Ferreira Gullar
Fernando Pessoa
A razão poética
(in Folha de São Paulo, Caderno Mais!,
10.11.96)
Ferreira Gullar analisa os heterônimos de Pessoa e contesta que
eles sejam personagens teatrais, como defendeu o próprio poeta
Há 61 anos morria, em Lisboa, Fernando
Pessoa, cuja obra, por sua complexidade e beleza, deu novo sentido e
novo peso à literatura de língua portuguesa. Falar desse poeta e
dessa obra equivale a mergulhar num atordoante labirinto de
espelhos. O que é previsível, quando se lê o que ele mesmo disse em
carta a João Gaspar Simões: "O estudo a meu respeito, que peca só
por se basear, como verdadeiros, em dados que são falsos por eu,
artisticamente, não saber senão mentir". Pode-se entender esse
reparo como uma advertência, pertinente, aos críticos que costumam
explicar a obra dos escritores por sua biografia. De fato, se em
todo autor obra e vida de algum modo se entrelaçam ou se ligam, deve
a crítica ter em conta que se trata de realidades diferentes, de
linguagens diversas, que não se traduzem uma na outra. Sendo assim,
o mesmo fato não terá igual significação na vida como na obra, ou
seja, devemos ler a obra como obra e a vida como vida. Sem
confundi-las.
No caso de Fernando Pessoa, porém, a
dificuldade está na leitura da obra de um autor cuja vida parece se
resumir à própria obra e que, ao mesmo tempo, põe em dúvida a cada
momento a sua existência como gente e como autor da obra. Mas
tampouco o faz de modo definido ou definitivo.
Assim abre diante de nós um labirinto
de dúvidas e simulações:
"Se alguma vez sou coerente -diz ele-,
é apenas como incoerência saída da incoerência"; ou então: "A origem
mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica para a
despersonalização e para a simulação". Noutra ocasião afirma:
"Eu sou a sensação minha. Portanto,
nem da minha própria existência estou certo".
Se nos detemos a analisar essa última
frase, verificamos que ela é carente de lógica: se eu sou uma
sensação minha, não posso ter dúvida quanto a minha existência, já
que, para haver sensações, é necessário que haja alguém que as
tenha. Trata-se, portanto, de um paradoxo. Mas a nossa lógica de
pouco ou nada vale para contestar ou definir a alguém que, como
Pessoa, nos responde: "O paradoxo não é meu. Sou eu".
E é verdade. Ou deve ser... talvez.
Fernando Pessoa parece ter tido, desde sempre, enorme dificuldade em
manter-se coerente.
Ele confessa: "Todos os meus escritos
ficaram inacabados: sempre novos pensamentos se interpunham,
associações de idéias extraordinárias e inexcludíveis, de término
infinito". Há nele uma espécie de horror ao definido e ao
definitivo: "Não posso evitar o ódio que têm meus pensamentos de ir
até o fim: a respeito de uma simples coisa, surgem dez mil
pensamentos e milhares de interassociações com esses dez mil
pensamentos, e careço de vontade de eliminá-los ou detê-los, nem
tampouco de reuni-los num pensamento central, onde os seus
pormenores sem importância, mas associados, podem se perder.
Introduzem-se em mim: não são pensamentos meus, mas pensamentos que
passam através de mim. Não pondero, sonho; não me sinto inspirado,
deliro".
A coerência impossível.
Pode-se deduzir dessa confissão que a
impossibilidade de se manter coerente decorre, em Fernando Pessoa,
de um lado de sua inteligência extraordinariamente rica e sensível
e, de outro, de uma fraqueza ou indecisão fundamental que o impede
de eleger a linha mestra do raciocínio e expurgar tudo o que, por
mais interessante ou brilhante que seja, não pertença a ela.
