Helio Pólvora
Cadê o meu? |
Desconfio que o Brasil verdadeiro, o Brasil real, ficou na planície. Estou no planalto, em um horizonte largo, por onde nada passa, salvo nuvens esfiapadas e aviões de carreira. É natural que ali descessem discos voadores. Onde há espaços vazios há que preenchê-los com a imaginação. Agora que o risco do Brasil disparou, os discos foram rodar em outras freguesias. Tento encontrar certo espaço cultural num desses palácios grandiosos, requintados, que André Malraux, quando aqui esteve, considerou “as mais belas ruínas do século XX”. Confuso no labirinto de corredores compridos e escadas circulares dignas de um romance de mistério de Mary Roberts Reinhardt, vejo desfilar gente apressada. Os homens, de paletó e gravata. As mulheres, com os seus modelitos de corte masculino. Todos sérios, todos compenetrados, todos extremamente polidos. Sobem e descem corredores, enchem corredores, é um rio de gente a correr para um estuário. Que estuário será esse? Parado numa das margens, olho-os com espanto. E me lembro do negrinho de 5 anos que tombou de fome, uma vez, à porta da mãe do poeta Soares Feitosa, no Ceará. Era retirante abandonado, o negrinho, e tinha os olhos inchados como duas bolas. Avitaminose causada pela fome crônica. Recolhido o infeliz, a mãe do poeta diagnosticou: – Devagar, que o menino só agüenta um caldinho bem ralo. Deram-lhe o caldinho, que afinal não era tão ralo assim, pois nele boiavam uns fiapos de carne e uns talos de legumes. Depois de algumas convulsões intestinais, o negrinho tangido pela seca conseguiu pôr-se de pé a tempo de assistir a uma cerimônia insólita – o café da manhã, melhor dizendo, o desjejum, que era farta a mesa e nela fumegavam talhadas de cuscuz de milho cobertas de ovos estrelados, bules de leite, frutas da estação. Agarrado à ponta da saia da mãe do poeta, o negrinho puxou-a uma vez, outra vez: – Cadê o meu? - implorava, os olhos rasos de lágrimas. Pois bem, aquela gente que anda a esmo, nos longos corredores palacianos do planalto, me faz lembrar o negrinho cearense. Todos parecem aflitos, como quem pergunta em educada voz burocrática: – Cadê o meu? Afinal, encontro o espaço onde, dentro em pouco, apresentarei Temporal Temporal, a suma poética de Cajazeira Ramos, premiada pela Academia de Letras da Bahia, e descobrirei que o nosso jovem poeta é um amansador de lobos. Os lobos guardam as parcas reservas das verbas orçamentárias, mas Cajazeira sabe lidar com eles. Insinua-se, suplica, pede, exige, arranca dotações para o sindicato dos funcionários do Banco Central, a cujos quadros pertence. Deputados rendem-se à sua lábia. É considerado um grande lobista, um dos mais competentes no seu gênero. Os colegas aplaudem-no como a um líder, e os legisladores planaltinos, cerca de uns 30, entram na fila para o autógrafo. Ao lado dele, do senador Waldeck Ornellas, que fez uma bela administração na Previdência Social, e do deputado Wellington Dias, exalto os méritos das letras baianas, que estariam a merecer atenção do eixo cultural Rio-São Paulo-Brasília caso a mídia voltasse a se ocupar de livros de verdade, desses que expõem as vísceras, metem a mão no lixo e descem ao lodo das angústias. Temporal Temporal é servido em prato fundo, talvez de flandres e com temperos fortes. Nada de porcelana de Sèvres. Nada dos insossos molhos da auto-ajuda ou do misticismo que induz à resignação. Mais que um temporal, é uma tempestade cerebral, uma chuva de granizo, raios, trovões e ciclones. Com um toque daquela danação de Augusto, o velho Augusto dos Anjos, que foi o Antônio Conselheiro da moderna revolução lírica brasileira e avisou: “Acostuma-te à lama que te espera”. José Cerqueira Filho, assessor de comunicação social da Copene, que patrocinou o Prêmio Gregório de Mattos, vencido pelo poeta Cajazeira, chega a tempo de acompanhar as nossas falas na casa das falas – a Câmara. O poeta Feitosa, editor do Jornal de Poesia, o site literário mais consultado da internet, está atento e feliz, compactua com a tempestade cerebral. Todos fazem da resistência a palavra de ordem contra a crise de leitura, a queda dos níveis de educação, a marginalização dos escritores. Não perguntam cadê o meu. Oferecem de bandeja as suas interrogações, perplexidades, desesperos. Como Alice, entram no espelho à procura do negrinho retirante para dar-lhe um caldo.
