa impossibilidade em compreendê-lo de um ponto de vista lógico - e o mesmo pode dizer-se do poema de Chamma -, é preciso reconhecer que uma certa lógica concorreu para a realização dos dois poemas, notadamente quanto ao rigor artesanal que apresentam.

Em Pedra da Transmutação, à semelhança de Jorge de Lima em Invenção de Orfeu, ou até mesmo de James Joyce, no romance Ulisses, Foed Castro Chamma trabalhou também como artesão, a procurar deliberadamente o rigor formal, às vezes injustamente confundido, pelos poetas menores, com o rigor da fôrma. Em sua Catedral, Chamma ora trabalhou como mestre de risco, ora como pintor, ora como pedreiro - trabalho de real transpiração. Desta maneira foi sobrepondo as muitas pedras que compõem seu magnífico templo à palavra viva. Como no Ulisses, os órgãos do corpo humano não estão de fora, mas em íntima relação com a escritura:

Água. Fogo. Madeira. Ouro. Terra
Rins. Coração. Pulmões. Fígado. Estômago.
A relação obscura corresponde
à natureza elemental e humana.
(7)

 

Pedra da Transmutação é um poema verdadeiramente grandioso. Grandioso não só pelo número de versos - dez mil, todos decassílabos agrupados em quadras -, mas no sentido que alguns estetas atribuem ao termo - uma categoria de beleza que causa deleite e temor ao mesmo tempo, que nos atrai e nos ameaça, sentimento contraditório diante de algo que parece estar acima das forças de um homem comum. Como se estivéssemos, mesmo, sob o alto teto de abóbadas ogivais de uma imensa catedral gótica, ladeados por um sem número de vitrais a espalhar luz e sombra, cor e movimento, êxtase e alegria.

Em toda a extensão do poema, Foed Castro Chamma revela lucidez e lógica poética. Assim, a despeito dos dez mil versos de Pedra da Transmutação, ninguém poderá negar que Chamma é um poeta de concisão. Concisão não entendida, como querem alguns mais desavisados, no sentido de poema curto. E talvez seja mesmo a concisão a pedra-de-toque que diferencia a linguagem da Poesia da linguagem de outros gêneros de Arte. Se o diretor de cinema David Lynch precisou de todo um longa-metragem para expor a enorme contradição entre a placidez aparente do mundo e a fúria do real - tema do grande filme Veludo Azul (Blue Velvet, 1986) -, ao poeta bastaram duas estrofes para atingir a mesma verticalidade de análise consagrada em todo o tempo de projeção:

Rasga a orelha da presa, arranca os olhos.
O suor escorre verde por mil poros
ofegantes na luta sem que os braços
se mova, o ar se aflija, negra a fome

dos urubus devore o rosto exangue.
Tudo é sossego na aparência. As águas
paradas não exibem o conflito
das cordas tensas entre a fúria e a calma.
(8)

 

Esta contradição, por sua vez, pode ser um dos fatores que originam a tragédia de todo homem. Para Chamma, exímio conhecedor de mitos gregos, o mundo é também uma grande cadeia, na qual todos nós nos encontramos presos, à espera da conclusão do destino de cada um, destino já traçado e, portanto, inevitável:

Ágil o tempo nos engana, somos
prisioneiros. Armamos nossas grades
nos pés, e caminhamos semeando
fatos que são os nossos próprios fados.
(9)

 

Muito embora seu tempo de escritura encontre-se reduzido a vinte anos (de l962 a 1982), Pedra da Transmutação é daquelas obras construídas no decorrer de toda uma vida. Não seria errado afirmar que a origem mais remota do poema encontra-se na infância do autor, quando Foed, neto de alquimista, deslumbrou-se pela primeira vez com o trabalho do seu avô. Este encantamento primordial o levará a refazer, muitos anos depois, e de maneira original, o caminho do alquimista que de fato conheceu: ao invés da transmutação da palavra, no sagrado e profundo exercício da Poesia, à procura não da substância de toda e qualquer obra de arte, a Beleza.