Outra hipótese seria a de que ele
subestima a coerência lógica em favor do efeito emocional das idéias
e porque encontra na própria incoerência uma expressão emocional ou
um perverso prazer intelectual. Não se pode esquecer que, entre as
múltiplas faces da personalidade de Pessoa, há sem dúvida a de um
certo esnobismo intelectual, o esforço para fugir do comum. Ele o
diz pela boca de Bernardo Soares, o "autor" do Livro do
Desassossego: "Repudiei sempre que me compreendessem. Ser
compreendido é prostituir-me. Prefiro ser tomado a sério como o que
não sou". Se se alega -como poderia fazê-lo o próprio Pessoa- que o
que diz Soares, diz Soares, e não ele, Pessoa, podemos também
lembrar-lhe outra de suas afirmações: "Só disfarçado é que sou eu".
Definir Pessoa é como tentar fixar as imagens de um caleidoscópio em
movimento.
Não obstante, nunca se pode descartar,
no entendimento desse fenômeno -que se confunde com uma espécie de
dispersão da personalidade-, causas verdadeiras, existenciais e até
psíquicas, especialmente quando atentamos para afirmações como esta:
"O caráter de minha mente é tal que odeio os começos e os fins das
coisas, porque são pontos definidos. Aflige-me a idéia de que se
descubra uma solução para os mais altos e mais nobres problemas de
ciência e filosofia; horroriza-me a idéia de que uma coisa qualquer
possa ser determinada por Deus ou pelo mundo.
Enlouquece-me a idéia de que as coisas
mais momentosas possam realizar-se, de que os homens pudessem todos
ser felizes um dia, de que se encontrasse uma solução para os males
da sociedade".
E, após dizê-lo, adverte: "Contudo,
não sou mau nem cruel; sou louco e isso dum modo difícil de
conceber".
Não nos cabe aqui fazer o diagnóstico
médico de Fernando Pessoa. Ele, sim, tenta fazê-lo numa carta a dois
psiquiatras franceses, datada de 10 de junho de 1917, em que afirma:
"Do ponto de vista psiquiátrico, sou um hístero-neurastênico, mas
felizmente minha neuropsicose é bastante fraca". E aduz logo
adiante: "Exceto nas coisas intelectuais, onde cheguei a conclusões
que tenho como firmes, mudo de opinião dez vezes por dia; só tenho
juízo assentado a respeito de coisas em que não haja possibilidade
de emoção". E isso porque, segundo ele mesmo admite, "a emotividade
excessiva perturba a vontade; a cerebralidade excessiva -a
inteligência por demais apaixonada pela análise e pelo raciocínio-
esmaga e amesquinha essa vontade que a emoção acaba de perturbar", e
acrescenta: "Quero sempre fazer, ao mesmo tempo, três ou quatro
coisas diferentes; mas no fundo não só não faço, mas não quero mesmo
fazer nenhuma delas. A ação pesa sobre mim como uma danação: agir,
para mim, é violentar-me".
Se Pessoa era ou não um "hístero-neurastênico",
não importa aqui. No trecho citado, interessam-nos mais as
referências à "cerebralidade excessiva -a inteligência por demais
apaixonada pela análise e pelo raciocínio"- e à impossibilidade de
agir. Esses dados podem explicar sua tendência a negar a realidade
concreta do mundo objetivo, o estado de permanente desencanto diante
da vida e da criação de personalidades fictícias nas quais projeta a
vida que ele próprio não consegue viver.
Homossexualismo irrealizado
Mas há um outro dado a acrescentar a
esse quebra-cabeças: o homossexualismo irrealizado de Fernando
Pessoa. Mais uma vez recorremos a suas próprias palavras: "Não
encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com
uma inteligência masculina. A minha sensibilidade e os movimentos
que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua
expressão, são de mulher. As minhas faculdades de relação -a
inteligência e a vontade, que é a inteligência do impulso- são de
homem". Adiante ele diz: "Reconheço sem ilusão a natureza do
fenômeno. É uma inversão sexual fruste. Pára no espírito". Mas
vejamos o que se segue: "Sempre, porém, nos momentos de meditação
sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho
ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia
descer-me ao corpo. Não digo que praticasse então a sexualidade
correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me
humilhar".
