Ivo Barroso
Flores roubadas do jardim alheio
“As Flores do Mal” – Charles Baudelaire – texto integral – Tr.
Pietro Nassetti - Editora Martin Claret (São Paulo, 2001) – 192
págs. R$19,00
Já tivemos aqui a oportunidade de mostrar como algumas obras
literárias estão sendo criminosamente “apropriadas” por editores
inescrupulosos e reeditadas sob o nome de falsos tradutores. No caso
anterior, vimos como a tradução genial do “Cyrano de Bergerac”, de
Edmond Rostand, devida ao falecido professor pernambucano Carlos
Porto Carreiro, foi simplesmente “clonada” e atribuída a um
desconhecido Sr. Fábio M. Alberti, que já devia ficar contente se
seu nome aparecesse como autor das notas de pé de página que figuram
na edição. Nelas há esclarecimentos sobre personagens e fatos um
tanto ou quanto incomuns, pelo menos para a classe de leitores
desses livros ditos “populares”, vendidos em bancas de jornal.
Apressamo-nos em esclarecer que nada temos conta esse tipo de venda
e achamos mesmo que se trata de um serviço prestado ao leitor médio,
que pode assim adquirir livros de grandes autores a preços
inegavelmente convidativos. O que não nos parece ético é o
escamoteio e a usurpação do nome dos tradutores originais desses
livros, seja pela prática da sua atribuição a outrem, seja pelo
artifício vergonhoso do plágio disfarçado.
Nessa última categoria podemos incluir, consistentemente, a edição
de “As Flores do Mal”, o clássico livro de poemas de Charles
Baudelaire, lançada “no verão de 2001” pela Martin Claret, de S.
Paulo, em tradução ali atribuída a Pietro Nassetti, que, não se
tratando de um pseudônimo de Jamil Almansur Haddad, responde
certamente pelo nome de seu plagiário indecoroso, tal a maneira
inequívoca com que se apropria da obra alheia.
É sabido que temos no Brasil pelo menos duas edições integrais de
“As Flores do Mal”. A mais conhecida e, a nosso ver, a mais bem
realizada, a de Ivan Junqueira, foi editada pela Nova Fronteira,
sendo de 1985 a última reimpressão, com o texto original de face à
tradução. Foi essa a escolhida para figurar no volume “Charles
Baudelaire – Poesia e Prosa”, que organizamos para a Editora Nova
Aguilar e que foi editado em 1995, em papel bíblia, reunindo em
português praticamente toda a obra do Poeta. A outra, mais antiga,
de 1958, editada pela Difusão Européia do Livro na coleção Clássicos
Garnier, é de Jamil Almansur Haddad, poeta paulista, autor de “A lua
do remorso” (1951), que além de Baudelaire traduziu também “As
Líricas”, de Safo, “O Cântico dos cânticos”, de Salomão, o “Rubaiyat”,
de Omar Khayyam, o “Cancioneiro” de Petrarca, o “Decamerão” de
Boccaccio e as “Odes” de Anacreonte. O leitor, ainda que não versado
no assunto, pode bem imaginar o que representa de tempo e esforço a
tarefa de traduzir poesia, principalmente no caso de um autor como
Haddad que respeita a métrica e a rima existentes no original. Mas
hoje parece estar se generalizando a prática certamente recriminável
de se tomar um texto preexistente e maquiá-lo, mudando aqui uma
palavra mais difícil, ali uma construção mais arrevesada, e,
passando por cima dos ditames métricos e rímicos, apresentá-lo ao
leitor numa “nova” edição popular, supostamente feita por outro
tradutor.
No presente caso a contrafação é tão explícita que chega a ser
vergonhosa. Tomemos por exemplo o poema “Hino à Beleza”, dos mais
característicos do estilo baudelairiano, com seus termos específicos
e construções originais. As três primeiras quadras são iguais, ipsis
litteris, coincidência que seria impossível de obter-se mesmo no
caso de uma prova de tradução à qual se habilitassem centenas de
candidatos. “Infernal et divin” é traduzido por ambos como
“celestial e daninho”; “le couchant et l´aurore” por “matutina e
noturna” e o verso “Qui font le héros lâche et l´enfant courageux” é
impressionantemente resolvido da mesma forma: “Se à criança dão
valor, tornam o herói covarde”. E naquele que encerra o terceiro
quarteto: “Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien” – o copiador
chegou a incidir no mesmo erro de interpretação do seu modelo,
traduzindo “réponds” por “respondes”, quando a construção francesa
“réponds de rien” equivale a “submeter-se a nada”. “Bénissons ce
flambeau!” é “Bendito lampadário” em ambos e “tombeau” (túmulo) é
transformado também por ambos em “sudário”. Há momentos, no entanto,
em que o copiador servil resolve “melhorar” (como talvez pense) o
texto saqueado. Em geral isso ocorre diante de palavras que ele
julga “difíceis” ou pouco atuais. Assim, onde Jamil escreveu “O
amoroso anelante a pender sobre a bela”, o tradutor-xerox reescreve:
“O namorado ofegante a pender sobre a bela”, não se importando com
isso de sacrificar a métrica do verso. Neste mesmo poema há inúmeros
exemplos dessa espécie: “Pisando mortos vais, com ar de desacato”
(Jamil) e “Caminhas sobre os mortos, com ar de desacato” ( pseudo
tradutor). O “papel carbono” parece ter achado que o “vão”
(adjetivo) de “Sobre teu ventre vão dança amorosamente” poderia ser
entendido pelos seus leitores como verbo e “conserta” para “Sobre
teu ventre orgulhoso dança amorosamente”, conseguindo o fenômeno de
um alexandrino de 14 versos. Outro: “Beleza! monstro ingênuo e de
feição adunca!” lhe soa muito precioso e ele emenda para: “Beleza!
monstro ingênuo, assustador e horrendo!” Mas pasmem que temos no
início da quinta quadra o que se poderia chamar de dupla
coincidência: No verso “Uma efêmera vai ao teu encontro, ó vela”,
tanto na tradução de Jamil quanto na de seu “vampiro” Pietro
Nassetti há uma nota de pé de página dizendo exatamente o mesmo:
“Efêmera: substantivo comum, espécie de inseto”, que, se não fosse
cópia servil seria um caso de duplicidade até na indigência
definidora. Estender a amostragem seria recair ad infinitum na
certeza que desde já se patenteia de que os poemas apresentados
nesta edição de “As Flores do mal” foram subtraídos do berço alheio
e criados por pais adotivos em proveito próprio.
Essa prática inescrupulosa da apropriação de traduções alheias –
pela cópia deslavada ou enganosa maquiagem – parece estar se
ampliando junto a editores de livros em série ou coleções ditas
populares. Há muitos títulos de obras clássicas que circulam por aí
que, se examinados com cuidado, revelariam – como um triste
palimpsesto – o nome apagado e explorado do tradutor original.
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