| 
             
            
            Fernando Sabino 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Albertine Disparue 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Chamava-se 
            Albertina, mas era a própria Nega Fulô: pretinha, retorcida, 
            encabulada. No primeiro dia me perguntou o que eu queria para o 
            jantar: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Qualquer coisa 
            – respondi. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Lançou-me um 
            olhar patético e desencorajado. Resolvi dar-lhe algumas instruções: 
            mostrei-lhe as coisas na cozinha, dei-lhe dinheiro para as compras, 
            pedi que tomasse nota de tudo que gastasse. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Você sabe 
            escrever? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Sei sim senhor 
            – balbuciou ela. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Veja se tem um 
            lápis aí na gaveta. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Não tem não 
            senhor. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Como não tem? 
            Pus um lápis aí agora mesmo! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela abaixou a 
            cabeça, levou um dedo à boca, ficou pensando. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – O que é 
            lapisai? perguntou Finalmente. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Resolvi que já 
            era tarde para esperar que ela fizesse o jantar. Comeria fora 
            naquela noite. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Amanhã você 
            começa – conclui. – Hoje não precisa fazer nada. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Então ela se 
            trancou no quarto e só apareceu no dia seguinte. No dia seguinte não 
            havia água nem para lavar o rosto. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – O homem lá da 
            porta veio aqui avisar que ia faltar – disse ela, olhando-me 
            interrogativamente. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Por que você 
            não encheu a banheira, as panelas, tudo isso aí? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Era para 
            encher? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Era. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Uê... 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Não houve café, 
            nem almoço e nem jantar. Saí para comer qualquer coisa, depois de 
            lavar-me com água mineral. Antes chamei Albertina, ela veio lá de 
            sua toca espreguiçando: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Eu tava 
            dormindo... – e deu uma risadinha. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Escute uma 
            coisa, preste bem atenção – preveni: – Eles abrem a água às sete da 
            manhã, às sete e meia tornam a fechar. Você fica atenta e aproveita 
            para encher a banheira, enche tudo, para não acontecer o que 
            aconteceu hoje. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela me olhou 
            espantada: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – O que 
            aconteceu hoje? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Era mesmo de 
            encher. Quando cheguei já passava de meia-noite, ouvi barulho na 
            área. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – É você, 
            Albertina? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – É sim 
            senhor... 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Por que você 
            não vai dormir? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Vou encher a 
            banheira... 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – A esta hora?! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Quantas horas? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Uma da manhã. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Só? – 
            espantou-se ela. – Está custando a passar... 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            * * * 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – O senhor quer 
            que eu arrume seu quarto? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Quero. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Quarto arrumado, 
            Albertina se detém no meio da sala, vira o rosto para o outro lado, 
            toda encabulada, quando fala comigo: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Posso varrer a 
            sala? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Pode. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Antes que ela vá 
            buscar a vassoura, chamo-a: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Albertina! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela espera, 
            assim de costas, o dedo correndo devagar no friso da porta. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Não seria 
            melhor você primeiro fazer café? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Depois era o 
            telefone: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Telefonou um 
            moço aí dizendo que é para o senhor ir num lugar aí buscar não sei o 
            quê. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Como é o nome? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Um nome 
            esquisito... 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Quando 
            telefonarem você pede o nome. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Albertina! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Senhor? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Hoje vai haver 
            almoço? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Se for 
            possível. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Fazia o almoço. 
            No primeiro dia lhe sugeri que fizesse pastéis, só para 
            experimentar. Durante três dias só comi pastéis. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Se o senhor 
            quiser que eu pare eu paro. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Faz outra 
            coisa. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Fez empadas. 
            Depois fez um bolo. Depois fez um pudim. Depois fez um despacho na 
            cozinha. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Que bobagem é 
            essa aí, Albertina? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Não é nada não 
            senhor – disse ela. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Tá – disse eu. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            E ela levou para 
            seu quarto umas coisas, papel queimado, uma vela, sei lá o quê. O 
            telefone tocava. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Atende aí, 
            Albertina. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – É para o 
            senhor. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Pergunte o 
            nome. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Ó. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – O quê? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Disse que 
            chama Ó. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Era o Otto. 
            Aproveitei-me e lhe perguntei se não queria me convidar para jantar 
            em sua casa. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            * * * 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Finalmente o dia 
            da bebedeira. me apareceu bêbada feito um gambá; agarrando-me pelo 
            braço: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Doutor, 
            doutor... A moça aí da vizinha disse que eu tou beba, mas é mentira, 
            eu não bebi nada... O senhor não acredita nela não, tá cum ciúme de 
            nóis! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Olhei para ela, 
            estupefato. mal se sustinha sobre as pernas e começou a chorar. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Vá para o seu 
            quarto – ordenei, esticando o braço dramaticamente. – Amanhã nós 
            conversamos. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela nem fez 
            caso. Senti-me ridículo como um general de pijama, com aquela 
            pretinha dependurada no meu braço, a chorar. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Me larga! – 
            gritei, empurrando-a. Tive logo em seguida de ampará-la para que não 
            caísse: – Amanhã você arruma suas coisas e vai embora. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Deixa eu 
            ficar... Não bebi nada, juro! 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Na cozinha havia 
            duas garrafas de cachaça vazias, três de cerveja. Eu lhe havia 
            ordenado que nunca deixasse faltar três garrafas de cerveja na 
            geladeira. Ela me obedecia à risca: bebia as três, comprava outras 
            três. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Tranquei a porta 
            da cozinha, deixando-a nos seus domínios. Mais tarde soube que 
            invadira os apartamentos vizinhos fazendo cenas. No dia seguinte 
            ajustamos as contas. Ela, já sóbria, mal ousava me olhar. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Deixa eu ficar 
            – pediu ainda, num sussurro. – Juro que não faço mais. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Tive pena: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Não é por nada 
            não, é que não vou precisar mais de empregada, vou viajar, passar 
            muito tempo fora. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Ela ergueu os 
            olhos: 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Nenhuma 
            empregada? 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Nenhuma. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            – Então tá. 
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            Agarrou sua 
            trouxa, despediu-se e foi-se embora. 
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            SABINO, Fernando 
            Tavares. O Homem Nu. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1973. p. 
            176-180. 
                                                    |