Esse texto deixa claro a drástica
reprovação de Pessoa à prática do homossexualismo (que ele considera
humilhante), assim como o temor de que, contra a sua vontade, esse
impulso lhe descesse ao corpo e o submetesse. "Somos vários desta
espécie, pela história abaixo'', afirma, referindo-se em seguida a
Shakespeare e Rousseau, para sublimar seu receio "da descida ao
corpo dessa inversão do espírito", "como nesses dois desceu". Seria
descabido imaginar que, diante dessa ameaça, diante desse corpo que
poderia a qualquer momento traí-lo, que Pessoa decidisse não viver,
reduzir sua vida à vida da inteligência (sua parte masculina), e
assim escapar à desgraçada possibilidade de tornar-se um
homossexual? Não seria essa divisão interior -um homem e uma mulher
na mesma pessoa- o início de sua despersonalização, da divisão do eu
e ao mesmo tempo da invenção de outras personalidades, em lugar da
sua própria, que lhe era, por pervertida, inaceitável? Por outro
lado, a necessidade de ocultar esse impulso perverso não seria a
primeira simulação que o levaria a tantas outras simulações?
Podemos responder sim ou não a essas
hipóteses. Mas mesmo que respondamos sim, não esgotaríamos com isso
o mistério da obra poética de Fernando Pessoa nem o enigma de sua
personalidade, que dessa obra não se separa, porque, qualquer que
seja a causa que determina o nascimento de seus poemas e a criação
do seus heterônimos, a significação poética e o valor literário de
sua obra pairam acima das explicações.
Não vamos, portanto, indagar agora
pela origem de seus heterônimos, mas tentar compreender o que são
eles. Num texto conhecido como ``Apresentação dos Heterônimos'' e
que foi escrito como prefácio a uma projetada edição de suas obras,
em 1930, possivelmente, Pessoa afirma: "O autor humano destes livros
não conhece em si próprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente
uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente
diferente do que ele é, embora parecido" (...) "Afirmar que esses
homens todos diferentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela
alma incorporadamente, não existem -não pode fazê-lo o autor destes
livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou
Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade."
O poeta dramático
Essa alusão a Shakespeare não é
fortuita, por várias razões, mas especialmente porque Pessoa se
entende como um "poeta dramático" e seus heterônimos como
equivalentes a personagens teatrais. É bastante conhecido o trecho
de sua carta a João Gaspar Simões em que ele se define como tal: "O
ponto central da minha personalidade como artista é que sou um poeta
dramático; tenho, continuamente, em tudo quanto escrevo, a exaltação
íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo. Vôo outro -eis
tudo".
Em consequência disso, diz ele, "não
há que buscar em qualquer deles (dos heterônimos) idéias ou
sentimentos meus, pois que muitos deles exprimem idéias que não
aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como
estão, que é aliás como se deve ler". Argumenta com o exemplo do
poema oitavo do ``Guardador de Rebanhos'', "que escrevi com
sobressalto e repugnância", afirma, ``pois que ali Caeiro usa de
blasfêmia infantil e antiespiritualismo, quando nem uso de blasfêmia
nem sou antiespiritualista". E acrescenta: "Alberto Caeiro, porém,
como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu
queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito
de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar
expressão à alma de lady Macbeth, com o fundamento de que ele,
poeta, nem era mulher nem, que se saiba, hístero-epilético, ou de
lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua
perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é
igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é
lícito, porque elas são fictícias e não porque estão num drama".
Acredito que, para melhor entendermos
o fenômeno dos heterônimos, devemos examinar esta tese de Fernando
Pessoa, na qual ele insiste repetidas vezes e a que confere
indiscutível importância, a ponto de considerá-la a chave para o
entendimento de toda a sua obra.
