Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Hilda Hilst


 

Pôr-do-sol em Campinas
 

 

Diário do Nordeste, Fortaleza, Ceará, Brasil

 

 

A escritora paulista Hilda Hilst morreu na madrugada de ontem, aos 73 anos, em Campinas (interior de São Paulo). Internada desde o início de janeiro no Hospital das Clínicas da Unicamp, a escritora teve falência múltilpla de órgãos e sistemas. Hilda foi sepultada ontem à tarde, no Cemitério Aléias, em frente à capela. Mas não se engane: Hilda Hilst tinha uma concepção bem pessoal da natureza divina.

Hilda Hilst vivia há décadas na Casa do Sol, um sítio próximo a Valinhos. Nos últimos anos, contava com a amizade do escritor José Mora Fuentes, com quem compartilhava a companhia de dezenas de cães e de seus encantamentos. Há 35 dias, ela estava internada no Hospital das Clínicas, de Campinas, depois de uma cirurgia para corrigir uma fratura no fêmur, decorrente de uma queda. A escritora não reagiu à sua deficiência crônica cardíaca e pulmonar.

Em maio do ano passado a escritora concedeu uma longa entrevista ao Caderno 3, via e-mail, motivada pelo relançamento de sua obra pela Editora Globo, fato que possibilitou a chegada de novos leitores. Hilda havia completado 73 anos duas semanas antes. A edição fora complementada por um artigo da acadêmica Fernanda Meireles, estudiosa da obra da poetisa, ficcionista e dramaturga paulista. Republicamos o texto nesta edição.

Na ocasião, a poeta, dramaturga e escritora, dona de uma obra que subverte os gêneros literários, com uma densidade dramática raras vezes experimentada pela Língua Portuguesa, mostrava que continuava inteligente, gentil, mas também ríspida e irônica, sem deixar de preocupar-se com a natureza animal e espiritual do homem. Independente e uma das mulheres mais belas de sua geração, Hilda viveu quase tudo o que uma mulher deveria ou desejaria viver, sem esquivar-se dos pensamentos do seu tempo.

Seus escritos causaram repercussão e polêmica. Sua célebre “trilogia obscena” data de 1990 e 1991: “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, “Contos d´escárnio - textos grotescos” e “Cartas de um Sedutor”. Em tais evangelhos transgressores, conhecemos alguns dos extremos das vicissitudes humanas.

Autora de 41 livros, Hilda Hilst nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, no dia 21 de abril de 1930, dia de Tiradentes, mas morava em uma chácara entre Campinas e Valinhos. Era a única filha do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst e de Bedecilda Vaz Cardoso. Com pouco tempo de vida, seus pais se separaram, o que motivou sua mudança, com a mãe, para a Santos. Seu pai, que sofria de esquizofrenia, foi internado num sanatório em Campinas, aos 35 anos de idade. Até sua morte passou longos períodos em sanatórios.

Hilda foi para o colégio interno Santa Marcelina, na cidade de São Paulo, em 1937, onde estudou por oito anos. No ano de 1945, matricula-se no curso clássico da Escola Mackenzie, também naquela cidade. Morava, nessa época, num apartamento na Alameda Santos, com uma governanta de nome Marta. Em 1946, pela primeira vez, visitou o pai em sua fazenda em sua cidade natal, Jaú. Em apenas três dias, no pouco tempo que passou com ele, perturbou-se com sua loucura, como revelou em “Carta ao Pai”.

Aconselhada pela mãe, vai para a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em 48. A partir de então, levaria uma vida boêmia e rica em conhecimentos pessoais. Moça de rara beleza, Hilda escandalizava a alta sociedade paulista, enquanto despertava paixões avassaladoras.

Em 1949, é escolhida para saudar, entre os alunos de Direito, a escritora Lygia Fagundes Telles, sua colega na Faculdade, por ocasião do lançamento de “O Cacto Vermelho”. Tornaram-se amigas por toda a vida. Hilda lança, seus primeiros livros: “Presságio” (1950), e “Balada de Alzira” (1951). Conclui o curso de Direito em 1952. E começa a advogar uma obra que causou furor em todo o mundo literário, além de escândalo entre o mundinho dos mais incautos.

Nos anos 60, Hilda passa a morar na Fazenda São José, a 11 quilômetros de Campinas, de propriedade de sua mãe. Abre mão da intensa vida social para se dedicar exclusivamente à literatura. Uma mudança influenciada pela leitura de “Carta a El Greco”, do escritor grego Nikos Kazantzakis. Entre outras teses, ele defende a necessidade do isolamento do mundo em nome do conhecimento pessoal. Hilda ergue, então, a Casa do Sol, onde passa a viver com o escultor Dante Casarini, em 1966, quando morre seu pai. Em 67, redige “A Possessa” e “O Rato no Muro”, iniciando uma série de oito peças teatrais, até 1969. Um teatro absurdamente pouco visto em cena.

Baseando-se nos experimentos do pesquisador sueco Friedrich Juergenson, relatados no livro “Telefone para o além”, Hilda Hilst iria se dedicar à gravação, através de ondas radiofônicas, de vozes que seriam de pessoas mortas. No mesmo período, anunciou a visita de discos voadores à Casa do Sol.

Com “O caderno rosa de Lori Lamby”, livro que consagra sua fase pornográfica, iniciada em “A obscena senhora D”, em 1990, a escritora anuncia o “adeus à literatura séria”. Justifica essa medida como uma tentativa de vender mais e assim conquistar o reconhecimento do público. O “espanto e indignação” prossegue em “Contos d´escárnio / Textos grotescos e Alcoólicos” e em “Cartas de um sedutor” . Em meados dos anos 90, com o mesmo furor, Hilda escreve crônicas semanais no Correio Popular, jornal de Campinas, material que seria reunido, alguns anos depois, em “Cascos e Carícias”. Nesse período, sofre uma isquemia cerebral.

Em seu auto-exílio na Casa do Sol, entre suas dezenas de cães e a companhia de Mora Fuentes e algumas visitas esporádicas, Hilda alinhavou seu diário, que foi entregue à Unicamp. “São mais cadernetas de anotações que diários”, dizia. E refletia sobre a própria vida, muitas vezes de forma desesperançada: “Eu já escrevi tudo o que tinha a dizer. Não tenho mais vontade de escrever. Por isso a vida ficou muito chata”.

Sempre solícita e ávida, Hilda Hilst dedicou-se, intermitantemente às questões sobrenaturais: afirmava acreditar no contato dos mortos com a Terra através de mensagens enviadas via fax. Costumava referir-se ao desejo de construir em suas terras um centro de estudos da imortalidade. Muito além dos limites das academias e de todos os sóis da vida, Hilda e a imortalidade continuam caminhando juntas.
 

 

 

 

 

20.01.2005