Hildeberto Barbosa Filho
O Universo da terra e da origem
Diga-se, por hipótese, que os poemas
de José Inácio Vieira de Melo ensaiam, nesta coletânea, os estranhos
passos de uma romaria lírica ao topos sagrado de si mesmo e, por
extensão, aos arredores de uma geografia rural, talvez perdida no
plano das experiências reais, porém preservada nas teclas
invioláveis da memória poética.
Quer em Olho d´Água e em Ribeira do
Traipu, quer em Maturi e em Cerca de Pedra, partes em que se
subdivide este A Terceira Romaria, parece que as fontes naturais do
metabolismo estético e criador tendem a preponderar sobre os dados
livrescos e eminentemente literários, responsáveis, nem sempre de
maneira afortunada, por algumas vertentes formais e estilísticas da
poesia contemporânea.
Destas fontes naturais, gostaria de
destacar a componente telúrica e seus signos adjacentes, enquanto
energia propulsora de uma concepção poética atenta aos ingredientes
palpáveis da existência. Disto resulta uma singular fenomenologia
que posso compreender como uma fisicalidade que transcende a
espessura tangível dos elementos para culminar nos apelos sugestivos
do estranhamento estético. O processo ocorre tanto na via
especulativa de Olho d´Água e na topografia lírica de Ribeira do
Traipu quanto nos interstícios eróticos de Maturi e no minimalismo
subjetivo e memorial de Cerca de Pedra.
A profissão de fé de “Dois momentos”,
em seu giro metalingüístico, portanto de ordem reflexiva e quase
conceitual, não elide a intromissão de um dado concreto através do
símile inusitado ("Entro no poema como quem come cuscuz/ e sai dia
afora para encarar a existência"). Feita também da carne ardente e
viva das coisas, a poesia "lava os pés e as lágrimas".
No texto “Ciço Cerqueiro”, a precisa
transmutação do eu poético assimila a singularidade de um olhar e a
idiossincrasia de um tipo, por meio de uma empatia aperceptiva bem
peculiar a poetas em fase de maturação. Quem fala é o outro cuja voz
é liberada e ao mesmo tempo refundida na captação estilística da
oralidade e na surpreendente estesia do termo "coalhada", funcional
e evocativo na economia do texto. Tenho de transcrevê-lo na íntegra:
O meu é fazer cerca:
cavar buraco, aprumar mourão,
esticar arame com pé de cabra,
apregar grampo nas estacas.
Em troca peço pouco:
basta me dar leite azedo,
rapadura, farinha e uma hora
de sombra de pé de pau.
Precisa nada mais não!
Me dê coalhada todo dia
que eu cerco o mundo
pros bichos não se perderem.
A mesma inserção da coisa concreta ou
do objeto característico se repete, pela incidência da simbologia
cultural, geográfica e antropológica, num poema como “Bodas de
Sangue”, em que pesem as explícitas alusões intertextuais. Veja-se a
última estrofe no seu tom lúdico, paródico e dramático:
Ah Cristina Hoyos, deusa de Espanha,
vem bailando em nuvens e em versos de Garcia Lorca,
vem com teus punhais para a minha peixeira de 12 polegadas,
pois as nossas bodas só podem ser de sangue.
Finalmente, de Cerca de Pedra, última
seção do livro, destaco o poema “Glória”, sempre nesta perspectiva
do concreto, do que é vivo e respira e sangra em detrimento do que
exorbita da mera leitura, embora esta também possa ser entendida
como experiência de vida. Leiamos o texto:
Nem cerca de dez fios segura a cabra.
A cabra não aceita doma nem redoma,
ela sobe a pedra, vai para o alto,
ela quer sempre a montanha.
A cabra – canindé ou humana –
busca o pedestal, o pódio.
Nada há de artificial nesta composição
poética. Sua fonte – fonte natural – reside no olhar ou na
capacidade de saber ver, ver e transfigurar, virtualidade intrínseca
ao autêntico criador como tantas vezes lembra Lêdo Ivo, em
Confissões de um poeta.
Juntando a este momento de sua
trajetória poética poemas dos livros anteriores – Códigos do
Silêncio (2000) e Decifração de Abismos (2002) –, José Inácio Vieira
de Melo intenta como que rever também a perdurabilidade dos seus
versos. A comparar A Terceira Romaria com os títulos de ontem, diria
que o poeta apura a técnica de nomear e torna mais contido o
discurso expressivo, sem que esta contensão venha dirimir a
inventividade de certas imagens.
A continuidade do ofício poético tende
a revelar, e revelar para conforto dos que acreditam, que a poesia
tem um pacto inadiável com a vida, que a consciência perante a
sedução dos vocábulos não deve ocultar a força das pulsões vitais.
Sua poesia, sendo um fazer lingüístico e naturalmente
metalingüístico, pressupõe, enquanto energia seminal, os conteúdos
imprescindíveis do dizer. Possui uma forma, mas não se esgota no
mero formalismo, na medida em que também possui um universo. O
universo memorial da terra e da origem.
Hildeberto Barbosa filho é poeta e crítico
literário paraibano, autor de Ofertório dos bens naturais (1998),
Eros no aquário (2002), Literatura na Ilha (2004), dentre outros.
Leia a obra de José
Inácio Vieira de Melo
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