De meu ponto de vista, a explicação
dos heterônimos -se eles são apenas pseudônimos de um único poeta
que é Fernando Pessoa ou se são de fato poetas autônomos que ele
criou do mesmo modo que um dramaturgo cria seus personagens- não
alterará a avaliação qualitativa dos poemas a eles atribuídos, mas é
impossível falar da obra poética de Pessoa, como um todo, ignorando
a existência desses personagens-poeta.
A leitura, não apenas dos textos
explicativos produzidos por ele, como dos poemas de Caeiro, Reis e
Campos, deixa evidente a complexidade desse fenômeno e seu alcance
profundo na personalidade literária e humana de Pessoa. Pode-se
dizer mesmo que a sua obra poética tanto se constitui dos poemas
todos que escreveu como igualmente desses personagens, que ele usa
para ser outros ou que o usam para serem eles mesmos. Por isso,
tentar entender que relação efetivamente existe entre Pessoa e seus
heterônimos é tentar entendê-lo com criador literário.
Apesar da insistência de Pessoa em se
definir como "poeta dramático" e afirmar que seus heterônimos
equivalem a personagens teatrais, ponho em dúvida essa sua tese.
Para justificar minha discordância, volto à celebre carta a João
Gaspar Simões, já citada aqui. "Desde que o crítico fixe, porém, que
sou essencialmente um poeta dramático, tem a chave da minha
personalidade, no que pode interessá-lo a ele, ou a qualquer pessoa
que não seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico não tem que
ser. Munido dessa chave, ele pode abrir lentamente todas as
fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que,
como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como
dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto para
uma expressão alheia ao que senti, construindo na emoção uma pessoa
inexistente que a sentisse verdadeiramente e por isso sentisse, em
derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me esqueci de
sentir", escreve Pessoa, tentando com isso mostrar o mecanismo de
sua criação como poeta dramático. Sucede que, a meu juízo, esse não
é o mecanismo da criação dramatúrgica.
Vaga biografia
O dramaturgo parte de personagem já
existente (na vida real ou na sua imaginação) ou parte de uma
situação dramática. Seu objetivo não é transferir sentimentos para
expressões alheias ao que sentiu, mas expressar as emoções
implícitas nas mais distintas situações da vida e dar existência aos
protagonistas desses dramas. Macbeth não é resultado de um momento
de despersonalização de Shakespeare e sim da capacidade do
dramaturgo de viver integralmente o personagem, tanto em seu caráter
como na situação dramática em que ele se encontra. A criação
dramatúrgica não implica a substituição do autor pelo personagem, já
que este é, de certa forma, uma expressão da personalidade do autor,
afirmação dele como dramaturgo. Isso não significa, porém, que o
personagem não possua traços próprios e não goze de uma autonomia
relativa. Macbeth é, antes de mais nada, um homem numa situação
dramática. Por isso, o que ele diz é o que só ele pode dizer e
naquele momento; ele ou alguém que tivesse o mesmo caráter e se
encontrasse na mesma situação. Sublinho este ponto porque reside aí
a diferença fundamental entre um personagem dramático e qualquer dos
heterônimos de Pessoa. Os heterônimos têm uma vaga biografia e,
quando "falam" (escrevem), não o fazem como produto de uma situação
determinada, como ocorre com Hamlet ou Macbeth ou Júlio César.
Tomemos o exemplo de Macbeth que,
acreditando numa falsa profecia, dera vazão a sua sede de poder e a
seus instintos sanguinários, traindo, assassinando, oprimindo.
