O ficcionista Fran Martins - uma das maiores
expressões do Grupo Clã - publicou, em 1938, o
romance Poço dos Paus, uma obra enquadrada na mais
pura tradição do romance neo-realista do modernismo
brasileiro. Tendo como ponto de partida a construção
de um açude, em torno de que gravitavam os
flagelados da seca ou os que abandonavam seu torrão
em busca de um sonho de vida melhor, é um quadro cru
de nossa realidade. Eis o motivo central dessa
edição
Fran Martins é uma das vozes mais representativas de
nossa prosa comprometida com a denúncia e com a
crítica social. Tendo sido um dos grandes mentores
do Grupo Clã - responsável pela consolidação da
estética modernista em nossa terra - , uniu à sua
literatura também um projeto de criação literária. O
romance Poço dos Paus (1), tecido dentro das
orientações da tendência neo-realista, não só possui
grande força narrativa como, também, utiliza-se de
alguns procedimentos estilísticos que, somente muito
mais tarde, iriam constituir recorrência nos
melhores ficcionistas de nosso País.
A princípio, o leitor depara o emprego da polifonia,
isto é, um entrelaçar-se de vozes narradoras,
advindas do anonimato. Ao foco em terceira pessoa -
o ponto de vista externo -, unem-se, e de forma
ambígua, vários discursos, sem que estes apontem
qualquer referente: (Texto I)
Como reflexo de uma frase curta, enxuta, alicerçada
na estrutura do essencial, (o autor escreve o que
lhe parece tão-somente necessário, evitando, desse
modo, quaisquer excessos), bem como visando à
extração de efeitos, desenvolve o gosto pela
expressão nominal ou pelo uso de pausas dramáticas,
com fragmentações sintáticas: (Texto II)
Como se vê, a expressão literária segue a trilha da
busca da concisão; os períodos curtos desencadeiam o
predomínio de blocos narrativos, cujas construções
tendem a um predomínio dos períodos compostos por
coordenação sobre os realizados a partir das
subordinações. Há, então, uma sucessão rápida e
variada de imagens, numa perfeita orquestração entre
personagens e espaço ou mesmo o que cada uma delas
vivencia na trama.
Por fim, em relação a processos de natureza
estilística, ganha relevo o modo por que o discurso
direto é organizado. De quando em vez, o foco cede a
uma personagem qualquer a tarefa de orientar a
narrativa. Estando em plena harmonia com aspectos de
ordem social, econômica e cultural, a linguagem do
romance revela-se dona de uma extraordinária
espontaneidade. Assim, o autor não tem qualquer pejo
com a utilização de marcas de oralidade: (Texto III)
Tal recurso de composição permite que, na narrativa,
assomem personagens vivas, de carne e osso, sem que
venham, portanto, vestidas de qualquer paternalismo
lírico, que as afastem de sua verdade. Muitas vezes,
impregnam-se do grotesco: (Texto IV). Ainda em
relação aspectos inerentes à construção do texto é
importante destacar, ao fim da trama, a substituição
da expressão seca e concisa, tão presente nos
escritos do neo-realismo, pelo tom impressionista. O
que se dá para que feixes de sensações, de volições
ganhem corpo na composição da volta do protagonista,
não só a seu lugar de origem, mas, sobretudo, à sua
condição social anterior, ressaltando uma
circularidade, um fatalismo, como se a vida se
resumisse a um eterno retorno: (Texto V)
Nessa passagem, em diversos fios, registram-se
impressões, de tal sorte que as sensações que
provocam, na percepção de um instante, captam a
verdade de um momento. A realidade onírica justifica
a fragmentação dos elementos. No primeiro momento,
depreende-se um exercício de escritura que se
aproxima, por sua vez, da técnica do fluxo da
consciência - recurso que se tornou um
processo-chave da geração do terceiro momento do
Modernismo, em especial com a prosa de Clarice
Lispector.
Fran
Martins não se deixou contaminar pelos elementos
caros ao Romantismo: a idealização e o
sentimentalismo exacerbado; do mesmo modo, não
atrelou à sua prosa o intenso descritivismo que
envolveu a estética realista de acúmulo de fatos,
com prejuízos à essência; também não converteu suas
personagens em simples marionetes patológicas, como
o fizeram, em geral, os naturalistas. Tudo, na prosa
de Fran Martins, move-se pelo equilíbrio. Em sua
concepção, o homem não é bom, nem mal, apenas
contraditório. Uma extrema ternura ou uma
incontrolável sanha pode tomar conta de seu espírito
- o que provoca nelas atitudes que surpreendem o
leitor.
