A obra máxima de Otto Maria Carpeaux, a
monumental História da Literatura Ocidental,
acaba de ser entregue ao público em 3ª edição,
realizada pelas Edições do Senado Federal, agora
em quatro alentados volumes totalizando 3.025
páginas. Embora seja este o 107º título do
catálogo daquela editora, em geral centrado na
historiografia brasílica - exceção feita apenas
das crônicas que Machado de Assis escreveu
precisamente sobre o antigo Senado - esta
edição, de caráter eminentemente literário, se
deveu a um encontro de circunstâncias que, ao
mesmo tempo, pode resultar em maior amplitude
para os horizontes culturais da coleção.
Os livros de Carpeaux, cujas reedições se
impunham desde muito por se tratarem de um dos
mais elevados conjuntos de análises literárias
das letras brasileiras - e, talvez por isso
encarados com descaso pelos órgãos oficiais de
divulgação -- começaram a ser resgatados a
partir de 1999, quando a Topbooks, com a
UniverCidade, lançou o primeiro volume dos
Ensaios Reunidos, que abrangia os livros
publicados em vida do autor, no período de 1942
a 1978. Seguiu-se-lhe em 2005, o segundo volume
de ensaios, que recolhia artigos jornalísticos,
prefácios e introduções, produzidos entre os
anos 1946 e 1971. A Topbooks informava, em seu
primeiro tomo, seu projeto de publicar mais 4
coleções de artigos (Ensaios Reunidos III, Obras
Históricas Breves, Escritos Políticos
Brasileiros, Escritos Políticos Estrangeiros),
que precederiam a esperada reedição daquela que,
na unanimidade do censo crítico nacional,
representa não só o auge da produção carpociana,
mas igualmente a obra-prima da historiografia
crítica-literária de qualquer língua viva: a
História da Literatura Ocidental. Eis que agora,
coadjuvando esse empreendimento editorial de
grande alcance, e antecipando-se àquela
publicação, as Edições do Senado Federal trazem
ao público essa obra desde muito esgotada e que
tanto vinha servindo aos nossos resenhistas como
passaporte para o brilho de suas citações.
Diferentemente das obras do gênero, a história
literária de Carpeaux não se limita a arrolar os
nomes significativos de um período literário ou
da literatura de um determinado país ou língua,
com resumos biobibliográficos de seus vultos
notáveis, eventualmente acompanhados de pequena
antologia. Trata-se aqui de uma visão de
conjunto de todas as literaturas ocidentais,
analisadas num continuum em que os
desdobramentos cronológicos se mostram
embrechados de componentes sociológicos,
econômicos, políticos, religiosos, etc., daí
resultando um panorama em que se busca antes
compreender do que explicar os fenômenos humanos
e sociais, não no intuito de identificar suas
causas, mas antes os propósitos e alcances que
as determinam. As análises propriamente
literárias são precedidas, em cada capítulo, de
um estudo sobre a época ou civilização em que
ocorreu o fato, permitindo ao leitor apreciar
desde seus indícios ao seu apogeu, bem como as
ramificações e desmembramentos de uma eventual
sobrevida em outros estágios históricos e/ou
artísticos. As análises não contemplam apenas os
aspectos triviais da vida dos autores, mas
ajudam a compreender como e por que suas obras
foram geradas e os reflexos que porventura
tiveram sobre outras épocas e regiões. A
bibliografia arrola as obras fundamentais
publicadas sobre os autores até a época,
competindo às futuras edições atualizá-la com
dados posteriores que tenham acrescentado ou
lançado novos enfoques sobre os temas. Estranha,
porém, que haja alguns que ainda leiam esses
estudos-críticos abrangentes como se fossem
simples baedeker para conhecimentos apressados
ou, fragmentariamente, como se tratasse apenas
de um repositório de dados biográficos. Este é
um livro que deve ser lido por inteiro, como uma
sucessão de sagas em que intercedem milhares de
personagens implicados nos fenômenos da criação
literária. Muitos que luziram em sua época e são
hoje inteiramente desconhecidos, e muitos outros
que, analisados com o rigor crítico de um
scholar como Carpeaux, nem sempre corresponderão
às idéias feitas que sobre eles existiam.
