Ginaldo Silva Santos
A morbidez poética em EU de
Augusto dos Anjos.
RESUMO: Este é um trabalho que se apresenta com o objetivo de
analisar a temática da morte nos poemas contidos no livro EU de
Augusto dos Anjos, enfatizando a morbidez em sua poética revestida
por uma linguagem científica, ou pretensamente científica e o
fascínio pela morte, a angústia cósmica e o uso de metáforas que
caracterizam a sua obra de cunho simbolista, combinando elementos
químicos, mórbidos, forças obscuras, fatalidades de leis físicas e
biológicas e decomposições de moléculas, sedimentando-lhe o amargo
pessimismo, o asco de volúpia e a inapetência para o prazer
contraposto em seus versos com métrica rígida, cadência musical,
aliterações e rimas preciosas, fundindo-se ao esdrúxulo vocabulário
utilizado pelo poeta.
Quanto ao método de abordagem, buscamos pensar na obra do poeta que
tem de essencial, a manifestação poética de uma cosmogonia, ou seja,
o poético retornar aos mitos e recriar um novo universo, exprimindo
a idéia da degradação progressiva do cosmo. Conceber que Augusto dos
Anjos construiu um poema-cosmogonia significa negar que sua obra
seja poesia científica e/ou a expressão documental dos princípios
naturalistas da evolução mecânica das espécies. Esta foi a leitura
que nos parece mais promissora para dar conta do projeto criado da
poética de confluências em que consiste EU, e atingir um público
mais amplo: estudantes universitários e leitores não especializados,
que buscam a compreensão de sua produção poética literária.
Palavras-Chave: poesia, cientificismo, cosmo, agonia.
ABSTRACT: The objective this work is analyze the death theme
from the poems contained in the book called EU by Augusto dos Anjos,
emphasizing the morbidness in his poetic which is revested for a
scientific language, or supposed scientific and the death
fascination, the cosmic distress and the use of the metaphor that to
be known for his symbolic work, arranging chemistry elements, morbid,
darkness power, fatality physical law and biologic and molecule
decomposition, the pessimism, disgust of voluptions and the absence
of the pleasure showed in his poems with hard metric, musical
cadence, precious rhyme, fusing the strange vocabulary, used by the
poet. About the approach method, we thought that the poetic work
which has an essential, the poetic show of the cosmic, and besides,
the return of the poetic and mythic and a new universe, expressing
the idea of the cosmic of progressive degradation to know Augusto
dos Anjos’s contribution with a poem and a documental expression of
the naturalist principle of the seems more promising to be a created
project of confluence from EU directioned to a huge public:
university students, and riders not specialized, who try to
understand his literature poetic.
Keyword: poem; scientific; cosmic; agony.
No início do século XX, a literatura brasileira atravessava um
período de transição. De um lado, ainda era forte a influência das
tendências artísticas da segunda metade do século XIX; de outro, já
começava a ser preparada a grande renovação modernista, cujo marco
no Brasil é a Semana de Arte Moderna (1922). As estéticas literárias
não são estanques entre si e, muitas vezes, se tocam, se influenciam
e se fundem. Assim foi que os críticos literários, ao longo dos
anos, focalizaram Augusto dos Anjos como sendo o tuberculoso, o
herói problemático de errante caminhada.