Quando, afinal, odiado por todos, cercado pelos inimigos, percebe
que a profecia falhou e sente que o mundo desmorona sobre sua
cabeça, tem uma explosão de revolta: "A vida é uma história contada
com som e fúria por um idiota, e sem sentido algum". Essa frase
terrivelmente negativa só poderia brotar na mente de um personagem
furioso como Macbeth e posto na situação desesperadora em que se
encontra no final de sua história. Não se trata de uma reflexão
teórica e genérica, mas de uma manifestação contingente, por isso
mesmo dramática.
Certamente, para que Macbeth seja
assim e diga o que diz, é também necessário que o dramaturgo seja
Shakespeare e não Molière ou Racine. Mas quem fala ali é Macbeth,
não é Shakespeare. Porque Macbeth existe como personagem de uma
história, existe numa história, e age e pensa em função das
situações com que se defronta, sua existência é muito mais palpável,
mais consistente, do que a dos heterônimos, e sua independência, com
respeito ao seu criador, também muito maior.
De fato, como o que se conhece da vida
de Macbeth ou de Hamlet são situações-limite, cuja alta intensidade
dramática as imprime a fogo em nossa memória, nós os conhecemos
melhor do que a Shakespeare, de quem temos vagas referências
biográficas.
Noutras palavras, o conhecimento que
temos de Shakespeare não é dramático, é prosaico, biográfico, como o
conhecimento que temos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. E desse modo os papéis se invertem: Fernando Pessoa está
mais vivo em nossa mente que seus heterônimos, porque dele, sim,
temos um conhecimento dramático. Ele -e não Caeiro, Reis ou Álvaro
de Campos- é que é o personagem com história e drama. Ele é que, aos
cinco anos perde o pai, seis meses depois perde o irmão e, em menos
de dois anos, ganha um padastro; ele é que vê morrer a avó, louca, e
teme ele próprio enlouquecer; ele é que, desde cedo, percebe que não
consegue viver; ele é que se sente como inexistente, como uma
passividade que quase nada pode, a não ser se multiplicar em
personagens fictícios; ele é que, homossexual que não se aceita,
desiste de qualquer vida sexual; ele é que conhece a solidão e o
vazio; ele é que conhece "a amargura essencial desta vida estranha à
vida humana -vida em que nada se passa, salvo na consciência dela" e
que, por isso, inveja o homem comum, normal, "que sente cansaço em
vez de tédio e que sofre em vez de supor que sofre". Pode-se
questionar se Fernando Pessoa era um poeta dramático, como ele se
definiu, mas um personagem dramático, isso ele o foi seguramente.
A matéria poética
Por aí se vê que um personagem não
precisa ser fictício para ser dramático, nem é essa condição que lhe
empresta dramaticidade. Tampouco necessita, o personagem fictício,
fazer parte de uma peça teatral. Alfred Prufrock, do célebre poema
da Eliot, é um personagem dramático, como observa Edmund Wilson,
porque nos é apresentado em situação dramática. Não é um heterônimo,
nada se sabe dele além do que se deduz da própria leitura do poema,
que é a expressão mesma de sua dramaticidade, um homem que envelhece
solitário e que nunca ousou nada na vida, além de suas tímidas e
frustradas fantasias.
Vê-se portanto que a relação de um
dramaturgo com seus personagens não é igual à de Fernando Pessoa com
seus heterônimos, mesmo porque estes não são a rigor personagens
dramáticos. Isso não significa, porém, que não haja diferença entre
Pessoa e os heterônimos, que eles não existam enquanto
personalidades fictícias por ele criadas ou sejam fruto de mero
capricho do poeta.
Não, os heterônimos são expressão
necessária da personalidade de Fernando Pessoa, talvez que
inicialmente como consequência de uma tendência à mistificação ou à
simulação, conforme ele mesmo admite, mas que mais tarde tornaram-se
parte essencial de seu universo intelectual, de sua elaboração da
matéria poética. A novidade que é a criação dos heterônimos
-fenômeno único na história da literatura-, longe de resultar de uma
originalidade buscada, nasce das características especiais da
personalidade de Fernando Pessoa e mesmo do que se poderia designar
como suas deficiências.
