Izacyl Guimarães Ferreira
Afonso Felix de Sousa – Forma e
paixão
O conceito de
geração literária é uma faca de dois gumes: parecendo ordenar
esteticamente a produção de um período, ele pode levar-nos a
distorcer a leitura, crítica ou de desfrute, de um autor da geração,
ao procurarmos o que seria a semelhança, a voz comum e
identificadora, uma linguagem, um “clima” .
Vinte anos após a
data que a nomeia,45, Fernando Ferreira de Loanda publicava a
segunda edição da “Antologia da nova poesia brasileira”, pela Livros
de Portugal, do Rio, com mudanças sobre a primeira, de 51, edição de
Orfeu, a revista carioca do grupo, com o título “Panorama da nova
poesia brasileira”. Os anos 40 e 50 foram um tempo de muitas
revistas literárias de jovens, do norte ao sul do país, e a estética
de 45 era seu denominador comum, Orfeu sendo um de seus veículos.
Mas bem me dizia
Lêdo Ivo, em entrevista ao jornal da UBE, em 2003, que no início os
poetas se agrupam, são multidão, que afinal se isolam em seus
próprios nichos, sua própria linguagem.
Uma releitura da
citada antologia mostrava, já então, 65, diferenças entre as dicções
do próprio Fernando e a de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ou o
contraste entre Lêdo Ivo em sua controlada explosão e a do amigo
João Cabral, engenheiro de versos funcionais, contraste que se
acentuou no avançar dos livros de ambos.
Se nos atemos ao que
mais se defendia no alvorecer da geração – a volta à tradição e à
forma, aos temas “eternos”, por oposição ao que faziam os poetas de
22 e 30 - o verso livre, a realidade, a política - já notaremos como
vão se distanciando os então jovens poetas. Há uma buscada e
realizada musicalidade em Péricles e a secura anti-lírica de João
Cabral, o verso livre de Fernando e a escultura de Darcy Damasceno,
a diurna penumbra do também pintor José Paulo Moreira da Fonseca e
os sonetos, entre Camões e o Parnaso, de Alphonsus de Guimaraens
Filho. Embora nas duas seleções o antologista alinhasse poemas que
mais ilustravam a voz coral da geração, de vocabulário e timbre
outonais, ouvem-se os solos.
Sem esquecermos que
os de 22 e 30 já estavam produzindo poesia bem diferente nas décadas
de 40 em diante. Bastaria pensarmos nos livros de Bandeira,
Drummond, Murilo, Cassiano, Jorge, Cecília, publicados ao longo
daqueles anos, que apontavam novos rumos para todos e cada um.
A de 45 é uma
geração a estudar com cuidado. Se aqui e ali o acusado formalismo –
que iria chegar à esterilidade do concretismo – marcasse muito de
seus poetas e poemas, seu aparecimento historicamente já bem
explicado ( fim da segunda guerra mundial, redescoberta da poesia
européia que vinha com a circulação trazida pela paz etc) precisaria
definições. Os rapazes de 45 e os senhores amadurecidos de 22 e 30
estavam é a propor a beleza da continuidade da língua, liberta de
modismos, oposta às vanguardas que, em geral, oferecem discursos
apenas cosméticos, que aceleram o envelhecimento de sua própria
pele, só uma fina superfície.
Estas já extensas
considerações vem a propósito da leitura da “Reunião de Poemas” de
Afonso Felix de Sousa, “Chamados e Escolhidos”, 50 anos de uma
poesia nascida em e com 45, refletindo muitos de seus preceitos que
permanecem válidos, e a partir deles se realiza com personalidade e
força, mantendo-se fiel a duas linhas claras de sua estética: rigor
formal e expressão apaixonada.
Seu rigor formal se
apresenta no emprego de formas fixas, tanto clássicas quanto
populares, na isometria da ampla maioria dos poemas, e sobretudo no
conquistado ritmo da sua obra, que Afonso veio revendo nas
re-edições. Desde o primeiro verso do primeiro poema do primeiro
livro há revisão. É soneto de “O Túnel” e dizia “Aqui, embora
pássaro exilado”, e diz agora, na “Reunião”: “Aqui estou, um pássaro
exilado”.A mudança não é só isso, uma troca, pois no mesmo quarteto
altera o 4o.verso, vindo da palavra final do 3o.verso, “horizontes”,
que era de “pobres e podres frutos encontrados” para ser “de pobres
paredões e frutos podres”. Houve ganho expressivo, ganho na pausa,
melhor após “estou” que após “aqui”. E houve ganho na mudança de
“encontrados”, um adjetivo, para a barreira emocional e visual de
“paredões”. Há outras mudanças no mesmo soneto, mas são menos
relevantes quanto ao aspecto de conquista de linguagem pessoal.
