Ivo Barroso
Olhos de lince
[Mais! 09.01.2005]
Com grande elaboração estilística,
o romance "O Fotógrafo", de Cristovão Tezza, desenvolve uma trama
envolvente e minimalista que se passa em apenas um dia nas ruas de
Curitiba
O mercado editorial parece viver de
filões. Alguém acerta uma fórmula e logo aparecem imitadores para
"criar" dezenas de outros volumes que, no fundo, são a mesma coisa,
mas, curiosamente, continuam atraindo a atenção dos leitores, até
chegar finalmente à exaustão, que será sucedida por um novo "você já
leu?". Atualmente estão em moda as narrativas pretensamente
eruditas, de enredos intrincados, em que a técnica do suspense é
utilizada para transmitir ao leitor a falsa idéia de um banho
cultural: a formação é enganosamente substituída pela informação.
Como o consumidor de best-sellers, em geral, não está comprometido
com o ingrediente básico da leitura -que é o estilo-, essas
histórias prosperam e açambarcam alguns esforços realmente legítimos
de fazer da literatura um enriquecimento do homem e de sua
capacidade de comunicar-se por meio de um manejo eficiente do
idioma.
Diante de um texto tão bem
escrito, pode-se estranhar o uso abusivo do palavrão
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Daí a dificuldade, e mesmo o receio,
que se tem ao falar sobre um livro bem escrito e rico de
entendimento humano, pois em vez de arregimentar leitores para a
obra em questão, talvez com tais observações se chegue mesmo a dela
afastar esse leitor acostumado ao lugar-comum das escritas anódinas.
Minimalismo
Mas, mesmo correndo o risco, seria um
caso de omissão deixar ao largo este "O Fotógrafo", com que
Cristóvão Tezza, depois de um silêncio de oito anos, volta à
presença de seu privado círculo de leitores. Um livro quase
minimalista pela leveza da trama, mas cuidadosamente trabalhado na
maneira de apresentá-la ao leitor, valendo-se de uma escrita
irrepreensível, sem deixar de ser provocantemente moderna.
Um fotógrafo de jornal que recebe a
incumbência de flagrar uma jovem sem que esta o veja, recebendo US$
200 por filme não revelado que entregar ao cliente; a mulher do dito
fotógrafo está na iminência de ter um caso com o professor dela; a
mulher do professor, que é analista da jovem que será flagrada -eis
o círculo restrito em que se movem esses poucos personagens, num
único dia de suas vidas, sem maiores acontecimentos que algumas
andanças pelas ruas de Curitiba até o cair da noite, quando as
janelas se acendem ou se apagam.
Mas a qualidade estilística de Tezza
empresta a esse minúsculo envoltório de ação um efeito
multiplicativo graças ao poder que concede ao leitor de acompanhar a
elétrica, envolvente e divergente ação do pensamento de cada um de
seus personagens. E Tezza o faz de um modo já em si peculiar: o
narrador (ele) se transforma ato contínuo no personagem (eu), de
modo que a leitura abrange, ao mesmo tempo, duas visões: a do ato no
momento em que ocorre e a das intenções que o suscitam ou o
acompanham.
Esse exercício frenético de
relâmpagos, recuos e retomadas -o de perseguir a dinâmica do
pensamento, que se sobrepõe à própria ação- funciona como paleta
para a caracterização dos personagens, registrando suas emoções,
reações, deduções e expectativas. E vão fundo quando revelam a
permanente e dolorosa solidão do indivíduo mesmo no exercício de seu
convívio social.
Um pano de fundo em que se projetam
temas da atualidade (eleições, falência do casamento institucional,
sexo, drogas etc.) faz com que se sobressaiam esses poucos
personagens enquanto remoem seus pequenos dramas cotidianos (a
insatisfação, o desajuste, o desgaste familiar, a preocupação com os
filhos).
Tezza, numa linguagem sempre tensa e
sempre correta (ele é um dos poucos escritores atuais, como Mário
Pontes, Antônio Fernando Borges, Jair Ferreira dos Santos e Carlos
Trigueiro, que sabem escrever) acerta de quando em quando o leitor
com pedras de toque (ou as frases lapidares de antigamente) que
enriquecem a ficção com a substância de pensamentos ou observações.
E o livro se desenvolve na expectativa
de acontecimentos cuja superveniência deixa de ter importância para
o leitor, diante da elaborada teia de cogitações em torno de suas
possibilidades. Repassada de preocupação com a incomunicabilidade do
indivíduo e a pequenez da existência, a frase enxuta, mas sempre bem
delineada de Tezza, alcança momentos de altíssima voltagem, como na
antológica descrição (pág. 88) do carregador de papéis trazendo o
filho no alto da carroça.
Diante de um texto assim tão bem
escrito, pode-se estranhar o abusivo recurso ao palavrão, à sua
reiteração obstinada e mesmo ao seu comprazimento nele, o que quase
desfigura em alguns pontos o livro, já que equaliza totalmente a
linguagem dos personagens. Quando Graciliano Ramos disse um famoso
palavrão em "Angústia" (1936), a força da narrativa explodiu pela
necessidade absoluta de dizê-lo. Mas usá-lo quase como uma espécie
de pontuação, gratuitamente, inflacionariamente, só parece engrossar
a frase que se mantinha tão bem dosada, ao mesmo tempo em que dilui
por antítese o teor das palavras.
Não creio que o autor o faça apenas
para parecer moderninho, como muitos dos nossos escritores atuais
que aderiram ao uso indiscriminado do pronome "lhe". Creio que Tezza
usa o palavrão como protesto social, como meio de desconstruir a
frase e, conseqüentemente, a ordem (miserável) das coisas, de
demonstrar sua aversão às normas estabelecidas. Mas, ainda assim...
Ivo Barroso é poeta e crítico, autor de "A
Caça Virtual" (Record). Traduziu, entre outros, Arthur Rimbaud.
O Fotógrafo
224 págs., R$ 27,00 de Cristovão Tezza. Ed. Rocco (rua Rodrigo
Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2507-2000).
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