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			Gerardo Mello Mourão 
    O 
			poeta em sua pedra 
 
 
			Qualquer tentativa de escrever sobre o 
			poeta e a poesia, para quem não tem aquilo que Graves Chamava de 
			"Gênio da Crítica", será sempre uma temeridade. Sobretudo para um 
			poeta, que deve sempre transpor o limiar da Musa alheia com a 
			ciência e a consciência de estar invadindo um território sagrado. O 
			mestre Agostinho Silva, profeta de nossa língua, advertia sempre que 
			só o crítico de gênio ou o poeta maior podia arriscar-se ao 
			comentário da poesia. E o primeiro texto de que dispomos no Ocidente 
			sobre o exercício da crítica, a famosa gramática grega de Dioniso da 
			Trácia, cem ou duzentos anos antes de Cristo, ensina explicitamente 
			que "a coisa mais difícil no trato com as letras é a leitura crítica 
			da poesia".  
			Mas não vou aqui fazer uma crítica da 
			poesia de Iosito Aguiar. Nem mesmo uma apresentação, ou um prefácio. 
			Nem o poeta precisa disso, nem disponho de gosto e qualificação para 
			essas funções de paraninfo. Assim é que estou apenas enviando ao 
			autor umas notas de diário sobre sua "Odes Paramirinhenses", 
			sub-título de uma rapsódia que se chama "In Illo Tempore".  
			In Illo Tempore (ekeinon ton chronon) 
			é a fórmula mágica com que a língua de São Jerônimo repetia, no 
			latim da Vulgata, o mote dos cantadores gregos para o prelúdio 
			inicial e iniciático da memória lírica das aventuras fundadoras do 
			ser humano. Eu mesmo dela me tenho valido para a ressurreição dos 
			fantasmas adormecidos na noite da memória. Os mestres da linguagem 
			sagrada, de Kerenyi a Mircea Eliade, justificam seu fascínio pela 
			expressão imemorial, espécie de santo e senha que identificará para 
			sempre os poetas de todas as línguas. In Illo Tempore é o elo que 
			une o tempo mítico ao tempo histórico, e só os poetas sabem disso.
			 
			As religiões, as seitas, as ordens de 
			cavalaria costumam guardar uma palavra sagrada, que só seus 
			iniciados conhecem e por ela se re-conhecem. Era assim desde o 
			mistério de Eleusis entre os gregos, como o peixe que os cristãos 
			primitivos pintavam na areia, a palavra sagrada dos irmãos das 
			Loggias e dos Orientes secretos, e assim por diante. Também os 
			poetas, só eles, sabem o código Órfico que situa seu cântico In Illo 
			Tempore. Ao simples fato de invocá-lo, Iosito Aguiar oferece o selo 
			e a marca de sua identidade de poeta, na viagem épico-lírica que o 
			trouxe do mundo auroral — por isto mítico — de suas origens do país 
			do Paramirim ao país do Paraná onde se situa seu refúgio no tempo 
			histórico: 
 
			O céu tinha mais estrelas Embora tudo fosse mais difícil
 Paramirim era só Arrayal
 Uma fazenda dos Ribeiros
 
 
			A memória sustenta o canto e gera a 
			saudade. E a saudade, palavra única da língua que sabemos sem ser 
			ensinados, e que se desdobra numa etimologia poliédrica, é, ao mesmo 
			tempo a saúdade, a soledade, a suidade e outros reflexos. Teixeira 
			de Pascoais, o poeta por excelência da saudade, da qual Afonso 
			Botelho foi o filósofo por excelência, situa nesta Befindlichkeit, 
			(tonalidade afetiva do coração e do espírito), a raiz do gesto 
			criador que leva o homem à poesia propriamente dita. Ela é a saúdade; 
			de saúde; o estado de plenitude do vigor e da salubridade em que se 
			encontra alguma vez o ser humano em seu degredo, e que o leva, pela 
			abundância da graça, ao desejo e à ânsia de buscar outras pessoas e 
			outros lugares com os quais possa dividir sua alegria existencial. 
			Com a dificuldade de consumar essa participação de afetos, a saúdade 
			se transforma em soledade, a tristeza da solidão, o sentimento de 
			estar só, de que não encontra as desejadas companhias, perdidas na 
			lonjura dos tempos e dos espaços.  
			E assim a saudade é a "suidade"; coisa 
			sua, circunstância sua, qualidade e medula de sua existência e de 
			seu ser.  
			O poeta sabe dito desde a primeira 
			Ode: 
 Não preciso assumir responsabilidade nenhuma
 
 
			Que não seja com minha poesia E com minhas saudades de Paramirim
 Os poetas são identificáveis
 Não podem permanecer anônimos
 Preciso de minhas saudades
 Para que os ancestrais que habitam em mim
 Nunca desapareçam
 E eu partilhe isso com todos vocês.
 