É por não ter nunca certeza de nada, é
por desconfiar da existência do mundo material à sua volta, por não
distinguir firmemente as fronteiras entre o percebido e o pensado,
por lhe parecer tão real -ou irreal- o que pensa quanto o que
percebe sensorialmente, enfim, por não se saber quem é nem quantos é
nem mesmo se é, por tudo isso ele se projetou nesses personagens
fictícios, que usam de sua mente e de seu corpo para existir ou,
pelo menos, para pensar e escrever. Mas se pode dizer também que é
ele que os usa para assim assumir de modo efetivo as diferentes
possibilidades de entendimento e indagação da existência que se
oferecem à sua vertiginosa e comovida lucidez. Pode-se ainda encarar
esses heterônimos com uma busca de alternativa para a visão
desencantada e sofrida que se apreende nos versos de Fernando
Pessoa-ele-mesmo:
``Com que ânsia tão raiva
Quero aquele outrora!
E eu era feliz? Não sei:
Fui-o outrora agora''
ou
``Sol frio dos dias vãos
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
De quem não entras na alma!''
ou
``Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena...
Eu sofro sem pena a vida''.
Esse sofrimento vazio, que não decorre
das relações afetivas, das paixões e das perdas reais, esse
sofrimento que dói mais por parecer fingimento que por parecer real,
talvez encontre um consolo quando Pessoa se torna Alberto Caeiro e,
na pele dele, vive uma vida menos doída. Como Caeiro, Pessoa aceita
a realidade do mundo e se conforma com vê-la, sem se atormentar de
indagações:
``Creio no mundo como um
/malmequer
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não
/compreender...
O mundo não se fez para /pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e
/estarmos de acordo
Eu não tenho filosofia: tenho
/sentidos...
Se falo na Natureza não é porque
/saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por
/isso,
Porque quem ama não sabe o que
/ama
Nem sabe por que ama, nem o
/que é amar...''
Alberto Caeiro é, assim, a
manifestação de uma opção filosófica implícita na negatividade da
visão de Fernando Pessoa: a descrença na possibilidade de, pela
razão, compreender-se o mundo. Mas, em lugar de tal verificação
conduzir ao desencanto ou ao desespero, conduz, em Caeiro, à
aceitação tácita da realidade. O mundo existe, está aí, basta
senti-lo, uma vez que "há metafísica bastante em não pensar em
nada", e mesmo porque não há o que indagar, já que
Se Caeiro é a aceitação da vida sem
pensar, Ricardo Reis é talvez a aceitação apesar do pensar. Para
Caeiro, existir é um fato maravilhoso por si mesmo, e o mundo, que
dispensa explicações, não terá tido nem começo nem terá fim, ou pelo
menos não importa sabê-lo. Já Ricardo Reis sabe: sabe que o tempo
passa e a vida é breve. Mas isso não o perturba:
"Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores".
Mas os heterônimos, se são
alternativas filosóficas, são também alternativas estilísticas,
aliás, como coerente decorrência da visão de mundo que cada um deles
esposa. Ricardo Reis -que intensificou e tornou "artisticamente
ortodoxo o paganismo descoberto por Alberto Caeiro"- escreve com o
distanciamento e a objetividade de um clássico, sendo ao mesmo tempo
moderno na exploração consciente da linguagem como matéria semântica
e sensorial:
"O rastro que das ervas moles
Ergue o pé findo, o eco que /oco coa,
A sombra que se adumbra,
O branco que a nau larga -
Nem maior nem melhor deixa a /alma às almas,
O ido aos indos. A lembrança /esquece.
Mortos ainda morremos.
Lídia, somos só nossos".
