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Francisco Carvalho


 

O poema e seus motivos
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

30.07.2005
 

 

Poucos ensaístas se aprofundaram com tanta lucidez na análise das relações do poeta com o leitor quanto o mexicano Octavio Paz. Em seu clássico O Arco e a Lira, em tradução excepcional de Olga Savary, ele revisita o assunto com sua proverbial clarividência e prodigiosa erudição. Para Octavio Paz, poeta e leitor são personagens de uma conspiração silenciosa, ou de um pacto entre o criador e o receptor da mensagem literária. Aquele a quem cabe decifrar os códigos da trama verbal e da beleza entranhada no subsolo das palavras. "Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si" (p.29). Paz nos fala com acentuada convicção do acontecimento do poema, pois acredita que esta é "a via de acesso ao tempo puro, imerso nas águas originais da existência" (p.31). A poesia, para ele, "não é nada se não tempo, ritmo perpetuamente criador".

O professor e grande poeta César Leal, também ensaísta de primeira linha, faz um retrato sucinto da carpintaria verbal de Majela Colares: "As melhores mentes jovens deste fim de século prestam homenagem aos velhos mestres do passado e também aos novos. Mas não os seguem passivamente. Criam suas próprias falas, sua própria linguagem poética. Assim é Majela Colares" (Quadrante Lunar, p.95, Rio, 2004). Cearense radicado no Recife, Majela Colares firma-se nos meios intelectuais do país como um poeta consciente de sua arte e do destino que lhe cabe na sociedade complexa e desarticulada em que vivemos.

Em doze anos de militância literária, Majela Colares publicou sete livros de poemas. A manter esse ritmo, o poeta poderá chegar aos 60 com aproximadamente 19 livros publicados. Mas como todos sabemos, o que importa em literatura não é a quantidade. É a qualidade. E a qualidade tem sido uma preocupação constante na trajetória lírica deste poeta cearense, que afortunadamente tem apenas 40 anos de idade. E já que o assunto é qualidade, não custa nada revelar o modo como o poeta vislumbra O Sonho por Dentro: "Nada mais ao tormento me antecipa / - o silêncio, a palavra, a dor, o riso / o medo a cada instante se dissipa / rompendo a insensatez do tempo omisso (...) preso ao rosto, meu rosto entediado / de palavras de dor, de riso e tudo / mas das sombras emerge do meu lado / a beleza invadindo o corpo mudo" (p.69). O poeta emprega a palavra exata para extrair o máximo de essencialidade de todos os motivos do poema.

Quadrante Lunar é um documento dos mais expressivos da maturidade do poeta Majela Colares. Ele não é apenas um hábil "soldador de palavras" desconexas. Suas preocupações vão além do respeito devido à hierarquia das palavras; ultrapassam aquela fronteira dos fonemas em que significado e significante se entrelaçam para formar o núcleo da imagem acústica do poema. "Naquela noite eu não podia, pense / deixar meu gesto preso no sapato / fingir que flores surgem do cimento/ depois voltar imune pro meu quarto / pensar talvez, um tanto inconseqüente / que no futuro só serei retrato" (p.31).

Estas divagações poéticas produzem reflexões no espírito do leitor atento, e até mesmo o podem levar a uma viagem de ordem interior ou simplesmente transportá-lo ao plano metafísico. Os versos "fingir que flores surgem do cimento" e "que no futuro só serei retrato" induzem a pensar no homem como "ser-para-a-morte", de acordo com o pensamento de Heidegger. Não fosse o receio de me tornar enfadonho, poderia citar várias outras características da melhor artesania poética de Majela Colares. Sua nítida consciência de que a palavra não é apenas um instrumento de uso fonético, mas uma forma ludimágica de captar emoções ou vestígios remotos de nossa ancestralidade cósmica - essa convicção o leva a escrever que "da linguagem remota / surgem sombras / de palavras / - passado demolido / que renasce / contento outras imagens / outra fala / outra língua" (p.76). O poeta sabe que a palavra é a voz encarcerada na bolha do oceano primitivo, santuário das células primordiais do ser humano.

Poeta disciplinado na construção da retórica do verso, tem sabido tirar o máximo de proveito da infinita possibilidade das palavras. Se a poesia se faz com palavras e não com idéias, segundo a polêmica definição de Mallarmé, nada mais justo que ela funcione na condição de viga mestra da estrutura do poema ou de sua razão nuclear. Daí que o poeta decline publicamente (Invenção do Poema) os instrumentos que lhe parecem essenciais à construção do esquema poemático: "quero a página livre e a mão discreta / e um sorriso ancorado no meu rosto (...) poema não é feito como torta / só preciso a beleza nua, extrema... / e um silêncio sem fim de língua morta" (p.27).

O poeta e crítico Marco Lucchesi vê com agudez aspectos relevantes do processo de criação de Majela Colares: "E nisto reside a sua modernidade, através de fragmentos e remissões de coisas passadas e futuras. Mas não é uma obra fria, ou apenas clara, ou marcadas por raros matizes". (aba esquerda do livro). A grande maioria de seus poemas é constituída de reduzido número de palavras, dispostas em dez versos, não necessariamente isométricos. Cada poema tem quatro estrofes de dois versos, às quais se acrescentam dois versos isolados, exclusivamente nas duas primeiras paralelas. Os poemas podem ser representados numericamente da seguinte forma: 2+1+2+1+2+2=10. A imagem espacial dos poemas fortalece a idéia de "fragmentos", a que se refere o já citado Marco Lucchesi. Essa coerência formal contribui para que o leitor encontre mais facilmente os conteúdos lúdicos ideativos dos poemas. De outro modo premia o leitor pelas "descobertas" que venha a fazer durante a leitura, aqui entendidas as surpresas que os poemas nos reservam.

Fausto Cunha, de saudosa memória, dá o seu testemunho sobre os poemas de "O Soldador de Palavras". Livro que, na sua opinião, "se destaca na atual produção poética do Brasil". Esse fato lhe parece da maior significação, tendo em vista o grande número de "novos valores que nada ficam a dever aos grandes mestres do Modernismo" (texto na contracapa). Gostaria ainda de destacar a qualidade do poema Cantiga do Eterno Instante (p.77):

alguma coisa me espera
do outro lado... na esquina
no gesto que me fascina
na manhã que vocifera

de olhar fixo na tarde
a noite que vem, me chama
mas o instante me esgana
neste silêncio que arde
e se projeta na cor...
que vai mais longe, que o longe
e não se sabe até onde
vai o disfarce da dor...

e busco por toda parte:
na insone boca de febre
no tempo que me persegue
no estranho sonho da arte

talvez num pouco de mim...
busco na sombra da imagem
na margem da outra margem
do instante que não tem fim

 

Nesse texto, Majela Colares dá prova cabal de sua mestria na arte de "soldar palavras" e de fazer com que a sua mensagem chegue ao leitor sem perder o que existe de perdurável e de transitório na eterna fulgacidade da poesia. Que nada mais é senão uma forma de cantar "a grande dor das coisas que passaram" (Camões).
 

 

Majela Colares

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31.03.2006