O romance é uma forma literária que,
estruturalmente, ´caracteriza-se pela pluralidade de
ação, ou seja, pela coexistência de várias células
dramáticas, conflitos ou dramas.´ (2) A literatura
recria, verbalmente, a realidade por meio da
imaginação do artista. Nesse sentido, o objeto da
especulação literária é a realidade, ´tomada em
sentido amplo, absorvendo as regiões mais fundas do
sujeito e as mais exteriores´. (3) Portanto, o texto
literário necessita, antes de tudo, da percepção da
realidade pelo artista, para, depois, ocorrer a
´montagem desta percepção num todo organizado e
novo´. (4) A narrativa de ficção articula, pois,
elementos recriados no plano real.
O romance Poço dos Paus, de Fran Martins, é o
retrato de uma realidade crua e que, impiedosamente,
dilacera desvalidos que sofrem toda espécie de
privações. A partir da construção de um açude, numa
cidade encravada num sertão distante, aproximam-se
personagens cujas vidas são, a rigor, um amealhar de
perdas. O protagonista, Climério, sonhando em
livrar-se das humilhações que sofria no balcão de um
bar, ´amassando o chapéu com os dedos nervosos´,
esperava a partida do trem, sôfrego com o universo
que se descortinava à sua frente: (Texto VI). Em
Poço dos Paus vira servente de escritório,
subordinado a um rapaz que, estudante no Recife, não
pudera, por conta da seca, concluir os estudos. Os
ingleses são responsáveis pelo controle da
construção. Principalmente: os responsáveis pela
exploração a que, dissolvido o sonho da riqueza,
estão submetidos os trabalhadores.
Assim, pouco a pouco, o leitor vai deparando o
desfile de seres decompostos, nos quais, lentamente,
vai se dissolvendo a condição humana. O mestre dos
cavouqueiros, por exemplo, Mestre Pedro só espera o
dia em que uma pedra lhe arranque a cabeça e, com
isso, ponha, de uma vez por todas, fim à vergonha da
prostituição de suas duas filhas, lancetadas pela
seca. Maria Nazaré - a barraqueira -, com seu rosto
alegre, sempre risonho, carregava, nas cavernas de
seu ser, a ferrugem de uma tragédia que, aos poucos,
ia lhe consumindo, inexoravelmente, a alma.
O regionalismo, na literatura brasileira, desde o
seu primórdio na estética romântica, apontou duas
tendências nítidas: a idealização da natureza e do
homem ou o aniquilamento destes. Fran Martins segue
essa última tendência - o que, aliás, também se
tornou lugar-comum nos romancistas de 30: ´A
temática do regionalismo nordestino, seja da fase
realista-naturalista, seja da modernista, gira em
torno dos problemas geográficos, sociais e políticos
da região´. (5) A literatura ficcional de Fran
Martins enquadra-se, portanto, na linha do
regionalismo neo-realista. Há, em sua obra, em
especial, uma forte denúncia social.
Espelha, com as cores fortes de sua consciência
crítica, uma estrutura social cuja marca é a
distância brutal entre as classes sociais: de um
lado, os opressores, detentores do poder político,
da força econômica, que prolongam um status quo que
esmaga qualquer possibilidade de transformação de um
quadro já coalhado pela aristocracia rural; de
outro, uma legião de oprimidos, expulsos da terra
tanto pelo latifúndio quanto pela seca. No caso dos
trabalhadores na construção do açude, migram em
busca de novos tempos; no entanto, caem na mesma
rede visguenta da dominação por parte dos que detêm
o poder econômico: (Texto VII)
Fran Martins constrói um amplo painel do sertão. Há,
portanto, a intensa presença do telúrico: homem e
terra despojados de bens materiais ou do mínimo
necessário a uma sobrevivência que não lhes
compromete, enfirm, a condição humana.
Infere-se, a partir desses excertos do romance Poço
dos Paus, de Fran Martins, que a ´seca e seus
satélites físicos e morais criam o fatalismo do
sertanejo, sobrevivente imunizado contra as
desgraças´. (6) Muitas vezes, como conseqüência,
destroem-se os valores morais do sertanejo, já não
mais visto como um poço de virtudes: ´O sistema de
dominação vigente no sertão aparece como um
feudalismo degradado.´ (7) Quanto a aspectos da
exploração de temas que configurem uma decomposição
geral tanto de personagens quanto de aspectos
ligados ao espaço, ressalte-se que o autor não
desenvolve, diretamente, a problemática da seca.