Já Álvaro de Campos não tem nem a
tranquilidade saudável de Caeiro nem a indiferença olímpica de Reis:
ele é sôfrego, ávido e passional. O que mais pesa nele é a
sensorialidade, mesmo a sensualidade, o corpo. Se não se ilude
quanto à inutilidade de tudo, tampouco se nega à força da realidade
que lhe faz vibrar os nervos:
"E há uma sinfonia de sensações
/incompatíveis e análogas.
Há uma orquestração no meu
/sangue de balbúrdia de crimes.
De estrépitos espasmados de
/orgias de sangue nos mares.
Furibundamente, como um
/vendaval de calor pelo espírito
Nuvem de poeira quente
/anuviando a minha lucidez
E fazendo-me ver e sonhar isto
/tudo só com a pele e as veias!".
Como Pessoa, ele não tolera as
verdades definitivas:
"A razão de haver ser, de haver
/seres, de haver tudo,
Deve trazer uma loucura maior
/que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas!
Não, não, a verdade não!''.
E nada de conclusões:
``A única conclusão é morrer".
E por ser tão preso aos sentidos, ao corpo, é natural que nele se
manifeste o lado feminino de Pessoa, que Pessoa, por temor, reprime:
"Os braços de todos os atletas
/apertaram-me subitamente
/feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei
/entre músculos supostos
Foram dados na minha boca os
/beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os
/lenços de todas as despedidas
Todos os chamamentos obscenos
/de gestos e olhares
Batem em cheio em todo o corpo
/com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os
/postos-de-parte, todos os como
/que esquecidos, E todos os pederastas
/-absolutamente todos (sem /faltar nenhum)
Rendez-vous a vermelho e negro
/no fundo-inferno da minha alma!
(Freddie, eu chamava-te Baby,
/porque tu eras louro, branco e
/eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar
/e princesas destronadas tu
/foste para mim!)''.
Esse dado talvez faça de Álvaro de Campos um heterônimo mais perto
de Pessoa que os outros, mais perto da pessoa de Pessoa. Mesmo
porque, como o cidadão Fernando Pessoa -ao contrário de Caeiro e
Ricardo Reis-, Álvaro de Campos é citadino, urbano, metropolitano,
contemporâneo das usinas e da luz elétrica:
"A dolorosa luz das grandes
/lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera
/para a beleza disto.
Para a beleza disto totalmente
/desconhecida dos antigos".
Por isso, estilisticamente, ele é
"moderno", "futurista", entusiasmado com as novidades da civilização
industrial, como um discípulo de Marinetti, que introduz na
linguagem poética as palavras desse admirável mundo novo. Louva o
cheiro fresco da tinta de tipografia, os cartazes colados há pouco,
ainda molhados, os ``vients-de-paraître'' amarelos com uma cinta
branca, a telegrafia sem fio, os túneis, o canal do Pananá, o canal
de Suez... Álvaro de Campos guia automóvel e faz disso matéria de
poema. Nem Caeiro nem Reis seriam capazes de semelhante proeza.
Voltemos à questão do relacionamento
de Fernando Pessoa com seus heterônimos. Se esse relacionamento não
é o mesmo que o dramaturgo mantém com seus personagens — e estou
convencido de que não é —, o surgimento dos heterônimos não foi
motivado pela necessidade (própria dos dramaturgos) de dar carne e
realidade a personagens e situações. De fato, eles apareceram numa
espécie de manifestação mediúnica, conforme conta o próprio poeta:
"Médium, assim, de mim mesmo todavia
subsisto. Sou, porém, menos real que os outros, menos coeso (?),
menos pessoal, eminentemente influenciável por eles todos. Sou
também discípulo de Caeiro, e ainda me lembro do dia —l3 de março de
1914—, quando, tendo 'ouvido pela primeira vez' (isto é, tendo
acabado de escrever, de um só hausto do espírito) grande número dos
primeiros poemas do 'Guardador de Rebanhos', imediatamente escrevi,
a fio, os seis poemas-intersecções que compõem a 'Chuva Oblíqua'
('Orpheu 2'), manifesto e lógico resultado da influência de Caeiro
sobre o temperamento de Fernando Pessoa".
