Uma leitura
interrompida
O livro é tão
bom, tão maduro e verdadeiro que estremeço e
não consigo prosseguir
|
UM FILHO, diz
Cristovão Tezza no romance mais premiado deste ano,
"é a idéia de um filho; uma mulher é a idéia de uma
mulher. Às vezes as coisas coincidem com a idéia que
fazemos delas; às vezes não".
A frase aparece
nas primeiras páginas de "O Filho Eterno" (ed.
Record), que ganhou os prêmios Jabuti, Bravo! e
Portugal Telecom de 2008. Premiações nem sempre
dizem muita coisa, mas a consagração de Cristovão
Tezza é merecidíssima.
Eu tinha
começado a ler "O Filho Eterno" há vários meses. Só
que o meu plano de escrever sobre o livro ia sendo
adiado. Tentei ler o romance três vezes. E paro
sempre no mesmo ponto, aí pela página 40. Não porque
o livro seja ruim. Ao contrário: é tão bom, tão
maduro e verdadeiro que estremeço e não consigo
prosseguir.
"Um filho é a idéia de um filho." Quem formula esse
pensamento é o personagem principal do livro,
abertamente autobiográfico. Trata-se de um rapaz de
28 anos, que naqueles finais da década de 70 guarda
um bocado do ideário hippie. Acredita-se
predestinado à literatura, há quatro anos é
sustentado pela mulher e consegue arranjar alguns
trocados fazendo a revisão gramatical de teses
universitárias.
"Alguém
provisório", define-se; "alguém que ainda não
começou a viver". O livro começa com uma frase da
mulher: "Acho que é hoje". Ela está no último mês da
gravidez. Pai e filho, de certo modo, começarão a
viver no mesmo dia.
Na sala de
espera da maternidade, o protagonista mantém a
atitude desligada e humorística que o caracterizou
até ali. Se um filho é apenas "a idéia de um filho",
a realidade daquele momento (o futuro pai fumando na
sala de espera) também é apenas "a idéia" de um
futuro pai fumando na sala de espera. Uma cena meio
cômica, "um cartum", resume o autor.
A arte de
Cristovão Tezza se assemelha à de uma cobra que se
encolhe antes de dar o bote. O leitor simpatiza com
esse pai cuca-fresca e reconhece a sua sensação de
que, em qualquer acontecimento importante da vida,
existe algo de engraçado e irreal. É como se
participássemos de um roteiro repleto de
lugares-comuns, como se a idéia pré-fabricada que
temos das coisas tirasse delas o seu significado
mais profundo.
Quem lê
compartilha esse olhar humorístico, de "cartunista",
do narrador. Mas logo se percebe uma diferença entre
o "modo de ver" e o "modo de falar" empregado nas
primeiras páginas do livro. As cenas e pensamentos
são delineadas com leveza, como se feitas a lápis;
mas a elocução, a sintaxe, a ordem das frases, é
compactada e densa.
O narrador
cochila no sofá. O recém-nascido chega: um
"pacotinho suspirante". A mãe "vê o filho ser
depositado diante dela ao modo de uma oferenda, mas
ninguém sorri".
Um médico dá
início à preleção.
"Observem os
olhos, que têm a prega nos cantos, a pálpebra
oblíqua... o dedo mindinho das mãos, arqueado para
dentro... achatamento da parte posterior do
crânio..."
O pai, que pouco tempo antes fizera a revisão de uma
tese sobre síndrome de Down, entende na hora do que
se trata. Mas como entender? "Ele recusava-se a ir
adiante na linha do tempo; lutava por permanecer no
segundo anterior à revelação, como um boi cabeceando
no espaço estreito da fila do matadouro; recusava-se
mesmo a olhar para a cama, onde todos se
concentravam num silêncio bruto, o pasmo de uma
maldição inesperada."
Copiando este
trecho, vejo que talvez tenha sido uma atitude
semelhante a que me impediu de continuar o livro.
Leio e releio essas páginas iniciais. Depois, digo
para mim mesmo, eu continuo.
Enquanto isso,
descubro novas belezas em "O Filho Eterno". Por
exemplo. Antes da revelação terrível, o pai brinca
com os parentes, que lhe perguntam com quem se
parece o recém-nascido. Ele o vira apenas através
dos vidros do berçário.
Repete a piada
clássica: o filho parece um joelho. Pensa também, ao
ver tantos bebês juntos: "Somos de fato todos
irmãos, tão parecidos uns com os outros!"
Nem todos.
Antes ainda,
enquanto transcorria o parto, o protagonista se
lembra (é muito distraído) de avisar a família.
Compra umas
fichas de telefone. Na calçada, fora do hospital, há
uma fileira de telefones públicos, "um deles com o
fone arrancado e um patético fio solto".
Uma ligação eterna se fará, sabemos, entre pai e
filho. Mas interrompo a leitura, e este artigo
também.
coelhofsp@uol.com.br
|