O exercício da Arte, assim, não deixa de ser uma maneira de se atingir o conhecimento. Conhecimento não mais racional e lógico, mas mágico e poético, tampouco alógico, desprovido de qualquer lógica, mas supralógico, baseado em uma lógica superior. Alquimista, ou sábio, e poeta, ou artista, são duas daquelas espécies de homens superiores mencionadas por Platão: aliados ao homem justo, que procura o Bem, são todos passíveis de uma união com o Divino ainda aqui, neste mundo sensível, transitório e em ruína. Importante lembrar que José Batista, escrevendo sobre a poesia de Foed Castro Chamma anterior à Pedra da Transmutação, percebe referência às transmutações alquímicas pelo menos desde a composição de Labirinto(10); e que, se o fogo é um elemento imprescindível para a Alquimia, Chamma já surge como um predestinado desde o nome. Uma das inúmeras visões descritas em Pedra da Transmutação parece desvelar a síntese perfeita entre as duas transmutações, a da Alquimia e a da Poesia:

Vi pedrarias na corrente verde
da fala, o brilho de esmeralda ardia
e inundava de líquidas vogais: a
sala prisioneira da poesia.

Era como se o fogo se tornasse
visível e emprestasse à humana voz
o esplendor da beleza inacessível,
distante e perto, eterna e transitória.

Eu vi a palavra fora de sua boca
desenrolar o manto da poesia.
O som criava pássaros alegres
que voavam e desapareciam.

O encanto era tal que se perdia
a imagem verdadeira, e vi a palavra
transformar-se de nítido metal
em labareda, em fogo, em sombra alada.
(11)

 

Em sua busca incessante da Beleza, que passa, inclusive, por tentativas de conceituação desse verdadeiro enigma universal, o poeta procede a sínteses filosóficas que compõem toda uma Filosofia de Arte. A Beleza tanto pode ser entendida no sentido platônico quanto no aristotélico, que originam, respectivamente, uma tradição idealista e outra realista de pensamento. Vejamos uma passagem em que prevalece o conceito de Platão, para quem a Beleza, sendo reflexo de um arquétipo existente no mundo das essências, não era criação, mas reminiscência:

Os sons e cores geram a semente
das palavras. Assim como nas águas
refugia-se o fogo, assim o belo
não é criado, apenas transmudado

por impressões que captam a harmonia
do que possui a forma. Recriá-lo,
é acrescentar ao natural uma ordem
que renova essa forma dando à ave

além de seus contornos o valor
da beleza em sua relação
com a verdade. Do belo emerge um deus,
espelho da figura, anunciação.
(12)

 

Um pouco mais à frente, Chamma se apega à visão de Aristóteles, primeiro pensador a legitimar, no campo estético, a beleza criada a partir da desarmonia do mundo, através de uma imitação corretiva do real, isto é, de uma transfiguração, engendrada pelo talento individual e criador do artista:

[...] O real e seu apelo
à compreensão do que adquire forma

pela energia criadora do homem.
Pois o belo decorre da visão
transfigurada do real. E soma
à experiência sua própria sucessão.
(13)
 

Por outro lado, ainda segundo Aristóteles, a Beleza resultaria da harmonia das partes de um ser, entre si e em relação ao todo do ser, ou seja:

é o belo, essa harmonia dos contrários
delineada na múltipla visão
das coisas, identificando-se a cor,
o movimento para a sensação

do que resulta do conflito. O belo
é o apelo sensível de um encontro
fora, no objeto ideal do entendimento
ao conciliar no mesmo corpo o Outro,

quer no afeto ou na devoção, no culto
da compreensão onde a alegria exalta
a centelha do bom e o pensamento
completa-se no rito tal uma arte

não imitada do real, mas viva.
(14)

 

Durante muito tempo, os alquimistas, confundidos com bruxos, trabalharam à noite, hora em que melhor podiam se dedicar aos seus estudos secretos. Coincidência ou não, a cor negra encontra-se na própria raiz da palavra "alquimia", que aparece pela primeira vez, segundo os estudiosos, em um decreto do século III assinado pelo imperador romano Diocleciano. No decreto, o imperador procurava combate "os velhos escritos dos egípcios que tratam da khemia transmutação) do ouro e da prata". O Egito era também conhecido como terra de Khem ou Khame, hieroglificamente Khmi, "terra negra", em oposição ao branco das areias do deserto.(15)

Talvez por isso o poeta-alquimista demonstre seu enorme fascínio pelo escuro e pela noite (fascínio semelhante ao do poeta-arquiteto Michelangelo). Em Pedra da Transmutação, a noite é a noite de negro ventre, que guarda o segredo da sombra, noite tormentosa, em que o horizonte é um grito de negros clarões a coroar a negra fronte, noite em que as sombras correm soltas, tecendo solidões que são abismos, noite em que as águas correm negras, e os enigmas estão submersos no porão de trevas cintilando de negrura, negrura do dia e do sol, do obscuro sol humano, noite anterior à vida, que circunda os seres e agasalha o pensamento, noite, enfim, criadora da vida pré-consciente do intelecto, do inconsciente, por onde o poeta incursiona num fantástico mergulho de ponta-cabeça, sem medo de sua queda interior e do cerco dos vampiros.