 
			A suidade do poeta, viva na memória 
			dos que fundaram o país onde aprendeu as primeiras palavras e 
			oferece a matéria-prima dos poemas que começam a fluir, desde o rio 
			da infância; El idioma y la memória de mis antepasados; quando tinha 
			apenas cinco anos.  
			Só a poesia cumpre as ânsias da 
			saudade. Nela a soledade e a suidade encontram a presença das 
			ausências desejadas e vivem entre os deuses láricos e as pessoas e 
			os afetos e os lugares de seu coração e de sua tribo. Por isto, só 
			"a poesia não está só," como diz, no belo livro que tem este nome e 
			no qual faz o resumo de suas reflexões poéticas, meu amigo Michel 
			Déguy, poeta e mestre de poesia. E adverte que o poema é feito de 
			seqüências nas quais são indivisíveis a imagem, a figura e o ritmo e 
			as fronteiras não dividem os espaços e os tempos. O poeta é aquele 
			que habita a verdade indivisível e ocupa simultaneamente o passado, 
			o presente e o futuro. Por isto, sua morada é o labirinto. E o 
			labirinto, como se sabe, só tem uma saída: a porta de entrada.
			 
			O poeta Iosito percorre o itinerário 
			do labirinto, cuja saída busca sempre na porta de entrada, na 
			infância, na memória, nas coisas, nos lugares e nas pessoas de seu 
			reino profundo, invocadas em seus próprios nomes: Elisa Boneco, 
			comadre Celina, compadre Badu, Fuá e a voz de cotovia, e a 
			sonoridade de um violão nervoso, o padre Benvindo e sua cantoria 
			latina, os mulatos e as mulatas do Alto Sertão e todas 
 "Essas histórias inesquecíveis
 De nossa Chapada Diamantina".
 
 
			O mundo não consegue dividir o poeta e 
			todos os momentos de sua vida auroral o acompanham, como devem 
			acompanhar todos os que conheceram o sortilégio daquele mundo: 
 "O alemão se fora há muito tempo
 
 
			Mas sua lembrança ficou nos olhos de 
			Suindara Nos cabelos de Dé Saruê
 Na brancura das coxas de Sinhana".
 
 
			A velha casa da Beira da Lagoa há de 
			erguer-se na paisagem de toda a sua vida, nas ruas donde nunca se 
			parte e nunca se fica, mas onde e donde e alaonde se ouvirá para 
			sempre a saudação da noite de Reis: 
 "O Santo Reis vai começar a função
 Ô Sinhô dono da casa
 Ô Sinhô dono da casa
 
 
			Deus lhe dê uma boa noite Deus lhe dê uma boa noite".
 
 
			Neste mundo da memória e dos mistérios 
			da inauguração do mundo, às vezes os vivos parecem defuntos e os 
			defuntos parecem vivos, e a vida e a morte são a circunstância 
			familiar dos dias e das noites.  
			Talvez os críticos acadêmicos peçam a 
			Iosito Aguiar que lapide o diamante de seus versos, segundo regras 
			de catecismos duvidosos. Eu prefiro que ele ofereça assim, a pedra 
			limpa e bruta. Como na referência de Claudel a Rimbaud: "un mystique 
			à l’etat sauvage", o poeta de In Illo Tempore, nos traz o 
			diamante com sua consistência in natura. Pois, de sua poesia se 
			poderá dizer que é uma poesia "incriada", a poesia que os aedos 
			sabiam nas feiras da Jônia, sem que ninguém lhes tivesse ensinado, a 
			poesia que os jograis cantavam nos pátios da Idade de Ouro, e que 
			escandia e filtrava a lembrança mera, o testamento da memória. Estamos diante de um poeta. 
			Nenhum outro tipo de poesia será mais puro do que este. Boa noite, 
			poeta Iosito Aguiar, bilocado como os anjos e os santos no Paramirim 
			e no Paraná grande, na Chapada Diamantina e nas montanhas de mármore 
			por onde o pai Apolo ergueu seu altar de Delfos in illo tempore; 
			ekeinon ton chronom. Boa noite.
 
 
			Rio, maio de 1999. 
 
 
       
			Leia Iosito Aguiar   |