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) nasceu no
Engenho Pau d’Arco, na Paraíba, no dia 20 de abril de 1884. Depois
de exercer a profissão de advogado, foi promotor e professor de
literatura. Foi poeta de um livro só: EU, escrito em 1912. Mesclando
tematizações de fundo simbolista ao uso de termos extravagantes,
exóticos e científicos, o poeta caracteriza-se por uma
individualidade atormentada pelos paradoxos da existência. Seus
poemas são cheios de lirismo e melancolia, abordando temas como a
morte, cemitérios e hospitais, destacando-se além da linguagem
científica, a temática do vazio das coisas, a putrefação e a
decomposição da matéria. A obra é a soma de todas as tendências e
estilos predominantes desde o final do século XIX na literatura
brasileira. Recebe influências do Parnasianismo, do decadentismo, do
Simbolismo e ainda antecipa o Modernismo. Alfredo Bosi chama
atenção, em seu livro História concisa da Literatura Brasileira
(1994), para uma tese de intransponível valor que projeta uma
luminosidade para a compreensão da mimese em Augusto dos Anjos,
captando a inversão do cientificismo, como ferramenta propulsora de
sua poética, aproxima-o do pessimismo de Arthur Schopenhauer, que
identifica na vontade de viver a raiz de todas as dores. O pensador
postula que “todo o nosso ser já é vontade de vida” (SHOPENHAUER,
1994) condenando o destino humano a atuar sempre como um ser
dependente desse impulso de realização. A redenção shopenhauriana
projeta-se por meio do conhecimento articulado pela arte. A morte e
o nada atingem um patamar revigorado em sua obra que espelha uma
ojeriza pelas forças materiais, ao elegê-las insatisfatórias. Por
essa angulação, percebe-se um fundamentalismo artístico semelhante
ao do filósofo alemão em Augusto dos Anjos. De fato, esse pensamento
representa um hipotético desapego da materialidade do mundo dos
fenômenos, que encaminha seus seguidores a um tipo de ascese
radical. Há um sincretismo existencial em Augusto dos Anjos, cuja
formação indica a presença de outras vozes em seus versos,
tornando-o uma singularidade pluralizada. Poder-se-ia citar um
Baudelaire em menção ao estilo de Augusto dos Anjos. Não
compartilha, entretanto, do satanismo baudelairiano e sim do prazer
pela contemplação da putrefação como um dos signos da morbidez
humana.
O eu-poemático elege a gélida finitude da caveira, divorciada dos
instintos da vontade, como possibilidade criativa de um anelo
artístico-cosmológico fragmentado, contudo, pelo universo humano.
Para Shopenhauer (2004) a morte não pode ser um mal, pois com a
morte perde-se a consciência, mas não aquilo que a produziu e a
manteve: a vida se extingue, mas não se extingue com ela o princípio
de vida, que nela se manifestou. Enquanto os termos científicos
resfriam quando articulados denotativamente, inflamam-se quando
articulados ao poeta. O pulsar da vida torna-se escorregadio,
declinando por sua pestilência essencial. A sexualidade é
fragmentada, transformando o espaço dos escombros de uma
subjetividade refreada. Quanto mais intensa é à força da matéria,
mais brusca é a repulsa augustiniana frente o estado subalterno da
vontade, o eu lírico, decomposto pela realidade fatalística da
carne, se encontra num estado de problematização de sua própria
índole. A morte vista como a égide do futuro, simboliza uma passagem
para o estado de glorificação do nada, que fora roubado desde o
segundo que a existência do ser se concretiza no mundo. Os vermes
são o símbolo maior do destino dos humanos.
Segundo Órris Soares (1919) o título EU vale por uma autopsicologia.
É um monossílabo que fala. “O EU é Augusto, sua carne, seu sangue,
seu sopro de vida. É ele integralmente, no desnudo gritante de sua
sinceridade” (SOARES, 1919). No poema Monólogo de uma sombra o que
aparece é a angústia. Trinta e uma estrofes repletas de desejo de
vingança e provando, pela razão do sentimento, que a mais alta
expressão da dor estética consiste essencialmente na alegria. A
torturada sombra que fala, vem:
“Sou uma Sombra! Venho de outras eras, Do cosmopolitismo das moneras... Pólipo de recôndidas reentrâncias, Larva de caos telúrico, procedo Da escuridão do cósmico segredo, Da substância de todas as substâncias!
É uma espécie de projeto no sentido de conter em germes os temas a
serem, depois, obsessivamente retomados. E se desdobra em sonetos
que se distinguem, respectivamente, pela unidade da impressão e do
conceito e pela sondagem metafísico-existencial entremeada com o
sentimento de culpa e com o desespero ante a finidade do homem, da
natureza, do cosmo. A obsessão com a morte alimenta-se de uma
ambigüidade propiciada pela disposição melancólica do poeta. O eu
lírico apresenta os seus dois grandes inimigos, símbolos de duas
deploráveis tendências do homem. São eles: o Filósofo Moderno,
representante do cientificismo mecanicista que ameaçava a crença no
espírito e na transcendência humana, e o sátiro, que no rastro do
mesmo impulso materialista transforma-se em escravo dos instintos.
