Francisco Perna Filho
“O mundo é um grande texto”
|
"O escritor deve ter
consciência do seu ofício, da sua importância no mundo, já que é um
cronista do seu tempo.” Quem faz essa afirmação é o poeta e ensaísta
Francisco Perna, autor do livro Refeição, publicado em 2001. Natural
de Miracema do Norte (hoje, Tocantins), onde nasceu em 24 de
novembro de 1963, Francisco Perna é mestre em literatura brasileira
pela Universidade Federal de Goiás, com uma dissertação sobre o
poeta Manoel de Barros, intitulada Criação & Vanguarda: Bopp e
Barros. Filho de Francisco Noleto Perna e Adalgisa Noleto Perna, é
casado e pai de dois filhos. Professor de língua portuguesa dos
cursos de comunicação social da Faculdade Cambury, Francisco Perna
tem artigos publicados em revistas científicas da área de letras e é
colaborador da revista eletrônica Bula (www.revistabula.com.br).
Nesta entrevista aos escritores Valdivino Braz e Carlos Willian, ele
fala do poder da palavra para decifrar o mundo e não poupa críticas
aos escritores goianos que fazem da literatura um mero passatempo
social. Mas garante: “Goiás tem grande escritores”.
Valdivino Braz — Volta e meia, como no recente Encontro Nacional
de Escritores, em Goiânia, fala-se em montar escola para escritores,
no sentido de ensinar a fazer literatura ou formar escritor. Você
acredita nesse tipo de coisa? Acha que o processo é esse para se ter
escritor que preste?
Pode-se falar de
estilo, forma, imagens, ensinar alguém a escrever (coisa muito
difícil nos dias de hoje). Até aí, tudo bem. O que é inconcebível é
alguém querer formar escritor. Esta história de escola para
escritores é uma idéia rasa, demagógica e oportunista. Acredito que
deva ser para tirar dinheiro público; viver à custa do estado, com
promessas mirabolantes e alquímicas. Escola para escritor é como
escolinha de futebol: o menino se matricula, tem contato com a bola,
com outros atletas, aprende as regras do jogo; mas, se não tem
talento, jamais será um craque. Para dizer a verdade, eu vejo tudo
isso com um pé atrás. Talvez o Mário Prata tenha sido o último a
propagar tal besteira por não ter preparado a sua fala no VI
Encontro Nacional de Escritores.
|
“É
inconcebível alguém
querer formar escritor.
Esta história de escola
para escritores não passa
de uma idéia rasa,
demagógica e oportunista”
|
Valdivino Braz —
Ainda no terreno de formar-se escritor, como você vê o produto das
chamadas oficinas literárias, parindo pseudopoetas, equivocados em
relação ao texto poético e publicando excrescências que não vão a
lugar nenhum? Nesse caso, o que fazer em relação a tais oficinas e
suas abomináveis crias?
As oficinas literárias são válidas, desde que fique bem claro a que
elas se destinam, que não é formar quem quer que seja, mas auxiliar
as pessoas, pelo exercício da leitura e da escrita, a se expressar
melhor, adquirir uma performance lingüística e textual. Eu posso
falar muito bem sobre essa experiência, porquanto, desde 2001,
mantenho uma oficina de criação textual, na disciplina de língua
portuguesa para o curso de publicidade e propaganda da Faculdade
Cambury. Os resultados são muito gratificantes. O progresso dos
alunos na área da expressão é muito grande. Agora, é bem verdade que
algumas oficinas tentam passar uma fórmula maravilhosa de como se
tornar um escritor, um poeta, mexendo com a vaidade de pessoas
incautas, sem o mínimo de senso crítico, levando-as aos livros, não
como leitoras, mas como escritoras. Mas isso não acontece somente na
literatura. Na música o processo é mais ou menos parecido, só que os
investimentos são bem mais altos e o lastro de destruição é bem
maior: as gravadoras, visando somente o lucro, incutem em alguns
indivíduos que eles são artistas, e eles acreditam, vivem como tais,
ganham muito dinheiro e morrem na ilusão artística. Algo parecido
acontece no jornalismo: é o caso do indivíduo que escreve cartas
para a coluna do leitor de grandes jornais e se autodenomina
jornalista, às vezes, sob a tutela dos próprios sindicatos. Tudo
isso é muito grave, e o mais grave de tudo, no que se refere à
literatura, é que essa gente ainda encontra guarida nos
prefaciadores de plantão, amigos do peito que, sem nenhum critério
estético, alimentam o ego desses indivíduos, chegando ao absurdo de
colocá-los no panteão dos grandes escritores.
