Izacyl Guimarães Ferreira
Majela Colares e a razão pura do
poema
O cearense Majela Colares, mais um
poeta de porte que escreve no território “ entre o velho monge e o
velho chico”, nordeste entre os rigores do Parnaíba de Da Costa e
Silva e o São Francisco de Euclides, é um inventor. No sentido de
Pound? Sim, ou quase, pois faz o “novo”, um novo que não tem de sair
do nada mas faz-se novo no dizer. E na forma.
Trabalha com a décima, mas a
reinventa. Seus dois últimos livros, “A linha extrema” e “Quadrante
lunar”, são, aquele um só longo poema em décimas e este com o
predomínio da forma, projetos temáticos que mostram as variantes
decimais de Colares. Naquele, três tercetos e um verso final solto,
e o esquema é o da terza rima dantesca. No último livro,
2-1-2-1-2-2, com e sem rimas.
Começo este comentário pela forma do
poeta porque ela se impõe ao olho e o bom poeta não precisa ser um
formalista estéril para saber da importância do visual no que
escreve. Porque o verso não surge por acaso, diz Colares, que
procura “a razão pura do poema”. Surge para dizer-se dizendo-nos. E
o que diz na sua razão que sente?
Ouso dizer que toda a sua poesia atual
– dos 3 livros principais, que são os dois citados e mais “O
soldador de palavras” – é um ir e vir entre a metafísica e a
metalinguagem. Realiza o que prenunciava o mestre de Antonio
Machado, seu heterônimo Juan de Mairena: que um dia a poesia e a
filosofia se mesclariam, e citava Heidegger e Valèry como exemplos
dessa mescla.
Mas atenção. Colares não faz
filosofia, embora saiba o que seja. Faz poesia metafísica, indagação
ontológica. Nada seca, nada fria, nada prosaica. Colares faz versos.
Colho estes, entre inúmeros de igual ressonância: pintei de
primavera aquele outono //como um frasco partido no cimento// Se
confunde nos versos que fez Dante / quando amor e razão foram
divinos//a abstrata pureza - forma e tema //nestes sóis mastigados
por invernos //sublime é o canto,os gestos e o salmo//o azul tem o
sono e a cor latente/do tempo desmaiado sobre a mesa//labaredas de
vento pelo espaço//na garganta de um galo um sol nascente...
Ao soldar palavras Colares as torna
tão ajustadas, tão sem costura à mostra, que realça “os saberes da
mão” , mesmo que “só precise a beleza nua, extrema / e um silêncio
sem fim de língua morta.
Colares raríssimamente pontua e sua
mestria do ritmo e do visual dos signos comanda a leitura sem
tropeço, põe a gramática a seu serviço, não deixa a língua morrer em
silêncio. Porque os limites da indagação metafísica, sua ou de toda
a poesia, são extensos e não se reduzem a poucos poemas, a poucos
livros. Ela alimenta muito do que de melhor escrevem este e outros
poetas de respeito, num interrogar sem fim sobre as origens e os
destinos do homem.
Importa ainda ressaltar que não há
nada de abstrato em sua poesia, fortemente visual, rica de imagens,
não raro surpreendentes. Certo que toda boa poesia é um objeto
verbal, “coisa mental”, como quer João Cabral. E o objeto mental de
Colares se expõe aos sentidos, é material o quanto um texto pode
ser.
Em seu último livro, Quadrante lunar,
logo no primeiro poema ele diz que a razão do poema é razão pura. Um
verso que pode ser lido de várias maneiras, desde à luz de Kant até
à simples noção de que o poema é sua própria razão de ser. Reafirma
que seu âmbito é o do contínuo indagar da razão de ser e de
escrever.
Assim é que sua sabedoria (até da mão,
da inspiração, pois) pára onde o mistério, não há sistema em sua
metafísica. Cede ao tempo, senhor de todas as coisas. Ao nada ou à
morte. Eis as duas décimas finais do magnífico poema que é “A linha
extrema”. Cabe dizer que o poema explora a técnica do leixa pren,
emendando as décimas entre seus versos finais e iniciais. O verso
que fecha uma décima inicia outra, com o que todas as décimas se
soldam num discorrer contínuo, forma inteiriça que é típica do poeta
– desenvolver cada livro como um projeto, não uma coletânea de
versos. Eis as peças finais:
Nas vértebras remotas dos espinhos
se define o saber da mão intacta ;
na angústia do papel, dos pergaminhos
a mão leve e vazia, mão sensata,
se recusa a escrever qualquer poema
- a mão sabe a razão da linha exata
mas não sabe a razão da linha extrema
rascunhada nos versos cometidos
esculpida nas bordas do fonema
densa linha de ocasos convergidos
Densa linha de ocasos convergidos
na mistura de traços, cores, tintas
percebi nos extremos desmedidos
os extremos fatais da linha extinta
onde sombras e luz a mão pressente;
no possível flagrar da essência quinta
louco sonho, futuro, inconsequente
vi meus olhos tingidos – aquarelas:
é que o tempo foi breve e reticente
quando as horas fugiam amarelas...
Este último verso é também o primeiro
das trinta décimas do poema. Mais que um capricho formal, é uma
exigência do tema, pois o verso, um verso, talvez nenhum verso,
surge por acaso. E o fugir das horas nas folhas outonais amarelas
marca o fluir das coisas e neles nosso próprio fluir, até um dia
encontrar a linha extrema.
Quadrante lunar e A linha
extrema são edições Calibán, do Rio de Janeiro.
O soldador de palavras é da Ateliê Editorial, de São Caetano do Sul,
São Paulo.
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