Antes de tudo, um livro que hoje só poderia ser
realizado por uma equipe de especialistas e com
o auxílio da internet. Espanta-nos, pois, saber
que nasceu da pena (literalmente) de uma única
pessoa, que não dispunha nem desses meios
eletrônicos de pesquisa nem de um batalhão de
incansáveis lexicógrafos auxiliares, valendo-se
apenas do fichário de sua memória inconcebível.
Otto Maria Carpeaux, que se chamava Otto Karpfen
antes de chegar ao Brasil em 1939, fugindo de
sua Áustria natal, que sofrera a anexação
nazista, logo se impôs junto aos intelectuais
brasileiros, entre os quais fez grandes amigos,
que só lhe conseguiram arranjar de início
modestas ocupações. Foi bibliotecário e
colaborador de jornais, suplementando esses
pequenos encargos com a venda de algumas obras
raras que conseguira trazer na bagagem. Ele
acreditou que a publicação de livros lhe pudesse
garantir melhores ingressos e entregou à Casa do
Estudante do Brasil seus dois primeiros escritos
em português, A Cinza do Purgatório (1942) e
Origens e Fins (1943), mas esses ensaios, ainda
que substanciosos, estavam longe de espelhar a
extensão de sua cultura e capacidade produtiva.
Por sugestão de José Lins do Rego, pôs-se a
trabalhar por dois anos (1944-45) na composição
manuscrita das 5.000 páginas que resultaram nos
originais da História da Literatura Ocidental,
posteriormente datilografadas por sua mulher, d.
Helena, e minuciosamente revistas por ele. A
Casa do Estudante do Brasil não dispunha de
recursos para bancar a obra que, somente em
1958, começou a ser publicada pelas edições O
Cruzeiro, à época dirigidas por Herberto Salles.
As tiragens eram irregulares e o 1º tomo, devido
à má qualidade do papel, era tão volumoso -
dificultando a consulta - que teve de ser
desmembrado em dois após a publicação. Carpeaux
se queixava das inúmeras gralhas daquela edição,
facilmente imagináveis diante da profusão de
nomes e obras citados em mais de dez línguas
estrangeiras, o que deve ter infernizado a vida
dos linotipistas de então. O último volume da
edição O Cruzeiro (o VII, fisicamente o oitavo
com o desmembramento inicial) só foi publicado
em 1966, quando Carpeaux, graças ao amigo
Antônio Houaiss, já atuava como co-editor da
Grande Enciclopédia Delta-Larousse, numa posição
afinal condigna e bem remunerada. Durante muito
tempo, reviu e emendou minuciosamente a sua
História, à espera que uma segunda edição fosse
isenta de falhas. Foi quando conheceu Joaquim
Campelo Marques, enciclopedista de profissão,
que trabalhava com o lexicógrafo Aurélio Buarque
de Holanda na feitura de um dicionário. Campelo
era, também, dono de uma pequena editora (Alhambra),
que acabou por se responsabilizar pelo
lançamento da 2ª edição da História, revista e
aumentada pelo autor. Já bastante adoentado e
após uma sucessão de ataques cardíacos (ele
fumava quatro maços de cigarros por dia),
Carpeaux morreu em 1978 sem ver a reedição, que
seria publicada naquele mesmo ano. Ocupando hoje
a vice-presidência do Conselho Editorial do
Senado, Campelo encontrou ali o veículo adequado
para realizar agora esta 3ª edição com base nos
originais da sua antiga Alhambra.
Ivo Barroso, poeta, ensaísta e tradutor, é
autor, entre outros, de A Caça Virtual e Outros
Poemas