Esta passa ao largo, mas deixa, indelével, as suas
marcas. Afinal de contas, todos os que se encontram
na construção, mergulhados num estado calamitoso,
ali se encontram ou porque fogem da seca ou porque
tentam, de certo modo, defender-se, bravamente, de
seus tentáculos.
Veja-se, por exemplo, a tragédia que envolveu a
personagem Rosalina em Poço dos Paus. O sertão
estava em seca, gente morria nas estradas. O pai de
Rosalina migrou com a filha em direção ao açude,
tendo, à época, a proteção de um inglês que lhe
arranjou um bom emprego. Como flagelado chegou ali,
sofrendo todo tipo de negações. Mas o inglês o
ajudou; e, com o tempo, tudo prosperou. Um dia, o
inglês embarcou dali.
Depois de algum tempo, o pai da moça soube do caso:
o outro a havia possuído. Uma tristeza tomou conta
do velho. Prendeu a filha em casa, à espera do
amante, na esperança de um reparo. Ela, cansada de
sofrer, abandonou o pai, indo morar na Rua de Baixo
- zona de prostituição.
Como contraste à solidão e a uma espécie de inércia
espiritual que tomava conta de Climério - o
protagonista -, ele reencontra Rosalina. Ela, então,
passa a tomar conta da casa enquanto ele estava no
trabalho. Comprou móveis, e se aboletaram quase num
espaço do onírico: (Texto VIII)
No entanto, tal passagem serve apenas de um breve
lenitivo, pois, em verdade, somente o sofrimento, a
desesperança constitui o lugar-comum dessa gente.
Uma prostituta do Crato, Florinda, com suas artes de
sedução, abrirá um novo leque na narrativa. O que
será prazer para um implicará sofrimento para o
outro. Em Fran Martins, a relação entre as
personagens sofre uma incisiva atuação do espaço. O
quadro vital, nesse sentido, é composto pela
presença do humano e do natural. A natureza é,
portanto, mais do que um pano de fundo. Há uma
intensa inter-relação entre o homem e a natureza:
uma terra seca, sem seiva, sem tecidos que lhe
protejam o corpo, produz no homem o mesmo efeito.
BIBLIOGRAFIA
ATAÍDE, Vicente. A narrativa de ficção. São
Paulo: McGRAW-HILL, 1974.
GALVÃO, Walnice Nogueira. As Formas do Falso. São
Paulo: Perspectiva, 1972.
LANDIM, Teoberto. Seca: A Estação do Inferno - uma
análise dos romances que tematizam a seca na
perspectiva do narrador. Fortaleza: Casa José de
Alencar, 1993.
MARTINS, Fran. Poço dos Paus. Fortaleza: Edésio
Editor, 1938.
MASSAUD MOISÉS, Dicionário de Termos Literários. São
Paulo: Cultrix, 1974.
PROENÇA, M. Cavalcanti. Estudos Literários. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 1982.
NOTAS
(1) MARTINS, 1938.
(2) MASSUAD MOISÉS,
1974, p.452
(3) ATAÍDE, 1974, p. 4
(4) IBIDEM, p. 9
(5) LANDIM, 1992, p. 9
(6) PROENÇA, 1982, p.117
FIQUE POR DENTRO
Um breve retrato do Grupo Clã
Surgido em 1948 e idealizado por Fran Martins, o
Grupo Clã é responsável pela sedimentação das idéias
modernistas em nossa terra. Suas atividades giraram
em torno da Revista Clã, cujo número O se deu em
dezembro de 1946; o número 1 é de fevereiro de 1948;
e o último número - o 29 - surgiu em dezembro de
1988. Desse modo, ao longo de quarenta anos, essa
Revista publicou as maiores expressões da literatura
cearense de sua contemporaneidade. Abriu espaços
para as artes em geral, não somente a literatura,
abrigando artistas de tendências as mais diversas.
Dentre os membros, destacam-se Artur Eduardo
Benevides, Antônio Girão Barroso, Braga Montenegro,
Eduardo Campos, Milton Dias, Clímaco Bezerra,
Antônio Martins Filho.