Foed Castro Chamma parece ter levado às últimas conseqüências o exercício poético enquanto maiêutica, já preconizado por Rilke em uma de suas famosas cartas a um jovem poeta: "Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na compreensão e na criação".(16)

Se a Alquimia foi mesmo invenção do deus Tot, o Hermes dos gregos, justifica-se o trabalho com frascos hermeticamente fechados, lacrados com o selo do deus. Justifica-se, também, o hermetismo de Pedra da Transmutação. Segundo a lição de Octavio Paz, constatar a existência de um grande poeta hermético, como Foed Castro Chamma, é suspeitar de que nossa sociedade padece males incuráveis(17). Prova maior de que o texto de Chamma é hermético por condenação, por uma necessidade impositiva, como diria Flávio Kothe(18) - diferentemente daquele escritor que procura ser difícil por desejo ingênuo de demonstrar erudição -, encontra-se no fato de que o vocabulário do poema é acessível a qualquer leitor medianamente culto. Seu hermetismo (semelhante ao da semente, diria Paz, pois nele dorme a vida futura) encontra-se nas imagens descritas, nas belíssimas metáforas, ou seja, não na palavra em si, mas em suas sucessivas transmutações, na riqueza de uma linguagem.

Linguagem que revela, aos poucos, um intrincado castelo interior, de incontáveis moradas, um diversificado caleidoscópio de sombras, a gerar imagens novas a cada passo da leitura, imagens de uma riqueza poucas vezes vista na literatura brasileira; um extenso e oculto labirinto de espelhos. Caminhando a passos largos por este labirinto, o poeta empreende uma descida a um inferno todo pessoal, onde sombra confunde-se com corpo, tornando possível o diálogo com seus fantasmas e a expiação de antigos pecados. Labirinto ou rizoma, rede caminhos em que não se percebe começo nem fim, mas que, ao final do percurso, faz o viajante retorno ao ponto de partida. De fato, já nos primeiros versos de Pedra da Transmutação, o poeta faz questão de demonstrar que seu traçado é notadamente circular:

A medida da sombra guarda o ponto
inicial de uma ausência distribuída
na extensão como um todo: o que é começo
é sempre um fim - o centro seu início,

já que o ciclo se cumpre pela curva
que se fecha na direção do círculo,
já que o instante na plena duração
tem a pausa profunda do princípio,

pois sendo fim é sempre o seu início.
(19)

 

Ora, diferentemente da prosa, que pode ser simbolizada por uma linha, sempre para a frente, com meta precisa a atingir, o poema, para Octavio Paz, apresenta-se como um círculo ou uma esfera, um universo auto-suficiente e fechado sobre si mesmo(20). É isto que Chamma quer ressaltar durante a sua travessia. De modo que, ao contrário de Invenção de Orfeu, viagem com início e fim ("Eis o poema", afirma Jorge de Lima ao concluir o seu longo percurso), o final de Pedra da Transmutação, voltando ao ponto de partida, permanece em aberto. A visão do ouroboros, que já havia sido descrita em outra passagem do poema, não por acaso reaparece no último verso, o de número dez mil. Eventualmente representado como um ou dois dragões, ou pássaro de longo pescoço, e na maior parte das vezes como uma serpente que morde a própria cauda, o ouroboros é o símbolo da infinitude e do eterno retorno, da descida do espírito em direção ao mundo físico e do seu regresso, simbolizando ainda, na Alquimia, a transmutação da matéria(21). Foed Castro Chamma dá preferência à representação tradicional, a da serpente:

Rápida é a voz que colhe o seu segredo
na luz, moldando o som na muda pedra
que se move, responde à indagação
do que a contempla em cintilante esfera,

sem princípio mas vivo, sem sentido
mas ríspido cristal que fere a negra
vivacidade de sua fuga ao centro
da noite, que desperta à sua espera.