Valdivino Braz — Como você interpreta a questão do escritor
consciente do seu ofício e coerente com o seu tempo? E o que é, para
você, a função social da literatura?
O escritor deve ter consciência do seu ofício, da sua importância no
mundo, já que é “um cronista do seu tempo”. Precisa se inteirar dos
acontecimentos e se rebelar contra tudo aquilo que atente contra a
sagrada liberdade de expressão. Se a literatura é gerada num tempo e
num espaço, num determinado contexto social e político, ela também
pode refletir esse contexto social, denunciando as mazelas e
opressões por que passam os indivíduos. Neste ponto, ela tem uma
função social. De outro modo, como arte, tem um fim em si mesma:
causar deleite e despertar para o estético.
Carlos Willian — O poeta e crítico Alexei Bueno disse que a
poesia é um problema na vida da pessoa, um desastre na vida de
qualquer um, da paz de espírito ao orçamento doméstico. Concorda com
ele?
Você me fez lembrar um livro de ensaios do José Paulo Paes, Os
Perigos da Poesia, título que faz alusão à república Platônica, já
que Platão sugeriu a expulsão dos poetas de sua república, porque,
segundo ele, a poesia despertava o inconsciente dos homens, o lado
irracional. Para Paes, esse título alude ao paradoxo: sendo a poesia
inofensiva, como ela pode ser perigosa num mundo extremamente
consumista, já que seus consumidores são escassos? O Alexei tem toda
razão: não existe meio poeta, como não existe mulher meio grávida. A
poesia transcende qualquer compreensão, o poeta dela não se
desvencilha: é um ser transtornado pela percepção perquiridora do
ínfimo, numa concepção barreana, e isso afeta tudo. A poesia é para
poucos, tanto os que a produzem, quanto os que a consomem, e sendo
assim, é pouco valorizada. Portanto, sobreviver de poesia, só
liricamente.
Valdivino Braz — Tem-se por empatia a tendência de alguém para
sentir o que sentiria caso estivesse na situação e circunstância
experimentada por outra pessoa. No caso do leitor em relação ao
poeta, você diria que há pelo menos 50 por cento de empatia, ou que
necessariamente não há que existir empatia, mas sim predisposição à
leitura, para que o leitor se sinta preso pelo texto?
Por ser a boa poesia o texto por excelência, os seus leitores têm
uma consciência e uma percepção do estético, e assim, movidos pelo
desejo da fruição, vão ao encontro dela, pela linguagem, pelo
estilo, pelas imagens, e não pela empatia com quem quer que seja.
Quando se procura um texto poético, a “predisposição” é
importantíssima, pois não se consegue distinguir um bom livro de um
ruim, pela cara do poeta. Não estamos comprando carne, estamos
falando de arte. O resto é compadrio.
Carlos Willian — Falando em “compadrio”, você prepara o seu
doutorado sobre a obra do poeta Valdivino Braz. Não fica parecendo
uma ação entre amigos?
Muito boa e oportuna a sua pergunta e, para respondê-la, vou ser
bastante breve. Tenho um projeto para um doutorado e espero
concretizá-lo em breve. Valdivino Braz é um grande poeta, dono de
uma obra riquíssima, digna de reconhecimento. O meu conhecimento de
sua obra é anterior aos nossos laços de amizade. Antes de nos
tornamos amigos, escrevi o ensaio “Os Búzios do Braz no Mar da
Linguagem” sobre o premiadíssimo A Trompa de Falópio, ganhador do
Prêmio Cidade de Belo Horizonte. No doutorado, espero fazer um
trabalho digno do homem e da obra.
Carlos Willian — A critica é necessária?
A crítica é fundamental para a formação de bons leitores, já que a
sua função é a de interpretar e avaliar a obra literária, destacando
os aspectos estéticos e lingüísticos que contribuirão para o
julgamento de determinada obra. É pena que essa crítica, hoje,
esteja restrita à academia, aos centros universitários, não chegando
ao universo jornalístico, como, outrora, a tínhamos de sobejo. Basta
mencionar Otto Maria Carpeaux e José Guilherme Merquior, para
sentirmos o tamanho da perda. O que é uma pena, pois se tivéssemos
uma crítica efetiva nos jornais, evitaríamos muito dos equívocos,
como os que ocorrem em relação às oficinas literárias. Espaços como
este, do Jornal Opção, são raros. Iniciativas como estas, que
resistem ao tempo, a governos, devem ser elogiadas, pois sabemos o
quanto e difícil manter um caderno cultural, que não tem pretensões
econômicas, a exemplo dos suplementos de outros veículos, que só
abrem os seus espaços, quando o lucro é líquido e certo. É o caso
clássico dos malfadados resumos de obras literárias, propagados por
“livros” e jornais do Estado, causando um mal danado ao indivíduo
que não lê e passa a banalizar a literatura e a sua própria língua.
