Gerana Damulakis
Monólogo com a morte
06/09/2003
Em 2001, a
Editora Globo passou a ser responsável por toda a obra publicada de
Hilda Hilst. Seguindo, portanto, a reedição de seus livros, agora
traz de volta o volume Da morte. Odes mínimas, que foi publicado
pela primeira vez em 1980 por Massao Ohno/ Kempf Editores, além de
ter constado da reunião Poesia Poesia (1959/1979), lançada também em
1980, pelo Instituto Nacional do Livro/ Edições Quíron.
Da morte. Odes
mínimas vem acompanhado de seis aquarelas da própria Hilda Hilst.
São aquarelas de cores vivas e alegres, enquanto os versos conversam
com a negra morte. Tal paradoxo, obviamente proposital, vem afirmar
que a poesia traz a morte para a ensolarada vida, procura
envolvê-la, e, por esse caminho, o monólogo com ela se torna
possível. Assim como, de tanto falar sobre algo, uma intimidade
possa se estabelecer, o monólogo criado para a morte parece querer
que ela, ao se apresentar finalmente por inteiro, já não seja capaz
de causar espanto. Os versos da poeta traçam uma via que conduz ao
encontro virtual “entre duas mulheres fortes/ na sua dura hora”. Ou,
já aprofundando o encontro: “E a ti, te conhecendo/ Que eu me faça
carne/ E posse/ Como fazem os homens”. Um conhecimento vai sendo
travado, um envolvimento vai criando a trilha da sedução, enfim, as
odes vão construindo um pacto com a morte.
O imaginário
contribui para dessacralizar aquela que causa tanto pavor,
imaginando-a de antemão para que ela vá perdendo o horror que
inspira: “Como virás, morte minha?/ (...)/ Afilada? Ferindo como as
estacas/ Ou dulcíssima lambendo// Como me tomarás?”. A artista traça
uma balança e coloca num prato as aquarelas coloridas e a poesia, a
arte e a vida, e enfatiza: “Eu que vivi no vermelho/ Porque poeta, e
caminhei/ A chama dos caminhos”, enquanto do outro lado o prato
sustenta a devastadora morte que por vezes parece está imbuída de
uma inferioridade: “Perderás de mim/ Tosas as horas// Porque só me
tomarás/ A uma determinada hora”. O jogo continua, é a poeta
seduzindo a morte, tentando convencê-la de que sua chegada é um mau
negócio.
Segue-se o
imaginário que quer decifrar como é a aparência da indesejada, se se
apresentará como um animal em trote, como uma criança com
estardalhaço, como um amante, “ou com ares de rei/ Porque te fiz
rainha?”. O monólogo atinge seu ponto alto num momento que lembra
uma barganha: “Levarás contigo/ Meus olhos tão velhos// Ah, deixa-os
comigo/ De que te servirão/”. E como se um trato pudesse ser feito,
a poeta diz: “Se me tocares,/ Amantíssima, branda/ Como fui tocada
pelos homens// Ao invés de Morte/ Te chamo Poesia/ Fogo, Fonte,
Palavra viva/ Sorte”.
A justaposição
dos dois elementos, uma escrita viva e um tema como a morte, cria um
efeito rico que é fruto do produto que compõe o poema: efeito,
portanto, múltiplo, desdobrado nas odes, dinamizando o livro,
aliciando a leitura. A ode XXVI serve como exemplo ideal da
pungência encerrada no monólogo: “Durante o dia constrói/ Seu muro
de girassóis./ (Sei que pretende disfarce/ E fantasia.)/ Durante a
noite,/ Fria de águas/ Molhada de rosas negras/ Me espia./ Que
queres, morte,/ Vestida de flor e fonte?/ - Olhar a vida”. Donde se
pode concluir que chamar os poemas de odes reflete a pretensão de
sustentar a solenidade do tema e, embora mínimas, as odes trazem
versos que não escondem a marca da poeta forte que é Hilda Hilst.
Não escondem a marca de uma poesia que se reconhece e é reconhecida.
Publicando
desde 1950, aos 20 anos de idade, são muitos os prêmios que atestam
esse reconhecimento ao longo da décadas, seja por sua poesia, por
seu teatro (já lançado o volume Teatro reunido), ou por sua
narrativa (vale lembrar a trilogia obscena: O caderno rosa de Lori
Lamby, Contos d’escárnio e Cartas de um sedutor). Pelo conjunto da
obra, Hilst recebeu o Prêmio Moinho Santista da Fundação Bunge, além
do Grande Prêmio da Crítica, da APCA, duas vezes o Jabuti da Câmara
Brasileira do Livro e o Prêmio Cassiano Ricardo.
Embora tantos
prêmios, não faltou a crítica acerba por parte de muitos. Para esta
última, talvez não tenha havido um olhar mais profundo ou mais
benevolente. Cabem nesse momento os versos de Dez chamamentos ao
amigo: “Se te pareço noturna e imperfeita/ Olha-,me de novo. Olha-me
de novo com menos altivez./ E mais atento”. José Castello escreve no
seu Inventário das Sombras (Record, 1999) que a literatura é para
Hilda Hilst um ponto de partida para saltos longos e desgovernados,
e não um ponto de chegada. E é bem próxima desta forma de partir e
de realizar um salto longo que a autora de Da morte pretendeu travar
seu monólogo poético com a indesejada das gentes.
Gerana Damulakis é escritora; autora de Sosígenes Costa – O poeta
grego da Bahia.
|