A seguir, Soares Feitosa tenta lembrar alguma coisa de Cadê o meu? |
Soares Feitosa Cadê o meu?
Soares
Feitosa conta um pouco daquela festa mágica que foi o reencontro com o amigo Hélio
Pólvora e o lançamento do "Cadê o meu?", aliás, do livro do grande
poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos.
Primeiro,
um telefonema de uma amiga, Vânia, dizendo que lera a crônica de Hélio. Logo
mais de noite, o alô do Cajazeira, ele mesmo lendo ao telefone o texto de Hélio
Pólvora. Em seguida, a Ana Behrens, da Bahia, remetendo o original de A Tarde.
Bom, vamos lá do começo, se é que essas histórias têm começo.
Peguei um Ita, aliás, um Varig, um Tam, sei lá que bicho era, que tanto faz como
tanto fez. O fato é que cheguei, chegamos. A sobrinha Rosemeire já nos esperava
no aeroporto, com o que o hotel perdeu a chance de ver a cor do nosso “rico”
dinheirinho. Levei dois filhos, David e Nazareno. Logo em seguida, o reencontro
com o poeta Cajazeira lá mesmo no Congresso. Chegara primeiro um amigo comum,
Luiz Augusto Feitosa, Guto de Serra Talhada, pernambucano de nascimento, baiano
agora, do Banco Central.
Daí,
fomos encontrar o Hélio. Ah, festa! O almoço, uma cervejinha ligeira, quando
lhes contei a historinha do negrinho que minha mãe escapara da seca do 58
(1958), Antônio, Toim, naquele tempo. A história do moleque, aliás, “muéque”
como ele mesmo a si chamava, na graça dos seus cinco anos, foi assim: 1958, uma
seca da gota serena. O balcão do fornecedor, o que de pior se pode imaginar na
degradação humana (quase, que o limite é infinito) era um grande armazém onde os flagelados recebiam o
ganho magro, não em dinheiro, mas em farinha, feijão, rapadura, querosene,
banha de porco, fígado salgado e nada mais que ninguém era doido para
reclamar. Tudo muito pouco e cinqüenta ou cem por cento mais caro. E de péssima
qualidade. O feijão, do
Paraná, de gosto diferente, preto, que não temos o costume de comer feijão
preto, de quarenta safras passadas, gastava toda a lenha do mundo para cozinhar.
A farinha, azeda e bichada. Acho que só prestavam o querosene e o melhoral. Ah,
cibalena, também tinha cibalena, com a propaganda: Se é bayer, é bom!
Vá lá que fosse.
O
fato é que minha mãe, farmacêutica e parteira do trecho, ia passado pelo tal
fornecimento quando uma flagelada, Rosa, ajoelhou-se-lhe implorando por tudo
quanto era sagrado que
lhe "escapasse" uma criança, aquele ali, o Toim, redondo de gordo... Não, não
era de gordo, mas de inchado, os pés pareciam uns inhames. Minha mãe já
escapara outra criança, a madrinha, na seca do 32, uma seca terrível
que até campo de concentração chegou a ter, no Ceará, mas isto é outra história.
O fato é que a tal negrinha ficou conosco por setent’anos, até seus últimos
dias. Sempre lhe tomei a "bença" e a quis como se fosse - e era - uma
segunda mãe; se duvidarem, primeira.
Em bilhete ligeiro, minha mãe mandou a Rosa entregar o menino lá em casa,
recomendando a madrinha que fizesse caldinho bem ralo. Como de fato, fez. Mas
quem disse?! O noleque cagou a casa toda, quase morreu com a tribuzana que o caldo
lhe fez nas tripas tão
desacostumadas de fartura. Ele era entroncado e branco. Em pouco tempo, cresceu e ficou preto, justo porque a brancura era de pura palidez. E falava muito ruim. Engolia um bocado de letras e era chegado a uns “prumodes” que todo mundo estranhava. Um dia, reclamávamos do seu linguajar, e ele, já deitado, que o imaginávamos dormindo, berrou de lá da rede dele:
—
Se num for prumode é para!