No primeiro o poeta lamenta, sobretudo a inutilidade de suas
indagações, fadadas, por falta de ânimo ou crença metafísica, à
percepção superficial do mecanismo das coisas. No segundo, lamenta o
sensualismo desmedido que reduz o sátiro à condição de animal, e
cujo fundamento hereditário, genético, constitui ao castigo. Articulado ao pólo de tristeza e pessimismo existe no EU uma
dimensão oposta, de erotismo e alegria. Nesse plano nem tudo se
resume à fixação na morte e à apologia do verme, sendo possível
perceber no poema a descrição realista dos temores que assaltam o
eu-poético sozinho, na noite do engenho, a pensar sobre a morte e
ver dela os reflexos nos objetos que o circundam. Elas se sucedem às
elucubrações noturnas do eu lírico e constituem um contraponto à
insônia. É o que acontece no final de Tristezas de um Quarto
Minguante. O poema é uma descrição realista dos temores que assaltam
o eu lírico sozinho, na noite do engenho, a pensar sobre a morte e
os sentimentos que o aflige:
Entretanto, passei o dia inquieto, A ouvir, nestes bucólicos retiros, Toda a salva fatal de 21 tiros Que festejou os funerais de Hamleto!
Eu é composto em sonetos, quase todos decassílabos. Ao mesmo tempo
percebe-se a influência simbolista, explicitada pela sonoridade dos
versos, uso de iniciais maiúsculas e por alguns aspectos temáticos,
como o ideal de transcendentalismo e a angústia cósmica, entre
outros. A morte é um termo que pode se referir ao término da vida de
um organismo vivo. Na literatura, independente do período literário,
ela sempre esteve presente, seja para representar um a fuga da
realidade, para por fim aos tormentos íntimos, por amor, ou até
mesmo, pelo simples fato de querer ver esvair-se a vida de um corpo
pelas próprias mãos. O tema é, sobretudo, universal. Na poética de
Augusto dos Anjos ela está presente como característica fundamental
para uma melhor compreensão de sua obra. Ela trata o assunto com uma
linguagem metafórica e o sentimento de evasão da vida trava um
verdadeiro embate interior, restando-lhe somente a certeza de que a
morte não dorme e a espera numa angústia absurda e tragicômica.
O desejo de vida que lhe resta interage com o medo, o fascínio com o
temor, numa ambigüidade característica de seu ser. A morte é um
aporta entreaberta. É o poder do poeta sobre si mesmo e sobre o
mundo que o cerca. Passa a ser o sentido fundamental de se estar
vivo, e viver passa a ser o seu caminho incansável para encontrá-la.
A retórica delirante do poeta não termina, portanto, na referência
cientificista. Augusto adquiriu súbita contemporaneidade, como em
Budismo moderno:
Tome, Dr.., esta tesoura, e ... corte Minha singularíssima pessoa. Que importa a mim que a bicharia roa Todo o meu coração, depois da morte?! Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Augusto dos anjos é um poeta de estilo singular cujos temas
demonstram uma perplexidade asfixiante perante a condição humana, a
partir de uma projeção do ser no mundo que, conforme o poeta, é
governado por uma vontade irracional e dilacerante. EU congrega
temas de uma extraordinária riqueza literária e de imprescindível
importância para a literatura brasileira, tendo em vista que
representou uma arte de fundo pessimista. Uma síntese da morbidez
associada ao linguajar cientificista e à ousadia das imagens
encontra-se me Psicologia de um vencido.
Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênese da infância A influência má dos signos do zodíaco.