Mesma alma e mesmo corpo
Por não terem nascido de situações
dramáticas, alheias à vida do autor ou tomadas objetivamente como
tais, como a maioria das criações dramatúrgicas, os heterônimos não
se desligam de Fernando Pessoa, já que é nele, e não em alguma peça
teatral, que eles existem. Não é próprio da criação teatral esse
coabitar dos personagens com o autor na mesma alma e no mesmo corpo,
senão durante a concepção da peça. Escrita a peça, os personagens
—esses fantasmas— abandonam o autor e se transferem para o texto
escrito. O autor, por assim dizer, realiza desse modo um exorcismo:
livra-se deles.
Os heterônimos, no entanto, jamais
abandonam Pessoa, jamais se transferem para seus poemas que, por não
serem peças teatrais, não os cabem, não têm neles suas situações de
vida. Noutras palavras: os poemas são obras escritas pelos
heterônimos e não o lugar em que transcorre sua vida. Eles não
habitam os poemas, porque ninguém habita poemas. Eles habitam
Fernando Pessoa. Convivem com eles, discutem com ele, misturam sua
voz à dele, o influenciam. São portanto parte de Fernando Pessoa e
compõem a sua personalidade contraditória e multiforme. Que Pessoa
projeta e realiza neles tendências e qualidades pessoais está dito
na carta de 13 de janeiro de 1935 a Adolfo Casais Monteiro. Pessoa
escreve: "E contudo —penso-o com tristeza— pus no Caeiro todo o meu
poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a
minha disciplina mental, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que
não dou nem a mim nem à vida".
Ocultismo e visão olímpica
Nada nos autoriza, porém, a afirmar
que os heterônimos "são" Fernando Pessoa, uma vez que ele pensa
diferente deles1 e, em certas questões, o contrário deles. Dou como
exemplo a carta a Marinetti, datada de 1917, em que ele diz que os
sentidos só buscam "a razão física, exterior, superficial e
empírica", e não a razão metafísica, "que só se descobre pelo
pensamento puro, numa pureza inteiramente emocional", Com essas
afirmações, Pessoa nega de uma única assentada tanto a visão de
Caeiro ("pensar é não compreender") como a de Álvaro de Campos, cujo
sistema está "baseado inteiramente nas sensações".
A adesão de Pessoa ao ocultismo
contradiz inteiramente a visão olímpica de Ricardo Reis, como também
a de Álvaro de Campos —voltado para o dinamismo da vida moderna— e a
de Caeiro, para quem "o único sentido íntimo das coisas/ é elas não
terem sentido íntimo nenhum". Outras tantas divergências entre
Pessoa e seus heterônimos estão nas suas respectivas estatisticas.
Diante dessas constatações cabe
perguntar: se os heterônimos não são expressão de situações
existenciais específicas, dramáticas; se, portanto, não expressam
visões contingentes ou geradas por situações próprias a eles (como
Macbeth ou Hamlet) e, ao mesmo tempo, não expressam a visão de
Fernando Pessoa, então por que eles os criou? Para contradizer-se?
Para, por intermédio deles, manifestar suas contradições sem ter que
assumi-las ou negá-las? Se não é por nenhuma dessas hipóteses,
talvez reste apenas uma: ele os criou por razões poéticas e não por
razões filosóficas; por razões afetivas, emocionais, e não por
razões lógicas. Criou-os para exercer as múltiplas virtualidades de
seu talento, que mal cabia numa só pessoa. E, por isso, talvez, mais
correto séria chamá-lo —desculpem o trocadilho irresistível—
Fernando Pessoas.
Ferrelra Guliar é poeta e ensaísta, autor
de "Luta Corporal" e "Poema Sujo", entre outros.
Leia a obra de Fernando
Pessoa
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