O
moleque era muito traquinas, mas bastava dizer: Lá vem a Rosa! - justamente a mãe
dele, para ficar muito mais pacífico que o cordeiro de Deus. Mas não vinha
Rosa coisa nenhuma. Aliás, nunca veio. E aquele compromisso provisório que
minha mãe tomara de apenas escapar o moleque só pelo resto da seca, ficou
permanente ante a ausência da mãe, que hoje entendo, certamente o medo de
novas fomes ao filho. Desconfio que ela, disfarçando-se por entre as outras, nos dias de feira, via o
molecão que Toim ia formando, alto e espadaúdo, passar lá longe. Sei não,
talvez só o imaginasse, bem perto. O fato é que Antônio ficou e ficou. Lá em
casa, até homem feito.
A
história do “cadê o meu” que Hélio conta com tanta graça, dera-se porque
o Antônio passara tanta fome quando pequeno, que jamais acreditou que a comida,
por mais farta que fosse, chegasse a sobrar para si. Via, mas não acreditava,
por mais que visse. Lá em casa não havia o café tradicional, na mesa. A rigor, nem café havia. Havia, sim, o leite. Leite farto, com qualquer mistura que eram muitas. Farinha de pipoca — quem não sabe o que é farinha de pipoca? Pois já ensino: pegar uma panela grande, com alguma cinza ou com areia lavada, do rio. Botar o milho para pipoquear. Por causa da cinza ou da areia, o milho não estoura. Ficam uns caroços inchados, cheios de amido torrado. Basta cessar na peneira para limpar da cinza ou da areia. Moer e peneirar. Um cheiro de cheirar a quilômetros de fome, um cheiro de sol. Pronto, está feita a farinha de pipoca. Botar em lata do tipo querosene ou latas de biscoito Confiança, de antigamente, dessas de creme-craque, atuais; se, de boca grande, melhor. Pode guardar que, bem tampada, durará meses. É só cobrir o tigelão de leite, espalhar por cima o pó de pipocas, de puro sol... E entrar com a colher assim de lado, adernante.
E
leite com jerimum, tanto do tipo “caboclo” como do "de leite",
cada um é um gosto diferente, ambos uma delícia. Ou com farinha, mas, em sendo
só com farinha, pedia um acompanhamento, um naco de carne assada ou meio corró
de açude. (Corró de açude? Sim, a popular tilápia, também dita cará). Ou com
batata doce. Ou com pão de milho, dito por aí cuscuz. Que tem arte e senso de
nobreza, esse tal cuscuz. Primeiro o milho que havia de ser do tipo “massa”.
Segundo, moído em moinho de pau. Terceiro, tanto melhor se fosse o milho em
ponto de pamonha, mas isto era um luxo de só no inverno. Com pão de trigo, nem
pensar porque pão de padaria era caro e a mãe econômica e farta.
O
fato é que a madrinha administrava e ministrava o quebra-jejum, isto mesmo,
estava caçando o nome, de tanto tempo, quebra-jejum, já nem o lembrava mais. O
panelão de leite, com a mistura, a primeira tigela era, naturalmente, da mãe.
Toim já começava a ficar muito bravo e fulo da vida. “Cadê o meu?!”
- rosnava contra a madrinha, crente que daquele mundo de comida não haveria de
sobrar nada para si.
A
segunda tigela, na ordem hierárquica geral de todas as hierarquias, haveria de
ser para o filho da coronela, eu, este aqui. E a terceira, naturalmente, de quem
seria mesmo a terceira? Do negrinho? Nem pensar! Era da madrinha, que também já
fora “negrinha”, e acho que em seus pesadelos nem acreditava que tanto leite
e jerimuns haveriam de chegar para ela! Bom, a essas alturas, Toim já havia choramingado
211 vezes o seu indefectível "Cadê o meu?!" O pior é que a madrinha, que também era madrinha do moleque, se danava com a "impertinência". "Sai daqui, moleque chorão!", gritava ela, mas já cuidando de lhe aprontar a maior tigela do trecho, aliás, um alguidar duplo, até a tampa de leite e jerimuns, alguns inteiros que ele fazia questão que fossem inteiros, as talhadas, é claro, acho que nem as cascas tirava-as completas. Minhaco, minhaco, clóf, clóf, lembro como se fosse hoje, o leite escorrendo fios pelos beiços, ele lambendo-os de volta. "Bote mais, madrinha!".