Diante da constatação de que para o homem não outro destino e não a
putrefação da carne e a morte. Augusto transforma-se em um
espectador em agonia desse processo cujo símbolo é o verme. Em sua
alma atormentada as superexcitações provocam visões aterradoras. O
mundo em que vive torna-se um vasto hospital, onde não há alegria,
povoado por fantasmas errantes que não adquiriram a consciência de
sua dor. Assombra-se com o futuro firmando-se no presente e na
ciência racionalista. Para Shopenhauer “quando prevalece o
conhecimento o homem avança ao encontro da morte com o coração firme
e tranqüilo”. (SHOPENHAUER, 1884, p.345). Todas as poesias contidas
em EU vestem-se do mesmo tom de beleza sombria. Se a consciência é o
sentimento íntimo do eu, a dor possui a faculdade de aumentar a
sensibilidade do poeta ao retratá-la. Augusto desenha um mundo, não o seu, nem o de suas dores, mas, o
perfil que misturava à forma poética, o traçado épico e a trama
dramática. A linguagem assume a forma de uma cosmogonia, uma espécie
de história mítica que relata a origem, o aparecimento de algo e com
isso, o surgimento de uma nova humanidade. O poeta ressalta a vida,
a paixão e a morte das substâncias e quimeras, numa antropofagia que
ele constrói e ao mesmo tempo, destrói tudo o que existe no universo
da natureza exausta que está preste a acabar. Sua poesia lírica
romântica mistura-se ao satanismo, e o macabro, o épico e o
dramático, tecendo ao longo de sua obra, um único poema, em que o
poético interroga o destino e a trajetória do homem, que encontra na
arte a expressão máxima da existência. O enigma do desejo é remetido
na atmosfera meio vivida, meio mórbida, que o cerca levando-o ao
auto questionamento gerado pela visão da morte. As palavras assumem
a lógica, ou a falta da mesma. Surge daí uma discussão que
desencadeia no poeta questionamentos sobre sua própria existência,
que o faz refletir para aonde irá após sua morte. Nos versos de A
idéia Augusto dos Anjos questiona: “De onde ela vem? De que matéria
bruta vem essa luz que sobre as nebulosas cai de incógnitas criptas
misteriosas?”. Para ele são intrigantes os mistérios da vida e da
morte. Em Sonetos, na segunda parte, ele afirma:
Madrugada de Treze de janeiro. Rezo, sonhando, o ofício da agonia. Meu pai nessa hora junto a mim morria Sem um gemido, assim como um cordeiro!
A lírica de Augusto dos Anjos está voltada para a precariedade e
para a decadência do homem. A solidão tubércula contribui para a sua
formação poética, que de algum modo, exerceu influência na tessitura
literária. No poema Os doentes Augusto declara com voz de um tísico
sua triste sina e os eu desespero perante o mal que o abate: “Oh!
Desespero das pessoas tísicas, adivinhando o frio que há nas
lousas”... O eu lírico na sua poesia arquiteta a estrutura poética
que o situa como ponto central. Augusto dos Anjos é comparado a
Cesário Verde no que se refere à temática peculiar de ambos. E o
ponto mais distinto entre essas duas poéticas está na linguagem,
especialmente, no uso do lexo e os extratos morfo-semânticos. Segundo Alfredo Bosi, “o esteticismo da poesia de Augusto dos Anjos
se centra fundamentalmente na dimensão cósmica e na angústia moral”
(BOSI, 1995, p.324). Edgar Morin (1976), em O homem e a morte
atribui ao cristianismo, a obsessão e o horror da morte que chega a
penetrar no âmago da vida humana. O homem cristão morre a cada
instante por ser corrompido pelo pecado. Augusto dos Anjos expõe
este homem de forma crua, que também deseja a sua morte como um meio
de transcender, de redenção por sua vida injustiçada e que espera da
morte a sua libertação.
Os versos de O poema negro estão cheios de alucinações e desconexo.
Nele Augusto dos Anjos se permite sonhar. E este sonho torna-se um
pesadelo no qual o poeta mergulha na própria angústia, teme o verme
frio que há de roer-lhe a carne: “é a morte – esta carnívora
assanhada... serpente má de língua envenenada que tudo que acho no
caminho, come...” (ANJOS, 1912 p.108).
Seduzido por Charles Darwin (1859), autor do livro A origem das
espécies, em que a base da teoria evolucionista está na luta pela
vida, e que somente os mais fortes e os mais aptos conseguem
sobreviver, Augusto projeta a sua realidade, que é o pulso
imaginário em sua poética, e transforma a morte em matéria,
perfeição cheia de enfermidades asquerosas, transfiguradas em versos
vibrantes. É cosmogonia.
O verme é também para Augusto dos Anjos o seu nome de batismo e
antecede de forma futurista o movimento antropofágico de Oswald de
Andrade no Modernismo brasileiro. Esse antropomorfismo é justificado
nos versos de Solilóquio de um visionário:
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério Comi meus olhos crus no cemitério Numa antropofagia de faminto!
EU é um exílio do próprio corpo do poeta. Ele mesmo demonstra o
fascínio que a morte exerce sobre o seu corpo, numa ambigüidade que
repudia a materialidade. São dilaceramentos paradoxais. A busca de
uma realidade que não é satisfatória. É o verdadeiro confronto dos
débitos carnais com a presença da morte que conduz o poema a
temáticas densas, atingindo até o grotesco. Augusto revela-se um
poeta essencialmente interiorizado, que expressa a própria condição
humana, profundamente desiludido deste mundo material e concreto.