Valdivino Braz — A experiência propiciada pela publicação do
primeiro livro sempre deixa no autor alguma impressão significativa,
como, por exemplo, perceber o que vem a ser realmente a coisa
literária e o quanto o autor ainda tem que aprender. Impressão,
aliás, gratificante. Alguma coisa nesse sentido ocorreu após a
publicação de Refeição, seu primeiro livro?
Expressar-se por escrito ou de qualquer outra forma é sempre
prazeroso, um ato carregado de significados e responsabilidades.
Vejo que amadureci muito desde o meu livro Refeição, publicado em
2001. Tenho percebido o quanto ainda preciso melhorar o meu texto,
mas essa é uma questão interessante para ser discutida, já que o
primeiro passo eu dei: submeti o meu texto ao público. As críticas
são boas, mas sei que tenho muito aprender, o que só a leitura de
bons autores e o permanente exercício da escrita poderão
proporcionar-me. É por isso que eu estudo bastante. Leio muito e
escrevo sempre. Neste campo, autocrítica é a lei.
Carlos Willian — Quais os poetas, de Goiás, do Brasil e do mundo,
que mais o influenciaram?
Para dizer a verdade, somos frutos das nossas leituras. Por
intermédio delas é que passamos a ter consciência do mundo e nos
tornamos críticos com relação às coisas. Com a literatura não é
diferente. Muitos livros nos marcam e a gente termina por absorver
muita coisa. Conscientemente, não sei se a minha poesia carrega uma
marca em especial de algum poeta goiano. Isso os críticos poderão
dizer mais tarde, já que a minha obra é ainda incipiente Mas temos
grandes poetas, maravilhosos; expressões valiosas das nossas letras.
Com relação ao restante do Brasil e ao mundo, as leituras são
várias, mas alguns autores me marcaram mais, como Luiz de Miranda,
um grande poeta de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul; o grandioso
Gerardo Mello Mourão e o mato-grossense Manoel de Barros, sobre quem
escrevi minha dissertação de mestrado Criação e Vanguarda: Bopp &
Barros. Também me marcaram muito Moacyr Felix, genial, um ser
comprometido com o seu tempo, de um lirismo estarrecedor; Fernando
Pessoa, Tahar Bem Jelloun, o Herman Hesse de Andares, Rimbaud,
Baudelaire.
|
“Poesia e
filosofia sempre
caminharam juntas. É
natural para o escritor
recorrer a temas
filosóficos, amadurecer
idéias, refletir o mundo”
|
Valdivino Braz — Poesia e filosofia costumam aliar-se na criação
do poema, mas há quem condene essa parceria, pautando-se mais por um
lirismo meloso ou por um coloquialismo equivocado, em nome de uma
simplicidade que se quer mais ao alcance do leitor, como dizem. Como
poeta e professor, como você vê essa questão?
A poesia e a filosofia sempre caminharam juntas. É natural para o
poeta (escritor) recorrer a temas filosóficos, amadurecer idéias,
refletir o mundo, buscar pela linguagem uma recifração desse mundo,
daí a sua complexidade, e nem todos estão preparados para isso. A
poesia pode optar por uma linha lírica sem ser melosa. Exemplos nós
temos inúmeros na literatura universal: Camões, Baudelaire, Novalis,
Goethe, Cesário Verde, Fernando Pessoa. O que não dá é para achar
que qualquer coisa deve ser considerada; quanto ao coloquialismo, o
poeta, dependendo do seu objetivo, pode se valer desse recurso.
Lógico, que tudo muito consciente, e é justamente nisso que alguns
escritores se tornam superiores. Lembremo-nos de Guimarães Rosa com
o Grande Sertão: Veredas.
Carlos Willian — O poeta brasileiro, cada vez mais, é um erudito.
Ele traduz, tem mestrado, escreve ensaios e resenhas; mas, mesmo
assim não consegue viver de poesia. Então, qual o caminho?