O seu ventre de treva gera o atrito
a repartir-se em luz, colado rente
à face do que, dividido em dois,
é círculo e a cauda da serpente.
(22)

 

Há, em Pedra da Transmutação, uma densa e grave cosmogonia pessoal: através de um mergulho na linguagem poética, o autor parte do seu caos interior para uma caçada desenfreada e selvagem à procura de si mesmo, retomando o sentido órfico da Poesia e usando o poema como instrumento de cura. Após dez mil versos, liberto das imagens que o obsedavam, o homem novo, vitorioso e livre, encontra-se finalmente no centro do universo, face a face com D(eu)s.
Pedra da Transmutação é tudo isso e muito mais. É preciso esperar o passar de gerações, lendo-o sempre.
Cada vez que o tenho em minhas mãos, volto a acreditar no gênero humano.

1997-1998
 



Notas

1. BATISTA, José. Poesia continua. O Globo, Rio de Janeiro, 8 nov. 1969.
2. Prêmio Bienal Nestlé de Literatura Brasileira 1984.
3. LEAL, César. Pedra da Transmutação. In _____ Entre o Leão e o Tigre. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 1988, p. 91-97.
4. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 17 abr. 1995.
5. Citado por PROENÇA, M. Cavalcanti: Introdução. In: LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro, (19-), p. 6.
6.CHAMMA, Foed Castro. Pedra da Transmutação. São Paulo: Melhoramentos, 1984, p.38.
7..Ob. cit., p. 47
8. Op. cit., p. 109.
9. Em algumas das cartas do poeta a seus pais, recentemente reunidas no volume Navio Fantasma (Rio de Janeiro: Latife, 1998), percebe-se quão longa e dolorosa foi a feitura do livro. Em 1956, por exemplo, o poeta já afirmava : "Espero abrir com este livro (O Poder da Palavra) o caminho de um longo poema que está dentro de mim e com ele convivo há muito tempo" (op. cit., p. 129). Em agosto de 1965, Foed revela a intenção de inscrever três trabalhos num concurso de âmbito nacional, sendo o terceiro, ainda sem título, "uma obra em progresso, uma experiência ousada". E completa, logo em seguida: Concorro com apenas 2.000 versos de um total de 10,000 que pretendo atingir" (op.cit. p. 217). As cartas posteriores não esclarecem se Foed chegou mesmo a concorrer com o que seria o início de um longo poema. Sabe-se apenas que o segundo dos livros citados, Labirinto, recebe, naquele mesmo ano, o prêmio de poesia do Instituto Nacional do Mate (op. cit., p. 221). Outras referências a Pedra da Transmutação dão-nos conta das inúmeras rescrituras no decorrer dos anos, das constantes revisões às quais o texto foi submetido, de um trabalho árduo e minucioso que, ao que tudo indica, prossegue após a interrupção da correspondência, em 1978.
10. BATISTA, José. Op. cit.
11. CHAMMA, Foed Castro. Op. cit., p. 45.
12. Op, cit., p. 94
13. Op. cit., p. 100.
14. Op. cit., p. 112-113
15. ENCICLOPÉDIA MIRADOR INTERNACIONAL, São Paulo; Encyclopaedia Britanica do Brasil, 1976, Ver "Alquimia”.
16. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. Trad. Paulo Rónai, 19 ed. São Paulo: Globo, 1993, p. 32.
17. Afirma Paz, em O Arco e a Lira: "El cansancio de una sociedad no implica necessariamente la extinción de las artes ni provoca el silencio del poeta. Más bien es possíble que ocurra lo contrario: suscita la aparición de poetas y obras solitarias. Cada vez que surge un gran poeta hermético o movimientos de poesia em rebelión contra los valores de una sociedad determinada, debe sospechar-se que essa sociedad, no la poesia, padece males incurables (El Arco y la Lira. México: Fondo de Cultura Economica, 1998, p. 44). .
18. KOTHE, Flávio Rene. A Narrativa Trivial. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. p. 238-239.
19. CHAMMA , Foed Castro. Op. cit., p. 7
20. PAZ, Octavio. Op. cit., p.69
21.DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo; Cultrix, [199-], p. 151-152.
22. CHAMMA, Foed Castro. Op. cit., p. 364.

 


 

Leia Carlos Newton Júnior

 

 

 

Albrecht Dürer, Mãos

Início desta página

Tarcísio Holanda