Um estudo minucioso
iria mostrar numerosas outras revisões que revelam o amadurecimento
estilístico de Afonso e, atenção, um desligar-se discreto de certos
modos típicos do vocabulário geracional, onde algumas palavras como
“embora”, “pássaro”, “horizonte”, “ausência” etc, tão freqüentes,
exprimiam certa tristeza ou melancolia, exílio ou abandono, além do
neo romantismo marcante de grande parte dos poetas e poemas daqueles
começos de há meio século. Se Afonso não abandonou suas origens de
45, mantendo nos primeiros livros muitos temas e procedimentos
formais da geração, aos poucos foi conquistando seu espaço lírico, e
as revisões ilustram que a busca desse espaço foi constante.
Um par de exemplos
mais, nas versões originais e nas atuais, do segundo livro de
Afonso, “Do sonho e da esfinge” : A primeira peça é “Nascimento do
poema”, onde um “ardesse” muda em “arda”. Os sonetos eram antes
blocos compactos e agora estão estrofados 4-4-3-3. Na série “Sonetos
do amante”, II o verso 4, “ora no louco apelo de onda incerta”,
passa a ser “gesto de louco apelo na onda incerta/que forma espumas”
onde antes era “crispar e espumas”. Adiante, no IV, verso 2, lê-se
agora “tem o sabor do que deixou de ser” onde antes se lia “nos
restitui ao que deixou de ser”. O Soneto V começa dizendo assim,
versos 1 e 2: “Da carne ou do mistério é esse apelo/ tão frágil como
o frêmito da espuma” . Antes, “Da carne ou do mistério. Fosse o
apelo/ mais frágil do que a rosa, do que a espuma”.
Quero crer que tais
mudanças soltam, dão leveza aos versos, quando não operam ainda um
lento distanciamento do linguajar igualitário de 45. Mais: também os
títulos de livros e de poemas mostravam certo ensimesmado estado de
espírito, visível ao longo de quase toda a antologia de Fernando
Ferreira de Loanda, em ambas as edições.
Em Afonso, tal
espírito vai dando lugar a uma contemplação mais nítida do mundo,
das pessoas e das coisas, numa concretude e visualidade que se dá
sem perda de um profundo sentimento da passagem do tempo, dito ora
com angústia, ora em meditação sobre a nossa existência e a
fugacidade da beleza. E uma crescente religiosidade, que virá
expressar-se, então plenamente, nos “Sonetos ao pé de Deus”.
Na escolha dos
títulos, enfatizando o que digo acima, vê-se como Afonso vai
deixando as palavras consideradas “bonitas” e “poéticas”, preferindo
dar aos livros, desde os nomes, uma linguagem mais franca, menos
“etérea” ou “inefável”, para usarmos vocábulos tão ao gosto dos de
45. Compare-se: “Do sonho e da esfinge” contra “O amoroso e a
terra”, embora depois do belíssimo título “As engrenagens do belo”
aconteça um retorno ao modo anterior em “Íntima parábola”. Mas
note-se que os títulos se “despoetizam” nas obras seguintes :“Chão
básico”, “Quinquagésima hora” e na discrição de “A beira de teu
corpo”, a trenodia para o filho Giles, título direto para poemas sem
data alguma, de sempre, um pungente lamento.
Sobre esta oração
fúnebre, ressalta bem Antonio Carlos Secchin que seus versos estão à
altura dos famosos poemas de Fagundes Varela e Abgar Renault,
enfrentando semelhantes situações de tão profundo sofrimento.
Mas na linguagem
mais aberta e clara da maturidade Afonso conserva o gosto pelo verso
sonoro e o arremate ortodoxo, quase “chave de ouro”, da maioria dos
sonetos. Eis alguns exemplos de expressivos versos finais, colhidos
aleatoriamente em distintos livros:
se
levamos em nós o céu da infância // que em meu canto se esboça minha
vida e morte
para habitar o céu do eterno de um momento // e o que tentei viver
seria a minha sina
de rastos indo atrás do próprio rasto // a mundos que sentimos e não
vemos
de um sol mais forte a arder dentro de nós // em mármore e em
saudade eternizá-lo
Outras leituras
pertinentes de Afonso Felix de Sousa apontam para o tema da terra –
o Goiás natal ou o Rio de adoção – e as viagens. Um olhar o fora com
a voz de dentro, lembrando ou descobrindo, bem humorado ou
compassivo. Sempre, a paixão, nos sentidos vários de calor de
sentimento ou de entusiasmo, de amor humano, erótico ou terno, e de
amor divino - amor e entrega a um deus que passa a ser Deus e ser
Cristo, crescendo de vaga dependência e especulação a uma vivenciada
e sofrida devoção, mística : a dos magníficos sonetos do último
livro. Nele, Afonso abandona o formato inglês que tanto havia
trabalhado e retorna ao modelo latino, todos os 29 poemas marcados
por um apaixonado, forte dístico final:
Por tudo o que
me dás louvado sejas,
por tudo o que não dás sejas louvado.