O Caminho de Santiago de Compostela [Risos]. Educação, meu caro,
educação. Enquanto não tivermos uma educação cultural, que nos
desperte para a nobreza da palavra, não conseguiremos fazer nenhuma
mudança. A poesia deve ser incutida na criança desde cedo, aliás,
desde o ventre materno, já que a leitura sensorial é comprovada nos
primeiros meses de vida. Se uma criança é gerada num ambiente de
tranqüilidade e paz, tende a ser um adulto equilibrado e tranqüilo;
se, durante a gestação, o pai canta para criança, acaricia a barriga
materna, declama poemas, enfatizando, claro, a sonoridade, ao
nascer, essa criança já estará sintonizada com o artístico, com a
palavra poética. A educação pela palavra deve ser uma tônica nos
lares. Não estou aqui querendo ditar regras de comportamento, mas,
tão somente, tecer alguns comentários sobre a experiência de
ensinar, de trabalhar como professor e, claro, por ser pai de duas
belas crianças, que lêem.
Valdivino Braz — Como professor na Faculdade Cambury, você adota
livros de autores goianos, fato não muito comum nas instituições de
ensino superior em Goiás. O que o leva fazer esse trabalho?
O mundo é um grande texto e nós somos leitores desse grande mundo.
Uns lêem como maior profundidade; outros, superficialmente. Os
escritores, sejam goianos, baianos, cariocas ou paulistas buscam uma
tradução daquilo que está acontecendo, ou do que poderia acontecer
nesse grande mundo, seja pelo surreal, pelo insólito, pelo lirismo,
pelo realismo, ou por qualquer outra forma de expressão, eles estão
a serviço da literatura, conseqüentemente, da palavra. É na
literatura que vamos encontrar a chave para decifração desse grande
texto. É por isso que eu trabalho com os autores goianos, porque,
além da universalidade dos temas, muitos traduzem o nosso povo, as
nossas tradições, fatores imprescindíveis para a construção da
cidadania, que só pode ser efetivada quando o indivíduo se descobre
como leitor crítico do espaço que habita. De uma coisa tenho
certeza: os meus alunos são diferentes, porque são críticos. Porque
lêem literatura feita em Goiás. Agora, o que me deixa abismado, é o
fato de outros professores não fazerem o mesmo, apenas mencionam o
nome dos nossos escritores, quando são obrigados, já que a UFG
adota, nos seus vestibulares, a leitura de alguns autores goianos.
Então, o professor de segundo grau, cursinho, e os oportunistas dos
resumos de obras literárias fazem a festa. No dia em que tivermos
representantes mais cultos na Assembléia Legislativa, e isso só se
dará se formarmos leitores críticos, leitores do seu Estado, da sua
cidade, do seu bairro, sem dúvida, a literatura goiana terá a sua
vez em todas as escolas deste Estado. Aí, sim, eu serei apenas mais
um a atravessar o Paranaíba.
Carlos Willian — Qual sua avaliação sobre a literatura goiana
desde os livros de receitas culinárias até os de auto-ajuda à lá
Paulo Coelho?
Falando em literatura goiana, temos obras muito boas. Fazer uma
avaliação detida demandaria muito trabalho e empenho. O momento não
é adequado, até porque não estou à altura de traçar um cânone do que
quer que seja. Mas não podemos deixar de dizer que há muita coisa
ruim sendo publicada.
Carlos Willian — Na revista eletrônica Bula, você publicou o
ensaio “O Pó da Pós-Modernidade”, criticando o Prêmio Flamboyant de
artes plásticas. Por quê? O que há de errado com a arte conceitual?
Na verdade, fiquei indignado com tanta besteira exposta. Jamais
imaginei que fossem privilegiar tamanha estultice. Salões como o
Prêmio Flamboyant precisam buscar uma identidade, sair da mesmice;
parar com essa coisa de desconstrução, que não leva a nada. Dizem
que o que vale é o conceito, que tudo é arte, e, em nome disso,
levantam paredes absurdas, enfiam pregos em escova de dente, lâminas
em sabonete, fotografam parentes e amigos em poses patéticas, colam
tecidos em tela, amontoam redes e espelhos, e ainda têm coragem de
chamar isso de arte. Pelo amor de Deus! Estes e outros motivos foram
explicitados no meu ensaio.
Carlos Willian — Para você o que é poesia? O que é poema?
Toda definição é sempre muito complicada. Corremos o risco de ser
simplistas. No caso da poesia, mais ainda. O importante é sentir a
sua essência: imagens, musicalidade e linguagem. Erza Pound, ao
definir a grande literatura, disse que grande literatura é linguagem
carregada de significado até o último grau possível. Talvez esteja
aí uma boa resposta.
|