Sua concepção é a de que o homem nada mais é que o resultado de
processos e forças. O eu em Augusto, surge unicamente como envolto
na densidade da realidade, na faticidade do corpo e mundo, com os
quais se identifica.
Lúcia Helena considera a obra de Augusto dos Anjos como “a
manifestação poética de um jogo híbrido:
nascimento/vida/morte/re-nascimento” (HELENA, 1984). É na esfera do
poético que o EU promove o vivificar das células, da mônadas e das
moneras, antes contaminadas em um discurso em consonância com o
cientificismo naturalista, pela morte íntima de todas as coisas. A
explicitação da lei pela morte serve de consolo a Augusto dos Anjos
que não mais quer dela separar-se. Ela perde o seu terror quando se
morre depois de consumida a própria vida. Concepção visionária do
ser que se deixa consumir pelo transcendentalismo existencial. Tudo
parece vir da razão. Augusto distancia-se da realidade quando
acredita ser a morte uma conseqüência de sua própria imaginação. É
do inconsciente que surge a sua agonia, transformando-o num ser
acometido pela morbidez ilusória.
Augusto dos Anjos enumera em EU uma série de estados mórbidos
ligados tanto ao seu corpo quanto à sua mente. É um repositório de
doenças atribuídas não somente ao eu lírico como também aos
personagens contra os quais ele investe o seu juízo moral, marcado
pela culpa. Esses personagens estão em deterioração. É o que se
percebe nos versos de Apóstrofe à carne:
Quando eu pego nas carnes de meu rosto, Pressinto o fim da orgânica batalha: __ olhos que o húnus necrófago estraçalha Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...
EU, portanto, reitera o duplo testemunho de um discurso moralmente
agressivo misturado com um intimismo confessional e dolorido. É um
signo inaugural que, marcado pela enfermidade, expressa o espanto do
poeta, em relação à morte, que além do temor, é o máximo de
consciência possível para ele. É o nome símbolo da identidade
individualizada em sua obra. O signo do nome está associado à idéia
de perpetuação da vida. A sua identidade passa por diversos estágios
de identificação, em que o indivíduo tem em si próprio uma
identidade unificada, cujo resultado é uma elaboração discursiva que
constrói, a sua narrativa particular do eu. A angústia particular do
eu lírico, defrontando com o temor da morte, sucede a referência ao
homem como um todo. Ele é concebido como uma antítese
biopsicoquímica em que uma parte negra colide com outra alva e
luminosa, harmonizando-se com o caráter genérico. O ser humano não é
mais material e sim abstrato, representado pelos órgãos dos
sentidos. Podridão é o vocábulo principal do poema. Ele não se
refere apenas à deterioração do corpo, e sim ao legado vicioso que o
eu lírico transmite, através da consciência culpada e melancólica
que antecede a sua morte.
O EU é, sobretudo, uma obra confluente por ter sido produzida num
momento particularmente sincrético da história da literatura
brasileira. A confluência é o modo de ser própria a toda obra de
arte literária que compactua do vigor das manifestações do homem.
Assim, o EU é um poema que se lança para além de seu próprio tempo.
A obra de Augusto dos Anjos é um eu plurificado, que engendra
múltiplos textos de si mesmo, da história dos tempos e do texto
histórico. Não equivale, essencialmente, a um objeto produzido,
utilitário, e sim, que se transforma no lugar do acontecimento
existencial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. 38ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1985. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo,
Cultrix. 1995. HELENA, Lúcia. A como-agonia de Augusto dos Anjos. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1984. MORIN, Edgar. O homem e a morte. Trad. João Guerreiro Boto. Lisboa:
Publicações Europa – América, 1998. PAES, José Paulo. Augusto dos Anjos e o Art Nouveau. Do particular
ao universal. In: Gregos e baianos: ensaios. São Paulo: Brasiliense,
1985. PORTELLA, Eduardo. Confluências, manifestações da consciência
comunicativa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. PROENÇA, Ivan Cavalcanti. Um ensaio sobre Augusto dos Anjos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1980. SHOPENHAUER, Artur. Da morte. Metafísica do amor e do sofrimento do
mundo. São Paulo. Martin Claret, 2004.
Ginaldo Santos Silva, é graduado no curso de Letras
Português / Inglês pela Universidade Tiradentes,
Especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade
Atlântico. Atualmente leciona Literatura, Redação e
Inglês no Ensino Médio. [2007]
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