Inez Figueredo
Canção
Para
Juliana que queria ser personagem, parecia-se com uma
princesa oriental e, também, arrastava um pano encardido
atrás de si: o da dúvida.
Para Joni Mitchell e o Jazz.
– Eu sou tão constante como a
estrela nordeste./ E eu disse, constante também na escuridão onde
ela está? – Joni Mitchell cantava e seus segredos eram ouvidos
na rua torta e esquálida. Yasmin virou o rosto, lentamente, para os
fiapos do sol e nos seus olhos de sonhos tremeram os cílios. Depois
desceu a ruazinha arrastando, atras de si, o pano gasto e encardido
da impossibilidade. Parou na esquina e deslizou para dentro do bar
com seu passo lento de fêmea; finos ombros, largos quadris, cabelos
escuros dispersos na pele de princesa oriental. Dirigiu-se ao
balcão, sentou-se no banquinho magro e encarquilhado de longas
pernas e pediu algo com voz alheada. Pôs-se a chupar o canudinho
atenta à canção. Sentiu uns olhos pousados em si, como se um
louva-deus no gradil da varanda; girou o longo pescoço e, tal fina
lâmina, ele estava ali, perfurando seu vulto, retalhando-a em tiras
esparsas que iam como serpentina desenrolando-se, descolando-se de
sua memória, abrindo as portas, afastando as cadeiras de sola e as
mesas de madeira tosca do bar; dissolvendo os ruídos e abstraindo as
pessoas e as coisas; entanguindo seu grito. Joni Mitchell
sussurrava: – Se você deseja-me eu estou no bar – Sangrando,
o corpo clamava pelo seu dígito e a saliva de sua boca morna.
Fitou-lhe os olhos turvos e malignos e, agarrada às pupilas, pulou.
Mergulho fundo na escuridão da córnea imantada. Sentiu suas mãos
tateando-lhe o corpo e os nós dos dedos nos bicos dos seus seios. Da
pele, o grito afinal brotou: Ei-lo, doce cravo, a despetalar sua
rosa orvalhada, lambuzada de mel. – Oh, você está no meu sangue
como vinho sagrado/e você sabe tão amargo e você sabe tão doce –
Joni Mitchell continuava. Yasmin, arfando, arrastou o pano encardido
de volta ao quarto da dor. Era quase manhã e o sol tecia, inodoro,
inimputável, alheado e quimérico. Desmemoriado, apagava as
lembranças dos fiapos de luz. Yasmin parou na esquina e, sorrateira,
mergulhou as mãos nos bolsos esvaziando-os do objeto do furto: A
Canção.
Como num jogo infantil, acasalou cada palavra ao acaso, reordenou-as
em outra simetria. Recriou: – Porque parte de você, a que eu sou,
pulsa fora de mim, meu amor, nesta longa, longa, longa linha,
sagrado território, raro e irrisório, inútil pedaço de chão que vem
do tempo e parte para o tempo, arfando no eterno caos, no sempiterno
movimento: orgasmo /dor/orgasmo/dor. O sol, atento, tecia
brilhante e imensurável o fugaz manto da cor. Yasmin exausta,
cantou; seu canto era areia e vento sob a tenda abobadada de luz:
– O amor toca-me a alma, tortura-me o ventre e eu sou, e eu sou, e
eu sou. – Sentou-se na coxia, enrolou-se no gasto pano e
soluçou. Misturada a Joni Mitchell e ao sol.
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