Panos Passados — Soares Feitosa —
Então, Soares Feitosa tendo lido, escreveu: As águas em minha terra são efêmeras.
Ao jorro surdo, elementar,
Pois o vento dos céus, elemento novo,
túrgido, que descia dos céus entrava em luta com o vento do abismo, trevas; o mormaço era expulso ao ribombar dos céus, farra dos ventos! Vela de jangada ao mar
— vi depois, só muito depois,
Era um menino,
As graças naturais eram subidas
Era de noite que chovia:
—— Dona Anísia, quant’é a lata
d’água ?
—— Dez latas por dois mil réis.
E no verão bem próximo,
À beira daquela cisterna, janela,
Secos, os rios,
Os primeiros balseiros lá-de-casa
A empanada regurgitava cheia,
— de panos passados — um velame de mar,
¿Quem disse que não temos?
Pois,
um tímido fio d’água,
Lázaros de sal, meus rios, em Primavera: a Cheia! Cheias,
Pois o mais belo, fiquem sabendo, não
é ibérico, Pessoa;
Volta-do-rio... Volta, rio!
[Perdão, cheio é um “pouquinho”
mais bonito!]
¿Nunca viram Aracati debaixo d’água?
Claro, claro,
Também tive minha bicicleta,
No meu tempo não tinha calçamento
E a água era domada!
Hábeis mãos,
¿—— Estas mesmas mãos,
Pois mágica da criação,
É que sempre foi assim mesmo:
água-de-brincar, água-de-viver!
O Sal dos teus olhos, amor. Salvador, madrugada, 11.10.1994
Notas para Panos Passados:
1. Cantareira: local dos potes (cântaros). Quando se enche o pote, é colocado um pano à boca do mesmo, como coador. 2. Cisterna: Monsenhor Tabosa, Serra das Matas, CE, cidade de minha infância, não tinha “água boa” - potável - o que levou minha mãe, Anísia, a mandar construir uma cisterna pelo mestre Demétrio. A primeira da região, 1950, causou grande assombro em todo o trecho. Era um belo tanque de cimento armado, com uns 20.000 litros, (ainda hoje existente), garantia de excelente água para o consumo e ainda de algum faturamento. 3. Rio do Governo: riachote insignificante, passava na Baixa do seu Honório, o coronel Honório, por trás de nossa casa, em Monsenhor Tabosa. Teve uma única cheia: quando arrombou o açude do Antônio de Pinho. Deságua no rio Quixeramobim e este no Banabuiú, afluente maior do Jaguaribe. Em seu baixio, grandes gravioleiras, coqueiros, cupidos (assum-preto) e corrupiões, naquele tempo! Jaguaribe, principal rio do Estado do Ceará. Dizem que é o maior rio seco do mundo. Macacos, afluente do Acaraú, CE, rio da minha juventude, fazenda Catuana, Santa Quitéria, passagem da Volta-do-Rio, poema Evanescências. Curtume: também um rio “meu”: Nova Russas, 14, 15 anos, naquele tempo! Acaraú: também. 4. Balseiros: no sentido regional, Nordeste do Brasil, onde os rios correm apenas na estação chuvosa, balseiros são os restos de vegetação, folhas secas e restolhos do leito do rio seco, tangidos pela cheia. No sentido doméstico, da cisterna lá-de-casa, seriam as sujeiras do telhado, levadas pelas primeiras chuvas. 5. Panos passados: diz-se das abas da camisa passadas por dentro das calças, exigência dos delegados de polícia das cidades pequenas do Ceará, para evitar o disfarce, sob os panos soltos, da parnaíba, a faca de cangaceiro, de cabo-de-osso ou chifre perolado. O efeito do vento à bicicleta ou ao cavalo bralhador, sobre os panos passados era formar uma “bolsa” inflada às costas, como aquela que também se formava à boca da cisterna. 6. Primavera: o Ceará está a menos de dez graus latitude sul. Apenas duas estações: verão e inverno, este último, a estação chuvosa, a benção das águas... quando chove. 7. Lavandeira: ave de pequeno porte, Fluvicula climazura papo branco, espinhaço preto, asa escura com espelho branco; canto sem maior importância, não competindo com o do galo de campina nem com o do sabiá; habita as beiras-de-rio e, dizem, é animal sagrado pois teria lavado, no Egito, as roupas de Nossa Senhora e do Menino. Por isso mesmo não é alvo das baladeiras dos meninos. Cupido: o mesmo que assum-preto ou chico-preto. Concriz: o mesmo que corrupião, também conhecido como sofrê, belíssimo! 8. O Salgado é o rio mais belo do mundo: tTema do poeta cearense Dimas Macedo. O Rio Salgado é afluente do Rio Jaguaribe, Ceará, Brasil. 9. Aracati: 40.000 habitantes à margem do Rio Jaguaribe. Grandes cheias nos anos de 1924 e 1984, as maiores deste século, com marcas ainda hoje conservadas nas paredes da igreja matriz e do Cotonifício Leite Barbosa. 10. Padrinaço: padre Ignácio Américo Bezerra, in poema Format Cê Dois Pontos. 11. Fozim do Manezim: era um pequeno caminhão, um Ford F-5, fazia a linha transportando gente e mamona entre Monsenhor Tabosa e Nova Russas para empresa Carneiro & Veras, cujo dirigente em Monsenhor Tabosa era o meu padrim e tio, Ulisses, pai do meu Compadre-Primo. Manezim, o motorista, muito baixinho, muito enjoado e valente, corredor imprudente no velho calhambeque, desembesto da descida da Serra das Matas. Uma disputa que até hoje divide gerações: quem era o melhor: Manezim ou o Valdir-do-João d’Urbano? 12. Assuã, Orós, Banabuiú: represas de grande porte, a primeira no Egito, as outras duas no Ceará. 13. Lá de casa: regionalismo, NE,sentido de possessivo, minha casa; usa-se também, com o mesmo sentido, “lá em casa”.
Colofão
Este poema foi composto em Salvador, BA, sob inspiração do poema JAGUARIBE, madrugada, 11.10.94, dia seguinte ao em que li o dito poema e conheci pessoalmente o seu autor, Luciano Maia.
Escreveram sobre Panos Passados:
Ivan Junqueira: Bastaria um poema como Panos Passados para justificar a publicação dos versos que inervam todo o seu ciclópico estro poético, no bojo do qual afloram a cada passo as vertentes heróica, telúrica e lírica.
Adriana Bernardi:
Acabei de ler "Panos Passados"... Que coisa,
tem música no fundo... é a métrica acho... será?
Mas vem a música de fundo... Lá no fundo... cadencianda com
o correr dos olhos sobre as palavras... ela vem ritmada... quase pentatônica...
num batuque... batuque ou marcha-rancho???... Num sei... e lá vem
ela... um coro que narra-canta... linda de morrer... e os olhos pulando
de lá prá cá... e entra o solista - Dona
Anísia, quant'é a lata d'água? ... resposta... e volta
o coro... e muda o ritmo... uma só voz.... modula... e vai... e
vai... coro infantil... (água de beber/ água de brincar/
água de viver...) Pausa. Baqueta suspensa... "E o sal:
O Sal dos teus olhos, amor."
Aplausos... Que coisa, viu??? S. J. Solha: Psi, a penúltima |
SB 20.01.2023