Eu também me dizia padrinho do moleque. Era meu o ordenança
geral, seis anos. (Vamos ali, Toim! Jumentos, bodes, vacas, cana, capim, atilhos
de milho verde, melancias, as andanças gerais, pra tudo!). Eu, uns 14. Bons tempos ter,
afinal, um irmão mais novo, na órfã solidão do pai morto, filho único.
Depois,
já em dias de “viagem”, a madrinha, 77 anos, perguntava porque o Toinho não
vinha visitá-la. Nunca contei a ela que o ladrão, pei, dera-lhe um tiro
bem nos peitos, lá nele, que Deus o tenha. Ele, já casado, um pé-de-barraca
na praia. Um dia em que ela insistia sobre a ausência, disse que o mandara ao
sertão comprar uns bodes. Ela admirou-se com o que eu haveria de querer com
bodes na cidade grande. Eu disse que era para ela fazer uns caldos. Para ela,
para mim e o Toinho, que a mãe já nos viajara antes. Não sei do que lembrou,
nem perguntei. Apenas sorriu. Talvez tenha lembrado, sei lá de que lembrou,
quem sabe, daquele jerimunzal com leite, de que resto, de nós quatro, eu, de
resto.
Então,
foi a festa do Cajazeira. Gente até dizer chega. Hélio fez uma belíssima
fala. Nem sei para que, o poeta inventou de recitar. Logo o
soneto
do pai. No final, ele entalou-se, pareceu engasgado, mas não havia corró
de açude, como os de lá, cheios de espinhas, no bifê, farto e saboroso. Muitos puxaram
o beiço, e lenço para acudir. Eu também puxei.
Agora
me conta o Cajazeira que os amigos de lá de Brasília, do Congresso, muitos,
que não puderam comparecer, dizem: Poeta, cadê o meu? Disse que já está
aprontando uma nova leva de jerimuns com leite, desculpem, de livros para eles.
Ah,
poeta Cajazeira, cadê o meu? Pois já lhe conto o que fiz com o meu exemplar,
de sua festa. Lá mesmo em Brasília, no outro dia, encontrei o Nilto Maciel e o
José Peixoto Júnior, da Revista de Literatura, e presenteei o Peixoto,
sonetista, doido por sonetos, como você, com o seu livro. Ao Nilto, contista
dos bons, dei um exemplar do livro de Teoria do Conto, de Hélio. Um belíssimo
livro que já li e reli. Eu mesmo autografei-os em nome de vocês, Luís e Hélio,
como se estivessem ali. E estavam.
Ainda
tenho três exemplares do livro de Hélio aqui na pasta. Um para Natércia
Campos; outro para o Artur Eduardo Benevides, Poeta; o terceiro para o primeiro
freguês que achar à altura. Seria do César Coelho se vivo fosse. Acho que vou
levar para o José Alcides Pinto na visita que lhe farei junto com o embaixador
Márcio Catunda.
E
se você, leitor, quiser ganhar um livro do poeta — Cadê o meu? — passe um email
para ele, clique aqui
Cajazeira,
que tenho certeza que lhe mandará. Se o seu "Cadê o meu?" for para o
Hélio Pólvora, pronto, clique aqui
Hélio,
e diga-lhe que mando abraço, abraço grande, naturalmente. Que também mando
igual para o Cajazeira, esse poeta estupendo. Dois amigos bons de ter, Cajazeira
e Hélio!
Ah,
tigelas!, tigelas de louça, brancas, c'uns enfeites azuis, só por fora; por
dentro, banana com
leite, nada a ver com bananada nem com “vitaminas” de liquidificador.
Machucadas no garfo, leite por riba, a madrinha quem fazia. E o registro da ausência
do amigo comum, Tarcísio Holanda, meu, com quem trabalhei, no jornal, na
juventude; amigo de Hélio, com quem trabalhou, no jornal, na juventude.
Telefonei, ele disse que iria, por mim e pelo Hélio, mas lá não pisou. Sim, a
tapioca com leite, e beijus de vária lavra e modo. Deixo para outro dia tanta
comilança. Broas, “bulins”, roscas e o dia de mangas maduras: um cesto bem
grande, eu e Antônio disputando quem comia mais, de faca, nas mangas, e de fiapo,
nos dentes... rosto e mãos
imundos de tanta terra. Os sons da terra. — Cadê o meu, Tarcísio?
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