Pode-se dizer que o
soneto é, em Afonso, mais que em qualquer outro dos poetas de 45,
seja ele Alphonsus de Guimaraens Filho, ou Mauro Mota ou Darcy
Damasceno, um horizonte formal, um paradigma de seu rigor, de sua
medida expressiva. Uma estatística superficial, de pura contagem ao
correr do índice, totaliza 367 poemas e 125 sonetos. Ou seja, cerca
de um terço da obra reunida. Deles, desde os “elementares” do livro
de estréia, “O túnel”, no formato 4-4-3-3, na maioria brancos e em
nada parnasianos, de escassas rimas, até os da conversação com Deus,
Afonso terá sonetos em todos os 12 conjuntos de poemas de sua obra
reunida.
Serão no formato
inglês de três quartetos e um dístico rimado, escolha sua a partir
dos “Sonetos de meditação” do livro “Memorial do errante”, até os 29
do seu último livro, quando retoma o modelo latino 4-4-3-3. Antes, o
quinto livro é a bem realizada coroa, essa poderosa tentação dos
sonetistas.
Outro poeta de 45,
Geir Campos, também enfrentou, à mesma época, nos anos 50, tal
desafio. O esforço formal de Geir parece bastante visível, dada a
imposição ditada pelo preceito do “leixapren” – encadear as peças
com a repetição do verso 14 no verso 1 do soneto seguinte. Ainda
assim, armou Geir uma admirável peça e cada soneto pode ser lido à
parte da coroa.
Afonso consegue
grande soltura e fluência construindo essa memória da beleza que é
“As engrenagens do belo”, o felicíssimo título da composição, de que
reproduzo o 15o. soneto, a jóia da coroa, não importando saber se o
poeta começou por ele e depois compôs os 14 que vão se estruturando
nas “chaves de ouro” que formarão a coda, esperada como a de uma
sonata ou sinfonia que recolhe os temas tratados ao longo da
composição. A coroa leva as datas “1952 -1953 e 1981”. O que vim a
saber, por Astrid Cabral, é que foi escrita nos 50 mas Afonso não a
considerou pronta, só vindo a finalizá-la em 1981, o que revela mais
uma vez o cuidado do poeta com seus textos. Valerá repetir que um
poema é forma e som e fala e sentido. Arte, artifício, artefacto.
Eis o resultado:
O belo vem do sol do que já
vimos.
Sentímo-lo, mas como transmiti-lo?
Pisamos ora abismos, ora cimos.
O olhar, ora é inquieto, ora tranquilo.
Pouco nos toca o inédito e o perfeito,
se a perfeição se erige em templo gasto,
se o inédito a si mesmo está sujeito
além de ser sua sombra e rasto.
Pouco nos toca a rosa com seu nexo
de pétalas e cor em harmonia,
se não traz de outras rosas o reflexo,
se ela não se abre em rosas de outro dia.
Se a tudo cobre o sol do que sentimos,
o belo está no belo que já vimos.
Na passagem do meio
século, anos 40 e 50, a poesia brasileira viveu uma riquíssima
transição. Deu-se àquela época a consolidação da maturidade dos
grandes nomes de 22 e 30, de Bandeira a Drummond, e de Murilo a
Jorge, e a serena afirmação de Cecília, e o renascimento de
Cassiano. Eis quando nos 40 desembarcam João Cabral e Lêdo Ivo, com
eles todo um grupo de jovens mudando rumos estéticos, propondo uns a
tradição, em linguagem renovada, outros uma ruptura radical
através de experimentos ora produtivos (práxis, processo), ora
infrutíferos e auto-destrutivos cujo valor é apenas histórico e
fugaz (concretismo).
Virá em seguida o
tempo das singularidades e quase não se falará mais em gerações, mas
em grupos quando muito, em heranças. Entramos na longa hora das
afirmações pessoais, assunto para outras considerações.
É extensa a lista
destes poetas, mais novos ou oriundos de 45, mas nela o nome de
Afonso Felix de Sousa se enraíza no que de melhor a sua geração
propunha e no que ele próprio, sozinho, passou a realizar e a boa
crítica já reconheceu: um poeta com voz pessoal, na qual a
musicalidade da geração ganhou acento individualizado, em quem a
temática do grupo vem marcada no tratamento disciplinado e
competente de uma rica vivência. O que ele canta, o que ele conta é
sua dor, sua alegria, uma paixão de homem, à qual deu forma exemplar
e rigorosa.
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Izacyl Guimarães Ferreira
escreve, traduz e comenta poesia
( higefe@uol.com.br )
Leia obra de Afonso Felix de
Sousa
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