Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

 

 

Albrecht Dürer, Head of an apostle looking upward

 

Ticiano, Magdalena

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Vale or Farewell, ARTHUR HACKER (RA), (1858 - 1919)

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Bio-bibliografia


Nascido em São Luís do Maranhão, em 1930, o poeta Ferreira Gullar — no cartório, José Ribamar Ferreira — estreou em poesia em 1949 com o livro Um Pouco Acima do Chão. Em 1951 transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde começou a trabalhar como jornalista.

As experimentações gráficas contidas em seu livro A Luta Corporal (1954) motivaram sua aproximação com os poetas paulistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, que lançariam mais tarde o movimento da poesia concreta (1956). Inicialmente, Gullar participou do movimento, mas afastou-se em 1959 para criar o grupo neoconcretista.

No início dos anos 60, o poeta dedica sua poesia mais a temas sociais e ao engajamento político. Como frutos dessa virada, ele escreve os poemas de cordel João Boa-Morte, Cabra Marcado para Morrer e Quem Matou Aparecida?. Em 1964, ele filia-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1971, com o recrudescimento da ditadura militar, partiu para o exílio (Rússia, Chile e Argentina), de onde retornou em 1977. Na Argentina, Ferreira Gullar escreveu o Poema Sujo, livro lançado em 1976, com o poeta ainda no exílio.

Na opinião de alguns críticos, Ferreira Gullar é atualmente uma das vozes mais expressivas da poesia brasileira. Um traço forte da obra desse maranhense-carioca é a alta taxa de vida imediata que se pode encontrar em seus versos. E, claro, não me refiro ao trabalho mais marcadamente engajado. Falo de poemas como "Meu Pai" e, a rigor, de toda a seleção apresentada aqui.

As modulações variam. Vão desde a suavidade nostálgica e ingênua de "Cantiga para não Morrer" até as reflexões maduras contidas em "Aprendizado" e em "Os Mortos". No conhecido poema "Traduzir-se", o poeta se define: "Uma parte de mim / é só vertigem: / outra parte, / linguagem."

No caso de Ferreira Gullar, a linguagem vai além do horizonte das palavras, pois o poeta é também crítico de arte e pinta quadros, faz desenhos e colagens. É o que ele chama de seu "lado B". Alguns de seus trabalhos nessa área podem ser vistos em seu site oficial: http://portalliteral.terra.com.br/ferreira_gullar/

Fonte: Poesia.net

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Da Vinci, La Scapigliata, detail

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Meu pai

 

meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem

quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro


De Muitas Vozes (1999)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Michelangelo, 1475-1564, Teto da Capela Sistina, detalhe

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.


De Dentro da Noite Veloz (1962-1975)
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Poussin, The Triumph of Neptune

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Aprendizado

 

Do mesmo modo que te abriste à alegria
           abre-te agora ao sofrimento
           que é fruto dela
           e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
           que da alegria foste
                                    ao fundo
           e te perdeste nela
                                    e te achaste
                                    nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
                                    e em tua carne vaporize
                                    toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.

                

De Barulhos (1980-1987)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Delaroche, Hemiciclo da Escola de Belas Artes

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Os mortos


os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
       certas sinfonias
                 algum bater de portas,
       ventanias

           Ausentes
           de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
           se de fato
           quando vivos
           acharam a mesma graça

                

De Muitas Vozes (1999)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jean Léon Gérôme (French, 1824-1904) - Phryne before the Areopagus

 

 

 

 

 

Ferreira Gullar


 

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


De Na Vertigem do Dia (1975-1980)
 

 

 

 

 

 

27/12/2005